Por Jorge Antunes. JA é professor emérito da UNB e desempenha um papel importantíssimo na cultura nacional, no campo da música erudita moderna. Entre as suas obras mais importantes figura a Ópera "OLGA", homenagem à militante comunista Olga Benário, recentemente apresentada em SP.
Estamos saindo de um processo eleitoral, que se constituiu como importante experiência para o desabrochar do PSOL, com vistas à construção de um futuro partido de massas. Poucos mandatos parlamentares conquistamos. Mas estes poucos mandatos fortalecerão as posiçõs legais de que precisamos para criação de pontos de apoio que se subordinarão à luta das massas e, também, a nortearão.
Essa nossa vitória garantirá espaços na tribuna do parlamento, para denunciar o regime e divulgar as lutas do povo. O exemplo nosso vai, certamente, ficar marcado na memória coletiva: a eleição burguesa é um jogo de cartas marcadas, mas as armas legais do inimigo podem ser usadas como armas de denúncia e conscientização política.
Uma das denúncias necessárias é aquela que aponta para a farsa do regime democrático-buguês. As massas se vêem perplexas frente à contradição da falta de democracia. Essa perplexidade intuitiva deve ser pedagogicamente esclarecida, através de ações diretas de nossa militância e de posicionamentos de nossas lideranças. A ditadura dos grandes empresários, que controlam os meios de comunicação e a máquina do Estado, é avassaladora.
Onde está essa farsa democrática de que falamos acima? No Brasil?
Ora, ela está por toda parte. Não é só aqui que o povo tem a ilusão de que pode mudar sua vida através do voto. A dominação imperialista e capitalista está aqui, acobertada pelo governo neoliberal de Lula, mas está também na Argentina, no México, na Bolívia, no Perú, no Chile, nas Américas, na Europa, na Ásia, no Oriente Médio, enfim, por toda parte de nosso planeta. Em alguns desses lugares, por vezes as eleições garantem importantes espaços para a esquerda e para a luta antiimperialista, mas a reação capitalista está sempre à espreita, ameaçadora, apoiada pelo poderio econômico que não respeita a auto-determinação dos povos.
Mas nesses mesmos lugares que os tentáculos do imperialismo alcançam, existem forças socialistas organizadas que precisam se integrar e se somarem em uma luta internacional conjunta. No Brasil e, afortunadamente no PSOL, existe uma organização preocupada e atuante justamente neste sentido: a construção da resistência popular, com o agrupamento internacional dos socialistas. Este é o MES, Movimento Esquerda Socialista.
Vejo-me totalmente identificado com a ideologia, as estratégias, as avaliações e a luta do MES. Uma das figuras proeminentes desta corrente, a deputada Luciana Genro, com campanha modesta em recursos foi a mais votada de Porto Alegre. Sua trajetória de honradez e coerência política vem se revelando modelo de luta sempre articulada com os movimentos sociais.
Documento elaborado recentemente pelos companheiros do MES da Bahia incluia frase que me tocou profundamente: "Somos parte da construção de um futuro possível, em que a arte não será privilégio de poucos, o trabalho se converterá em uma atividade sem exploração, e a vida se reproduzirá sobre a terra preservada, em vez da miséria, do medo e da destruição."
Como artista e ecologista, meu âmago vibrou ao ler esses belos princípios que reconstroem a utopia que não morreu. Fui candidato a deputado distrital em Brasília e, na luta diária, meu lema era: "Cultura de todos para todos". A arte que "não será privilégio de poucos" é minha permanente pregação de compositor engajado que nunca se encerra em torre de marfim. Esse foi o princípio que me norteou ao escrever a quase totalidade de minhas obras: a ópera Olga, baseada na vida de Olga Benario; a Sinfonia das Buzinas, para a campanha das Diretas; a Canção da Paz; a canção Cabra da Peste; obras para Coro; o Hino nacional alternativo; a Sinfonia em cinco movimentos; as obras de música eletroacústica; etc. O mesmo princípio também norteou minha atividade docente que já se estende por mais de trinta anos.
A cultura e a arte, em geral, são atividades essenciais para o processo da vida cidadã, para a socialização e para a conscientização política. Vivi, quando militante do PT, situações constrangedoras no debate interno. Militantes e dirigentes discriminavam a chamada música erudita, classificando-a como arte das elites. O Ministro da Cultura do governo Lula vem, há quatro anos, implementando a política da monocultura, cujos princípios muito se assemelham àqueles do stalinismo. Comprometido com as multinacionais do disco, o ministro se submete aos ditames da moda e da arte comercial de fácil consumo. Não foi por outra razão que a música erudita brasileira foi discriminada no Ano do Brasil na França, para surpresa e frustração dos próprios franceses.
Como músico revolucionário, praticante de música contemporânea de vanguarda, sempre me inspirei nas reflexões de Trotsky. Em Cultura e Arte Proletárias o revolucionário soviético afirma: "Seria absurdo concluir que os operários não necessitam da técnica da arte burguesa. Muitos caem nesse erro. "Dai-nos" - dizem eles -"alguma coisa que seja nossa, mesmo mal feita, mas que seja nossa." Isso é falso e enganoso. Arte mal feita não é arte e, em conseqüência, os trabalhadores não precisam dela. A arte, que se destina ao proletariado, não pode ser de baixa qualidade."
A arte de vanguarda, no domínio da linha chamada "erudita", pode servir à revolução. O conservadorismo artístico combina bem com todos os outros tipos de conservadorismo: o econômico, o social e o político. O futurismo e outras tendências modernistas foram defendidas por Lunatcharsky. Este colocou à frente do Comissariado do Povo para a Educação, vanguardistas como Shterenherg e permitiu que Malevitch, Tadine, Rodchenko e Maiakovsky apresentassem as suas ousadas inovações às massas através dos painéis e das decorações das grandes festas públicas.
O próprio Lunatcharsky resumiu assim a política cultural dos bolcheviques: "Declarei dezenas de vezes que o Comissariado Popular da Educação deve ser imparcial no que respeita às orientações particulares da vida artística [...] O gosto do comissariado e de todos os representantes do regime não deve ser tomado em consideração. Há que facilitar o livre desenvolvimento de todos os indivíduos e grupos artísticos. Não se deve permitir que uma tendência artística elimine outra valendo-se da glória tradicional adquirida, ou da moda."
Fidel Castro, em Cuba, permitiu também a mais completa liberdade de criação artística e literária, no campo da revolução, admitindo o florescimento das mais diversas escolas. "Prefiro um bom poema de amor a um mau poema político, porque o mau poema político desserve a revolução"- diria, num discurso dirigido aos intelectuais.
O Marxismo, dizia Lênin, conquistou sua significação histórica universal, como ideologia do proletariado revolucionário, porque não rechaçou, de modo algum, as mais valiosas conquistas da época burguesa, mas pelo contrário, assimilou e reelaborou tudo o que houve de valioso em mais de dois mil anos de evolução do pensamento e da cultura da humanidade."
O proletariado, explicava Rosa Luxemburgo, nada possuindo, não pode, na sua marcha para frente, criar uma cultura inteiramente nova, enquanto conservar-se nos quadros da sociedade burguesa". E concluía: "Tudo o que pode fazer hoje é proteger a cultura da burguesia contra o vandalismo da reação burguesa ..."
Embora atarefado com a preparação da conferência de fundação da IV Internacional, em 1938 Trotsky voltou a se dedicar ao debate sobre os rumos da arte e sua relação com a revolução socialista. As idéias antes defendidas na obra Literatura e Revolução (1924) eram não apenas resgatadas como eram reformuladas. Seu amadurecimento teórico e político foram úteis nas discussões com o poeta surrealista francês André Breton. Fruto dos encontros entre Trotsky e Breton é o manifesto de fundação da Federação Internacional da Arte Revolucionária Independente (FIARI), intitulado Por uma arte revolucionária independente.
No documento, Trotsky e Breton denunciavam o que o capital vinha fazendo em relação à arte, e faziam comparação com as atrocidades do estalinismo na Rússia. No texto, defendiam como revolucionária toda a arte que fosse independente e chamando todos os artistas revolucionários e independentes a se somarem à construção da FIARI.
Hoje, mais de que nunca, está colocado para nós o debate sobre a arte. O capitalismo não apenas mantém-se em sua crise, como a aprofunda, principalmente agora com a derrocada gradual da política neoliberal. Os artistas acabam por ter apenas dois caminhos: vender-se à burguesia, produzindo arte para ser consumida e em pouco tempo esquecida, ou lutar contra o capitalismo, mantendo sua independência de criação e somando-se aos trabalhadores de todos os países na construção da revolução socialista mundial.
Burocracias estalinistas são implantadas no Brasil e em outros países, na área da cultura, graças à dominação que o imperialismo e a indústria cultural impõem sobre os meios de comunicação. Considero que, afinado com a história e os objetivos do MES, poderei dar importante contribuição ao movimento, através de trabalho que possa dar lugar ao agrupamento internacional de artistas socialistas.
Estaremos, assim, contribuindo para que se reacenda o ideário da FIARI, em cujo manifesto, assinado em 25 de julho de 1938, na cidade do México, por Diego Rivera, Leon Trotsky e André Breton, foi defendida a independência da arte para a revolução, e a revolução para a liberação definitiva da arte.
Jorge Antunes
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