Adelto Gonçalves (*)
Já não vivemos ao tempo do reinado de D. João V, que se estendeu por perto de meio século (1706-1750), nem temos mais poetas do quilate de Gregório de Matos e Guerra (1636-1713?) e Tomás Pinto Brandão (1664-1743). Talvez por isso sejam poucos os vates que hoje se aventuram naquele gênero de poesia jocoso e satírico, que tanto serve para denunciar as políticas dos mandões como a hipocrisia daqueles que vivem de aparências, o pavoneio mundano, o exibicionismo que tanto lavra nos corredores do parlamento como nas salas das academias de letras ou nos colóquios universitários.
É que, para tanto, o poeta precisa estar munido de um arsenal que não é fácil de acumular, que vem dos tempos dos romanos Ovídio (43 a.C-17) e Catulo (84 a.C-54.a.C) e do hispano-romano Marcial (38?-102), entre tantos poetas da Antiguidade, passando pelos citados Pinto Brandão, o autoproclamado Pinto Renascido, Matos e Guerra, Bocage (1765-1805), o padre José Agostinho de Macedo (1761-1831) e outros adeptos das más-línguas que, dados ao verso fescenino, erótico e chocarreiro, fizeram da poesia satírica um látego embebido de fel purificador.
Por isso, este livro, com o estranho título de Escarnho, de Paulo Franchetti (Cotia: Ateliê Editorial, 2009), é uma obra para poucos não só na tiragem limitada de 98 exemplares , mas porque não são muitos aqueles capazes de compreender o seu universo refinado, ainda que permeado de palavrões ou referências escatológicas. Escarnho, diga-se logo do que se trata, significa zombaria, mofo, motejo, menosprezo, desacato. É o que se lê no Livro de Esopo: O corvo foi mui nojoso pelo escarnho que a raposa dele fazia.
A origem da palavra é controversa, mas provém do italiano scherno, ou por derivação da raiz românica carn-, como em descarnar. Em textos do século XIII, lê-se com freqüência essa forma, escarnho, mas no português do século XIV em diante o mais freqüente é mesmo escárnio. N´O Livro de Salmos (cap.1), na Bíblia, por exemplo, recomenda-se ao varão que não se assente na roda dos escarnecedores, ou seja, daqueles que fazem do riso uma maneira de ridicularizar e falar mal de tudo e todos, os adeptos do bota-abaixo.
Mas, muitas vezes, os escarnecedores não são apenas mariolas, que nada fazem a não ser falar mal da vida alheia, pois têm lá suas razões quando recorrem ao escárnio. Há gente especialmente, os poderosos do dia e aqueles que se locupletam com o dinheiro público que, à falta de uma Justiça mais ágil e implacável, só podem ser castigados pelo azorrague de um poeta. Pois, desde o tempo dos latinos, que sabemos que é rindo que castigamos os costumes.
É o que faz Franchetti, que trata de tirar o pelo de certos pacóvios de nossa sociedade, com uma linguagem inspirada naqueles poetas dos séculos XVII e XVIII, herança de uma época em que Castela, o país de Cervantes (1547-1616), exerceu sua pressão imperialista explícita sobre o pequenino Portugal, imaginando que faria dele o que fez da Galiza, da qual erradicou até o último laivo da memória das gentes.
Para o bem ou para o mal, essa anexação de Lisboa e seus arredores a Castela, que durou de 1580 a 1640, se na América portuguesa ajudou os escuros paulistas de então (que formaram a nossa elite, que pouco de branca sempre teve) a empurrar o meridiano das Tordesilhas até quase o Pacífico, não houvesse no caminho a cordilheira dos Andes, contribuiu também para alastrar por terras lusas (que abrangia o Brasil de então) o gosto pelo barroco, que inclui, obviamente, essa vontade de ridicularizar os enfatuados e os mandões. Até porque era a única opção que restava àqueles que eram oprimidos pelas forças conservadoras, com a monarquia e a igreja à frente, quase sempre de forma violenta. O próprio Cervantes que o diga.
O barroco, explique-se, é um fenômeno urbano, resultado do inchaço que sofreram as principais cidades peninsulares: de um lado, os ricos, os bem-nascidos; de outro, a massa dos criados, operários e funcionários subalternos, que assimilavam o que podiam dos senhores, até algumas letras, às vezes assumindo suas idiossincrasias e posturas (ainda que falsas), mas que, no íntimo, tinham de ruminar a inveja ou o ódio que sempre acumula aquele que serve a outro, menosprezado pelo senhor ou por tantos quantos o rodeiam. Como bem sabe quem já leu La literatura picaresca desde la historia social, de José Antonio Maravall (Madri: Taurus, 1987, pp.227-228).
Esses desvalidos são aqueles que assistem ao espetáculo do mundo, muitas vezes do alto da janela de uma casa que não é sua. E a única arma de que dispõem para colocar para fora sua revolta com a condição social em que nasceram numa sociedade estratificada é o escárnio, o mofo. Por isso, não é ao idoso em si que o poeta Franchetti, tão franco quanto o nome, execra até porque essa é uma fatalidade a que chega quem escapa da indesejada das gentes , mas ao velho ridículo, que não sabe o seu lugar na sociedade, que insiste em comportar-se como se tivesse 20 ou 30 anos de idade. E que mais parece uma assombração, deixando à mostra aquilo que ninguém mais quer ver. É o que Franchetti procura reproduzir em Vendo, pela minha janela, algumas pessoas em exercício, ao cair da tarde:
Aqueles que se envaidecem e se ensoberbecem com títulos acadêmicos também não se livraram do chicote moralizante de Franchetti, que não deixa de expor ao ridículo certos tipos comuns especialmente em universidades públicas e privadas, tanto aqui como lá fora, tal como se constata em La cumparsita:
São muitas as figuras alvejadas pelo chuço satírico de Franchetti. Pois na área cultural abundam tipos assim, como o escritor prolixo e obtuso, que vive de fazer política rasteira em meio a corjas de bestas do mundinho das letras (p.27):
Não é só na Antiguidade e no Barroco que Franchetti vai buscar temas, personagens e materiais para a sua forja. Abusando, no bom sentido, da intertextualidade, evoca Camões (1524?-1580), por exemplo, nos versos de O Fauno: Ó tu, que tens embalde, pois não prezas,/ As qualidades que Cibele avara/ A todos nos negou, só a ti deu:/ Ninguém assim impune a ofendeu! (...).
Ou nos versos fesceninos de Elegia, que lembram os do célebre soneto do árcade e pré-romântico Bocage, Meu ser evaporei na lida insana: Meu tesão não gastei na foda insana/ Evitando a putada, que chamava.../ Ah! Cego eu cria, ah! mísero eu sonhava/ Sempre dura esta vara, que é humana! (.....).
A intertextualidade está também no soneto igualmente fescenino e chocarreiro Nobre em que evoca António Nobre (1867-1900), cuja obra se insere nas correntes ultra-romântica, simbolista, decadentista e saudosista da geração do final do século XIX português, em que recorda os prazeres da carne de que usufruía ao pastorear sua ovelhinha no campo: Minha santa ovelhinha, que saudade/ Eu tenho dos passeios pelo monte!/Do teu gesto e do olhar de piedade,/ No esquecido caminho sob a ponte! (...)
Não à toa Franchetti usa e abusa da intertextualidade, o que pode fazer porque é vasto o seu conhecimento da tradição poética luso-brasileira. Professor titular no Departamento de Teoria Literária e do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e presidente da editora da mesma universidade, escreveu, entre outros livros, O Sangue dos Dias Transparentes (2002) e Estudos de Literatura Brasileira e Portuguesa (2007). Seu livro de haicais, Oeste/Nhisi (2008), representa uma das mais admiráveis experiências na recente poesia brasileira. Para a coleção Clássicos Ateliê, organizou também O Primo Basílio, Dom Casmurro e Iracema, estes dois últimos em parceria com Leila Guenther.
A esses livros junta agora este que torna pública a sua musa praguejadora, até aqui escondida. Como diz o professor Alcir Pécora, autor do prefácio e também alvo ou destinatário de alguns destes poemas, o que se lê neste livro tudo é dobrar da língua para gargalhar do ridículo que se condena. Por isso mesmo é arte só para quem a sabe dobrar, gozo cruel e excludente, exclusivo de doutos.
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ESCARNHO, de Paulo Franchetti. Ilustrações: Alexandre Benoit. Cotia-SP: Ateliê Editorial, 72 págs. 2009. E-mail: [email protected]
Site: www.atelie.com.br
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: [email protected]
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