Camila Arêas
Martín Almada foi torturado e julgado por militares brasileiros, nos anos 70, porque lia Paulo Freire. Hoje, espera resgatar os documentos da Guerra do Paraguai ocultados pelo Brasil desde 1870. "Não há nada referente ao conflito em nosso Arquivo Histórico Nacional", justifica.
O advogado denuncia que a longa resistência em liberar os arquivos esconde desvio de verbas e confisco de terras, pois "a zona onde está Itaipu era do Paraguai". Martín participa na terça-feira de um encontro promovido pela OAB no Rio de Janeiro sobre a Operação Condor, que assegura continuar vigente.
1. O senhor acredita que Lugo conseguirá corrigir o que chama de erro histórico?
- Lugo tem uma boa relação com Lula, espero que sim. Pedi-lhe que reclame a recuperação de nosso patrimônio histórico cultural, de nossa memória, porque não é justo que o Brasil ainda retenha documentos que foram levados em 1870. Chama-nos muita atenção que oculte isso.
2. A que o senhor atribui a demora?
- Suspeito de que o Brasil queira esconder o fato de que esta foi uma guerra imperial, comandada pela coroa britânica. Contesto a versão de que Brasil, Paraguai e Uruguai travaram a guerra porque tinham interesse na Bacia do Prata. Sim, claro que tinham, mas foram manejados pelos ingleses. Nesta época, tínhamos no poder Solano López, que era um ditador, mas patriota e progressista, foi nosso Fidel Castro. Éramos o único país latino que não se submetia à Inglaterra, não tinha banco inglês e tinha abolido a escravidão, enfim, um mau exemplo.
Quando a questão entrou em discussão, em 2005, fontes do governo brasileiro defenderam "sigilo eterno" por envolver questões fronteiriças.
3. Como interpreta a justificativa?
- É simples. Suspeito que toda a região fronteiriça do Paraná, onde hoje está a Usina de Itaipu, é do Paraguai e foi tomada na guerra. Mas, sinceramente, não são estes 62 mil km² que reivindicamos, não estamos em condição de brigar com o Brasil porque seríamos esmagados em 24 horas. Somos um país pequeno, com 6 milhões de habitantes, terra é o que não falta. Apenas reivindicamos nossa História. É uma vergonha que nos escondam isso.
4. Vocês não ficaram com nada?
- Não há nada referente à Guerra do Paraguai em nosso Arquivo Histórico Nacional. Além disso, o Brasil levou todos os documentos dos governos Lopez e seu antecessor Rodríguez Francia, também nacionalista. De novo, o Brasil serviu à Inglaterra. A Argentina levou os móveis de Lopez e as roupas da sua mulher. Os brasileiros foram mais inteligentes (risos). Minha condenação, porém, não é ao povo brasileiro, mas à coroa britânica.
5. Também em 2005, especulou-se que os documentos sigilosos revelariam "subornos e negócios ilegais". O senhor poderia exemplificar isto?
- Sei de uma questão a qual podem estar se referindo. Quando terminou a guerra, o Brasil tomou emprestado da Inglaterra mais de 10 milhões de libras esterlinas que seriam destinadas ao Paraguai. No entanto, 85% deste empréstimo ficou no Rio de Janeiro. Isto deve constar nos arquivos.
6. A polêmica sobre os documentos do Paraguai veio à tona junto aos pedidos de abertura dos arquivos da ditadura militar do Brasil. O senhor, como ex-preso da Operação Condor, também está disposto defender isto?
- Claro. Se pedirem minha ajuda, vou colaborar. É preciso que todos saibam como o ex-presidente americano, Henry Kissinger, o primeiro terrorista mundial, utilizou nossos Exércitos na Operação Condor.
7. Conte-nos sobre seu pioneirismo na abertura destes arquivos no Paraguai.
- Exilado em Paris, investiguei durante 15 anos a operação, por meio de contatos que mantinha e sob a tutela da ONU, onde trabalhei como consultor para a América Latina. Em 1992, voltei e encontrei todos os documentos relativos à operação no Paraguai, que hoje estão ao alcance de nosso povo. Cerca de 30 policiais foram presos. Também descobri o centro de capacitação de tortura que o Brasil mantinha em Manaus. Fui torturado e julgado por militares brasileiros. Eu era tratado como terrorista intelectual. E os brasileiros foram mais terríveis.
8. Por quê?
- Porque encontraram uma obra de Paulo Freire na biblioteca da escola que eu dirigia. Além disso, tinha escrito o livro Paraguai, educação e dependência inspirado nas idéias de Freire e Fernando Henrique Cardoso. Pedi pessoalmente a FHC a abertura dos arquivos da Operação Condor, mas os militares não o deixaram. Por isso, digo: quem manda no Brasil são os militares. Seja FHC, seja Lula, quem decide é o Exército, que historicamente se submeteu às botas inglesas e americanas.
9. Como foi tratado na prisão?
- Fui torturado por um mês e, durante uma semana, apenas pude comer dejetos fecais e beber urina. Quando saí, tinham matado minha esposa. Era 1973, e fugi para Paris.
10. A Argentina foi quem mais avançou na condenação dos militares, sob o governo de Nestor Kirchner. Como o senhor avalia o resto da América Latina?
- A Argentina, sem dúvida, lidera este movimento. O Chile é uma vergonha regional, um governo socialista incapaz de honrar com a memória de Salvador Allende. O Chile se vendeu a acordos internacionais e tudo foi privatizado, a começar pela mente das pessoas e o conceito de público. Quando abrirem os arquivos no Brasil, muitos generais serão presos, é isto que freia. Com a Usina de Itaipu, criou-se uma nova classe: os barões de Itaipu, que enriqueceram com a corrupção e não querem ser descobertos. Mas também falta mobilização do povo. Sou amigo pessoal do ministro brasileiro de Direitos Humanos, Paulo Vanucci, verei o que posso fazer. Me interessa muito o caso brasileiro por uma especial desconfiança.
11. Qual?
- Sustento que Juscelino Kubitschek e João Goulart foram vítimas da Operação Condor. Investigo como o condor voou e segue voando.
12. Como assim?
- Sob controle da Conferência dos Exércitos Americanos (CEA), criada em 1961 e dirigida pelo Pentágono, continua-se a perseguir terroristas na América do Sul. O Brasil não falta nunca às reuniões, que acontecem a cada dois anos. Argentina, Venezuela, Cuba, Equador e Bolívia já não são integrantes, e nós vamos pedir que Lugo se retire. A CEA é a globalização da Operação Condor
Perfil
Martín Almada
Nascido em Puerto Sastre, Paraguai, o advogado, escritor e professor, de 61 anos, liderou o movimento pela abertura dos arquivos da ditadura no Paraguai. Preso durante a Operação Condor, foi libertado após uma campanha da Anistia Internacional. De 1986 a 1992, trabalhou na Unesco.
"Suspeito de que toda região fronteiriça do Paraná, onde está a Usina de Itaipu, é do Paraguai e foi tomada na guerra.
Mas não queremos terras, apenas reivindicamos nossa História "
História
Guerra do Paraguai (1864-1870) Também chamada Guerra da Tríplice Aliança, foi o maior conflito armado internacional do continente americano. Temeroso de que a instabilidade política no Uruguai prejudicasse a estabilidade no recém-pacificado Rio Grande do Sul, Dom Pedro II interferiu na política interna uruguaia, que foi seguida de uma reação do Paraguai, desencadeando a guerra.
Após cinco anos de luta, Brasil, Argentina e Uruguai, aliados, derrotaram o Paraguai. Dois terços dos paraguaios adultos morreram e praticamente só restavam vivos idosos, mulheres e crianças. A economia paraguaia, a mais pujante da região no momento, foi devastada. A derrota tornou o Paraguai, um dos países menos desenvolvidos da América do Sul.
Operação Condor Aliança político-militar entre os regimes militares de Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai criada com o objetivo de coordenar a repressão a opositores dessas ditaduras instalados nos países do Cone Sul.
Montada no início dos anos 1970, durou até a onda de redemocratização, na década seguinte. A operação foi batizada com o nome do condor, ave típica dos Andes e símbolo da astúcia na caça às suas presas. O governo americano tinha conhecimento dela, conforme demonstram documentos secretos divulgados pelo Departamento de Estado, em 2001.
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