"Privada ou estatal, Vale sempre esteve a serviço da acumulação capitalista e é isso que precisa mudar"

"Privada ou estatal, Vale sempre esteve a serviço da acumulação capitalista e é isso que precisa mudar"

Por Gabriel Brito, no Correio da Cidadania

Sete dias após o rom­pi­mento da bar­ragem de mi­nério de ferro da Mina do Cór­rego do Feijão, Bru­ma­dinho (MG), são 110 mortos (71 já en­con­trados) e 231 de­sa­pa­re­cidos. Tal como em Ma­riana, em 2015, todos os atos desta peça dan­tesca se re­petem, desde go­vernos a em­presas, pas­sando por uma mídia re­gu­lar­mente ali­men­tada pela pu­bli­ci­dade da Vale, a maior mi­ne­ra­dora do mundo. Sobre o que muitos fazem questão de in­ter­pretar como crime am­bi­ental, en­tre­vis­tamos o so­ció­logo e agrô­nomo Rai­mundo Gomes da Cruz, que há dé­cadas acom­panha os em­pre­en­di­mentos da em­presa e seu his­tó­rico de de­pre­dação hu­mana e am­bi­ental.

"En­ten­demos que este mo­delo, nos moldes do sis­tema ca­pi­ta­lista, não in­te­ressa à so­ci­e­dade bra­si­leira, apenas aos exe­cu­tivos das em­presas que re­cebem vul­tosos sa­lá­rios e aci­o­nistas, que na sua mai­oria estão fora do país. Aqui na re­gião de Ca­rajás nós (dos mo­vi­mentos so­ciais em lutas) ques­ti­o­namos a ex­plo­ração mi­neral, ainda pela Com­pa­nhia Vale do Rio Doce, desde a dé­cada de 1980", ex­plicou.

Também mi­li­tante das Bri­gadas Po­pu­lares no es­tado do Pará, onde vive e co­nhece me­lhor a atu­ação da em­presa, Rai­mundo chama o acon­te­ci­mento de "Tra­gédia Mo­ni­to­rada", pois há anos os crí­ticos da em­presa de­nun­ciam bombas-re­lógio da mi­ne­ração de larga es­cala e abusos só­ci­o­am­bi­en­tais.
"Na re­gião de Ca­rajás cha­mamos atenção, prin­ci­pal­mente para a bar­ragem do pro­jeto Sos­sêgo e do pro­jeto Sa­lobo, no mu­ni­cípio de Ma­rabá, que vai para sua ter­ceira etapa de ex­pansão".

Dessa forma, Rai­mundo Cruz es­pera que fi­nal­mente o de­bate sobre o mo­delo de ex­plo­ração mi­neral bra­si­leiro seja en­ca­rado com pro­fun­di­dade pela so­ci­e­dade e deixe de ser um as­sunto res­trito a in­te­res­sados e afe­tados. 

"Outra si­tu­ação, um pouco mais di­fícil, é a atu­ação junto aos tra­ba­lha­dores e tra­ba­lha­doras da Vale, para que com­pre­endam que seus tra­ba­lhos estão vol­tados para o saque de seu país e de seu povo. E neste mo­mento, em es­pe­cial, pre­ci­samos ir à rua para de­nun­ciar a si­tu­ação e mos­trar que uma outra re­a­li­dade é pos­sível e se faz ne­ces­sária. En­quanto ainda há tempo".

A en­tre­vista com­pleta pode ser lida a se­guir.

Cor­reio da Ci­da­dania: O que co­mentar do rom­pi­mento da bar­ragem de Bru­ma­dinho, mais um grande de­sastre am­bi­ental da mi­ne­ração em solo bra­si­leiro, cujo nú­mero de mortos e de­sa­pa­re­cidos já é al­tís­simo?

Rai­mundo Gomes da Cruz: O rom­pi­mento da bar­ragem de Bru­ma­dinho é mais um ato de ir­res­pon­sa­bi­li­dade da em­presa Vale para com os ver­da­deiros e ne­ces­sá­rios cui­dados que tem de ter com suas bar­ra­gens de re­jeitos país afora. 

Nós das Bri­gadas Po­pu­lares es­tamos cha­mando de Tra­gédia Mo­ni­to­rada. Por quê? Porque os téc­nicos sabem como se en­con­tram as pre­cá­rias si­tu­a­ções das bar­ra­gens, as po­pu­la­ções de­nun­ciam, mas a voz au­to­ri­tária da em­presa com o poder que tem sobre os go­vernos e po­lí­ticos ca­na­lhas deste país faz calar todos os cla­mores. 

No caso de Bru­ma­dinho fica muito claro o que afir­mamos. Mo­ra­dores re­latam que re­pre­sen­tantes da em­presa "pas­saram avi­sando para fi­carem atentos ao alerta", só que não houve o alerta. Eles sa­biam o pe­rigo que as bar­ra­gens ofe­re­ciam às po­pu­la­ções e aos tra­ba­lha­dores.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como avalia as pri­meiras re­a­ções do go­verno?

Rai­mundo Gomes da Cruz: As re­a­ções dos go­vernos são as mesmas. Muitas fa­la­ções que de­mons­tram di­versos des­pre­paros para se po­si­ci­o­narem di­ante da tra­gédia e to­marem po­si­ções enér­gicas di­ante das em­presas. Pro­curam trans­ferir a res­pon­sa­bi­li­dade de so­lução dos pro­blemas para as fa­mí­lias, como fica claro com a li­be­ração para saque do FGTS. A po­pu­lação não tem de re­correr a suas re­servas para so­lu­ci­onar o pro­blema, o re­curso tem de sair das em­presas e do Es­tado, que é co­ni­vente com o des­mando das em­presas.

É di­fícil falar das re­a­ções pa­té­ticas deste go­verno, que um dia fa­lava em re­baixar as exi­gên­cias para li­cen­ci­a­mento e agora fala em ri­gidez. Além do res­gate dos corpos não há uma agenda po­si­tiva no sen­tido de res­pon­sa­bi­lizar du­ra­mente as em­presas. 

Cor­reio da Ci­da­dania: Como fica o dis­curso do novo go­verno, no sen­tido de fle­xi­bi­lizar le­gis­la­ções am­bi­en­tais e li­berar terras in­dí­genas para mi­ne­ração?

Rai­mundo Gomes da Cruz: O dis­curso pode até de­sa­pa­recer por algum tempo, mas na prá­tica o dis­curso es­tará pre­sente, porque esta cha­mada fle­xi­bi­li­zação (não cum­pri­mento da lei) faz parte das or­dens im­pe­ri­a­listas para am­pliar o saque do pe­tróleo, do gás, das águas e das ma­deiras. Este é um go­verno a ser­viço dos im­pe­ri­a­listas, prin­ci­pal­mente a ver­tente norte-ame­ri­cana, não te­nhamos dú­vidas. Por­tanto, podem até mudar o dis­curso, mas a in­ter­venção nos ter­ri­tó­rios, con­ces­sões para ex­plo­ração mi­neral e plantio de soja vai con­ti­nuar ace­le­rada. 

Cor­reio da Ci­da­dania: Em sua visão, quais as res­pon­sa­bi­li­dades a serem dis­tri­buídas pelo ocor­rido?

Rai­mundo Gomes da Cruz: As res­pon­sa­bi­li­dades pelo ocor­rido devem re­cair ao Es­tado e à Vale. O Es­tado por não fis­ca­lizar os pro­jetos, per­mi­tindo todo tipo de ab­surdos que as em­presas de­se­jarem fazer. No es­tado do Pará já vimos de­nun­ci­ando todos os pro­jetos de mi­ne­ração pelos des­casos, mas nada é feito pelo Es­tado. 

Na ver­dade este apo­dre­cido Es­tado há muito tempo não faz gestão dos ter­ri­tó­rios, quem faz é a Vale. A Vale tem de ser res­pon­sa­bi­li­zada por esta tra­gédia, a de Ma­riana e as tra­gé­dias anun­ci­adas em todos os es­tados que ela atua.

Cor­reio da Ci­da­dania: Não es­tamos per­dendo tempo com o de­bate entre pri­va­tismo e es­ta­tismo na gestão de uma em­presa/setor de ta­manho porte e dei­xando de lado o que seria mais im­por­tante, isto é, o mo­delo de ex­tração de ma­té­rias primas em vigor?

Rai­mundo Gomes da Cruz: Em 2011 de­sen­ca­de­amos a Cam­panha Contra o Saque dos Nossos Mi­né­rios, que tem como prin­cipal ob­je­tivo ques­ti­onar o mo­delo mi­neral no país. En­ten­demos que este mo­delo, nos moldes do sis­tema ca­pi­ta­lista, não in­te­ressa à so­ci­e­dade bra­si­leira, apenas aos exe­cu­tivos das em­presas que re­cebem vul­tosos sa­lá­rios e aci­o­nistas, que na sua mai­oria estão fora do país. 

Aqui na re­gião de Ca­rajás nós (dos mo­vi­mentos so­ciais em lutas) ques­ti­o­namos a ex­plo­ração mi­neral, ainda pela Com­pa­nhia Vale do Rio Doce, desde a dé­cada de 1980. Con­si­de­ramos que o Es­tado a ser­viço da acu­mu­lação ca­pi­ta­lista e dos im­pe­ri­a­listas não tem ca­pa­ci­dade para ge­ren­ciar qual­quer bem pú­blico. Tudo se torna pro­pri­e­dade pri­vada dos ca­pi­ta­listas. 

Cor­reio da Ci­da­dania: Ainda assim, o que fazer em re­lação à Vale? 

Rai­mundo Gomes da Cruz: Eu acho que não é só com a Vale. Este país pre­cisa de uma pro­funda re­vo­lução para co­locar suas ri­quezas em be­ne­ficio da so­ci­e­dade e não para um pe­queno grupo de san­gues­sugas. Porque a Vale re­pre­senta in­te­resses im­pe­ri­a­listas, no sen­tido de re­a­lizar o saque dos nossos mi­né­rios, sempre com custos de ex­tração e trans­porte bai­xís­simos, sendo ela pri­vada ou es­tatal. 

Países como a Bo­lívia, con­si­de­rada um dos países da Amé­rica La­tina que mais avançou na es­ta­ti­zação de suas ri­quezas na­tu­rais, con­ti­nuam sub­missos às or­dens do mer­cado in­ter­na­ci­onal. Por­tanto, não se avançou o ne­ces­sário para su­perar o mo­delo de do­mi­nação. Não vamos mudar o mo­delo so­mente im­pondo à Vale mais san­ções, au­mento de im­postos e alí­quotas da CFEM (Com­pen­sação Fi­nan­ceira para Ex­plo­ração Mi­neral). Temos que trans­formar este mo­delo pro­fun­da­mente.

Cor­reio da Ci­da­dania: São muitas bombas re­ló­gios que a mi­ne­ração bra­si­leira tem pelo ter­ri­tório? Como lidar com a grande quan­ti­dade de bar­ra­gens es­pa­lhadas pelo país?

Rai­mundo Gomes da Cruz: Em um ar­tigo que es­crevi há dois anos com o com­pa­nheiro Thiago Mar­tins, de­no­mi­nado Alerta para uma Tra­gédia em Curso, nós cha­mamos atenção para o caso da bar­ragem de re­jeitos do pro­jeto Sos­sêgo, da Vale, no mu­ni­cípio de Canaã dos Ca­rajás, es­tado do Pará. Porque estas bar­ra­gens de re­jeitos da ex­plo­ração de cobre acu­mulam muito mais subs­tân­cias tó­xicas do que as de ex­plo­ração de ferro. 

Na re­gião de Ca­rajás cha­mamos atenção, prin­ci­pal­mente para a bar­ragem do pro­jeto Sos­sêgo e do pro­jeto Sa­lobo, no mu­ni­cípio de Ma­rabá, que vai para sua ter­ceira etapa de ex­pansão. Para lidar com esta questão temos de mo­bi­lizar as po­pu­la­ções de todos os es­tados ame­a­çados, para a for­mação de Bri­gadas que deem conta de aden­trar em tais pro­jetos para ave­ri­guação da si­tu­ação, e se ne­ces­sário pa­ra­li­sação de ime­diato. Para tanto, vamos ter que en­frentar as mi­lí­cias ar­madas da Vale e seu sis­tema de es­pi­o­nagem.  

Cor­reio da Ci­da­dania: São di­versos os mo­vi­mentos so­ciais de atin­gidos por bar­ra­gens e pro­jetos mi­ne­ra­dores, em es­pe­cial da pró­pria Vale. O que fazer para tornar essas lutas mais vi­sí­veis e en­cam­padas pela so­ci­e­dade bra­si­leira?

Rai­mundo Gomes da Cruz: Es­tamos apos­tando na Cam­panha Contra o Saque dos Nossos Mi­né­rios. Tornar vi­sível as con­tra­di­ções ge­radas pela ex­plo­ração mi­neral, tanto no que se re­fere à de­gra­dação am­bi­ental em re­lação a ou­tras ati­vi­dades, como ge­ração de po­breza, mi­séria, vi­o­lência e acu­mu­lação de ri­queza por poucos. 

Outra si­tu­ação, um pouco mais di­fícil, é a atu­ação junto aos tra­ba­lha­dores e tra­ba­lha­doras da Vale, para que com­pre­endam que seus tra­ba­lhos estão vol­tados para o saque de seu país e de seu povo. E neste mo­mento, em es­pe­cial, pre­ci­samos ir à rua para de­nun­ciar a si­tu­ação e mos­trar que uma outra re­a­li­dade é pos­sível e se faz ne­ces­sária. En­quanto ainda há tempo.


Ga­briel Brito é jor­na­lista e editor do Cor­reio da Ci­da­dania.

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey