por Amilcar Neves
A nossa amada língua portuguesa, a "última flor do Lácio, inculta e bela", sempre bela e cada vez mais inculta, encontra-se na sala de cirurgia. Nada de grave, segundo as informações que circulam por aí. Nada de sério ou grandemente preocupante, conforme asseguram as notícias que chegam. Nada mais do que uma modesta cirurgia plástica, um implante de silicone, talvez, que restaure oficialmente as letras k, w e y, ainda que apenas para grafar palavras de origem estrangeira. Uma lipoaspiração, quem sabe, para banir de vez tremas indesejáveis, remover consoantes mudas que portugueses ainda usam e brasileiros já aboliram, suprimir acentos circunflexos em palavras com dois "os" ou dois "es" que apareçam juntos, erradicar acentos agudos nos ditongos "ei" e "oi" e eliminar os temíveis acentos diferenciais. Ou então uma pequena correção de perfil que reordene a regra das palavras compostas, interferindo na conduta dos hífens que delas desaparecerão ou nelas se introduzirão.
Pouca coisa, enfim, segundo se contabiliza e divulga. Pelas estatísticas mais confiáveis postas à disposição (não cheguei a conferir os números), serão alteradas 1,42% das palavras do idioma usado em Portugal contra 0,43% daquelas que constam dos dicionários brasileiros. Desconheço o impacto da reforma ortográfica no português escrito dos outros seis países lusófonos do mundo - Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor Leste, por ordem alfabética -, pois ninguém revelou este dado ou não se deu ao trabalho de levantá-lo. Se todos efetivamente usassem o idioma para escrever, e o fizessem com a correção e o respeito devidos ao nosso maior patrimônio, seriam afetadas, dizem, 230 milhões de pessoas em todo o mundo, 190 milhões das quais residentes no Brasil.
Parece que a quantidade de utentes, ou usuários, da língua realmente influiu na condução da reforma, levando escritores e personalidades portugueses a denunciar uma "rendição desnecessária à influência brasileira". José Saramago, por exemplo, do alto dos seus 85 anos e detentor do único Prêmio Nobel de Literatura (em 1998) obtido por um escritor que escreve em português, já anunciou que continuará a criar suas obras sem incorporar as mudanças de grafia previstas no acordo ortográfico aprovado no último dia 16 pelo Parlamento de Portugal. Outro grande nome das letras lusitanas, António Lobo Antunes, subscreveu, com 35 mil pessoas, uma petição aos deputados do seu país em que se alinham "fragilidades técnicas, científicas e políticas" do acordo e que afirma, enfática: "Não vamos nos deixar prejudicar por jogos de interesses que não beneficiam de nenhuma forma o idioma português".
Na verdade, a quem interessa mais esta mudança na ortografia da língua? Portugal já a modificou anteriormente em 1911, 1931 e 1945; o Brasil, em 1943 e 1971 (mais uma vez, nada se diz a respeito das reformas empreendidas pelos demais países da chamada CPLP - Comunidade de Países da Língua Portuguesa). Ótimo para os editores de dicionários e livros didáticos, que se fartarão de vender, sublinhando o caráter descartável dos livros de texto, que "precisam" ser substituídos a cada ano. Péssimo para as obras literárias, permanentes por natureza, que não serão reeditadas como os didáticos: a imensa e absoluta maioria dos livros nessa área jamais passa da primeira edição - e não será a reforma que fará mudar a situação.
O pior, no entanto, está reservado ao próprio idioma, já tão maltratado: teremos agora mais uma geração que, escorada na ignorância das mudanças em andamento, ficará perdida entre a "velha" e a "nova" ortografia, massacrando a língua portuguesa a valer.
Amilcar Neves, escritor
Fonte: DC
http://www.guiasaojose.com.br/novo/coluna/index_novo.asp?id=1015
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