Uma questão que merece ser abordada é a de por que as expectativas de reversão do processo eram tão baixas, tanto entre os que esperavam a continuidade de Temer na presidência como entre os que lutavam pela continuidade e fortaleza da institucionalidade democrática, sustentada desde 1988.
Por: Camila Vollenweider / CELAG
O golpe no Brasil foi finalmente consumado, como era previsível. Nem os contundentes argumentos jurídicos da defesa contra a acusação de crime de responsabilidade de Dilma Rousseff, nem seu valente comparecimento frente aos que buscaram incessantemente destitui-la, como tampouco as manifestações de rua contra o golpe, foram suficientes para reverter este jogo antidemocrático de cartas marcadas.
Se alguma esperança restava, era a que recaía na honestidade moral dos senadores que, tempo atrás, votaram pela admissibilidade do julgamento político e para que a presidência seja ocupada pelo outrora vice-presidente que atualmente conta com 68% de reprovação da cidadania. No entanto, uma maioria de 61 legisladores se pronunciou a favor da destituição da presidenta da República, configurando um fato histórico de graves consequências institucionais, sociais e políticas para o país e a região.
I
Uma questão que merece ser abordada é a de por que as expectativas de reversão do processo eram tão baixas, tanto entre os que -dentro e fora do Legislativo- esperavam a continuidade de Temer na presidência como entre os que lutavam pela continuidade e fortaleza da institucionalidade democrática, sustentada desde 1988. Um primeiro aspecto que se poderia assinalar é a constituição mesma do Poder Legislativo que, segundo a Constituição, é quem tem a potestade principal de julgar a máxima autoridade do Estado. O Parlamento brasileiro foi se caracterizando, na última década pelo menos, por uma grande fragmentação partidária -particularmente em deputados- e pela enorme influência que têm os interesses corporativos sobre boa parte dos 594 legisladores de ambas Câmaras. Tais características influem de maneira direta na dinâmica de negociação permanente dos representantes das principais bancadas para conseguir votos favoráveis a mudança de cargos e privilégios, e na fidelidade do voto legislativo aos grandes interesses privados que têm financiado suas campanhas eleitorais. A bancada empresarial é a mais abundante do Legislativo, com 251 representantes -221 deputados e 30 senadores-, segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP)[1]. Além desta, as bancadas dos defensores do agronegócio, dos evangélicos -mais potente em deputados que no senado- e a composta por legisladores vinculados com a ditadura militar e o negócio da segurança têm uma categórica incidência nos projetos de lei e de emenda constitucional que ingressam nas comissões pertinentes -estrategicamente super representadas por eles- e que possuem altas chances de serem aprovados.
Outro importante fator que incidiu de maneira direta no propósito destas maiorias parlamentares para destituir definitivamente a presidenta -ligado indubitavelmente ao primeiro- é a vinculação de uma parte nada desdenhável dos legisladores com causas judiciais vinculadas à corrupção. A mega causa conhecida como Lava Jato que investiga nexos de ilícitos entre políticos, empreiteiras e a estatal Petrobras-, entre outras investigações similares, foi possível graças ao apoio financeiro e institucional que os governos de Lula e Dilma outorgaram à Justiça e à Polícia Federal para combater uma corrupção que tem se revelado endêmica ao sistema político. Deixando de lado o determinante papel que o Poder Judiciário tem cumprido para politizar a causa e distorcer as investigações prejudicando ao Partido dos Trabalhadores [PT], o certo é que 60% dos 594 legisladores brasileiros em funções "enfrentam acusações como recepção de subornos, fraude eleitoral, desmatamento ilegal, ou sequestro e homicídio"[2]. A permanência de Michel Temer na presidência representa, assim, um Executivo sem vontade de combater a corrupção e com capacidade de entorpecer toda ação judicial que envolve a seus aliados dentro do Parlamento e dentro do próprio governo.
Dada esta estrutura de interesses privados dominando a "Casa do povo", não surpreende que o resultado do julgamento político tenha respondido mais a uma correlação de forças políticas dentro do Parlamento favoráveis ao fim de um governo relativamente hostil às elites -com a inegável e necessária cumplicidade do Poder Judiciário e do "jornalismo de guerra" praticado pelos meios hegemônicos- que a uma questão técnica referente à existência ou não de crime de responsabilidade de Rousseff.
II
"Fim da democracia" e "triunfo da democracia" foram duas leituras antagônicas do recente fato que ressoaram entre os contrários e os defensores do julgamento político. Claramente, "democracia" é outro dos conceitos que estão atualmente em disputa dentro de uma batalha cultural, simbólica e política que está se aprofundando a passos agigantados na América Latina após as quebras institucionais inauguradas por Honduras em 2009. O julgamento político é constitucional no Brasil e os procedimentos se seguiram de acordo com a normativa: o Poder Legislativo votou majoritariamente pela destituição de Dilma Rousseff sob a supervisão do presidente do Supremo Tribunal Federal. A formalidade foi cumprida e este é o "manto" de legalidade no qual se escudam os que hoje celebram a investidura efetiva de Temer, dentro e fora do Brasil. No entanto, e formalidades à parte, este "triunfo da democracia" desconhece a dimensão de representatividade que lhe dá sustento. Se bem que durante o segundo mandato de Dilma sua popularidade caiu significativamente, um ano e meio atrás foi escolhida como presidenta por 54 milhões de brasileiros, enquanto Michel Temer obteve esse cargo graças ao voto favorável de 61 senadores e 367 deputados na histórica sessão de abril próximo passado. Se poderia contestar a este fato que estes legisladores também foram eleitos pelo voto popular. Se bem que isto é inegável, como explicar que se a população brasileira está composta em mais de 51% por mulheres, no Congresso não somem mais de 12% de cadeiras -e a mulher negra 0,6%-? A que obedece que no Congresso não esteja representada proporcionalmente a enorme maioria de população negra e mestiça que o Brasil possui? Por que, se a maior parte dos votantes são assalariados, desempregados, donas de casa e trabalhadores informais a bancada mais numerosa é a dos empresários?
Esta estrutura de representantes não representativa que predomina em quase todas as legislaturas da região é consequência, entre outros, de dois aspectos que merecem ser destacados: um, como produto de que as Constituições vigentes -exceto as de Bolívia, Venezuela e Equador, sancionadas durante a última década, e a do Chile, que data de fins da ditadura pinochetista[3]- foram aprovadas durante as transições democráticas, quando se teve que pactuar um sem-número de condições para garantir a estabilidade institucional com setores essencialmente autoritários da vida política e econômica. A formalidade eleitoral como base do sistema democrático, a inexistência de garantias de representatividade real da população no governo, a blindagem à propriedade privada e a quase total autonomia do poder judiciário foram algumas das características adotadas pelas cartas magnas que perduram até hoje. A isso há que somar -salvo notáveis exceções, como a Argentina- a impunidade com a qual ainda hoje contam os responsáveis pelas ditaduras militares[4], os insuficientes mecanismos de controle e sanção da corrupção, e a praticamente inexistente regulação sobre um poder que se revelou quase mais incisivo que o que exerce o "soberano" com seu voto: o dos meios de comunicação. E dois, que, apesar da proclamação que nos faz livres e iguais, a realidade em nossas sociedades extremamente desiguais manifesta exatamente o contrário. A capacidade das elites econômicas para influir sobre a sanção de leis favoráveis mediante o lobby e o financiamento de campanhas, para investir aos próprios como presidentes, ministros, juízes e legisladores, e para determinar o "bem comum" através das políticas de governo segue sendo muito mais efetiva que a das maiorias com seu voto periódico.
III
O que sucedeu no Brasil -igual que em Honduras e no Paraguai-, e a instabilidade institucional que tem caracterizado historicamente a estes e aos demais países da região não se deve ao fato de que são "democracias jovens", como sustentam muitos olhando com admiração o que sucede na Europa[5]. O que sucedeu no Brasil é, muito mais, o triunfo da demofobia, ou a reação temerosa à reversão -inclusive tímida- que os governos do PT impulsaram sobre uma tradicional ordem social cujo domínio era exercido por homens, brancos e ricos. Temer deixou claro logo que assumiu seu interinado ao compor um gabinete composto em sua totalidade por homens brancos e extinguir ministérios como Cultura, Mulheres, Direitos Humanos e Igualdade Racial. Agora chegará com contundência o turno do desmantelamento dos avanços em matéria trabalhista, previdenciária, sanitária, educativa e da soberania dos recursos naturais. A nível geopolítico, o golpe também impactará na configuração dos equilíbrios de poder mundial e regional, ao distanciar o Brasil dos BRICS e permitir aos Estados Unidos avançar sem obstáculos sobre aquele espaço de poder contra hegemônico e reeditar sua "Doutrina Monroe" sobre a região, enquanto o novo governo pretende reverter os esforços de seus antecessores em matéria de integração regional. O banquete para as elites está servido.
[1] http://apublica.org/2016/08/como-as-federacoes-empresariais-se-articularam-pelo-impeachment/
[2] http://www.nytimes.com/es/2016/04/15/os-legisladores-brasileiros-querem-destituir-a-dilma-rousseff-também-estao-envolvidos-em-escândalos-de-corrupção/
[3] E outras, como a Argentina, que foram reformadas sob governos neoliberais na década de 1990.
[4] Para o caso do Brasil: http://www.brasilwire.com/brasils-senate-and-the-legacy-of-dictatorship/
[5] Uma Europa que, longe de ser homogênea, nos últimos dois séculos negou o direito ao voto aos pobres e às mulheres até quase a mesma quantidade de anos que na América do Sul, que padeceu de duas cruentas guerras mundiais, revoluções socialistas e violentas reações conservadoras às mesmas, regimes fascistas e outras ditaduras relativamente recentes -como em Espanha, Portugal e Grécia-.
Tradução: Joaquim Lisboa Neto
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