Indiferença: A tragédia dos migrantes não comove o Velho Mundo

O centro de Acolhimento de Mineo, para refugiados, em uma região agrícola no meio da Sicília, longe de olhares indiscretos, é um lugar entre o paraíso e o inferno. É um enorme resort com 400 casas de boa qualidade, construído para os militares americanos da base aeronáutica da Otan em Sigonella. Esvaziado pela forte redução dessa presença, virou centro para acolher refugiados no governo Berlusconi, em 2011. Hoje hospeda 3,2 mil migrantes, em uma espécie de limbo entre dignidade e depravação.

Nessa Babilônia foi descoberto um terminal da rede criminosa de tráfego de seres humanos, que há anos organiza cruzeiros da morte entre a costa africana e a italiana. Recentes investigações levaram à prisão de 15 suspeitos, quase todos ex-migrantes. A escuta de telefonemas entre esses criminosos, seus cúmplices em Milão e os chefões na Líbia revelou detalhes inéditos e surpreendentes desse submundo.

 Os investigadores italianos estão se defrontando com uma rede criminosa internacional muito mais organizada e complexa do que se imaginava, que chega a recrutar migrantes por pobreza e refugiados das guerras nos lugares de origem e até acompanhá-los no país de destino. Essa viagem dantesca em três etapas começa nos países mais pobres da África ou nos campos de prófugos do Oriente Médio, com travessia de milhares de quilômetros até a costa da Líbia. Ali, alguns chefões já identificados, de origem africana ou síria, organizam a acolhida em miseráveis campos de concentração, principalmente na área de Trípoli, controlada pelas milícias islâmicas chamadas Amanhecer da Líbia. Para operar impunemente no país, controlando entradas e saídas das prisões ou desfrutando de proteção militar (entre outros "privilégios"), os chefes dessa máfia mantêm vínculos estreitos com os poderes políticos locais, compartilhando com eles os lucros indecorosos do tráfico.

O cruzeiro a bordo de embarcações podres é só a apavorante etapa intermediária de uma viagem que continua nos centros de acolhida sicilianos e vira depois transferência mais tranquila até o Norte da Itália. Dali, sempre com apoio do crime, enfrenta-se a última etapa da viagem até países mais ricos, Alemanha in primis, em busca de familiares ou amigos. O custo das três etapas aproxima-se de 5 mil dólares por pessoa, com algum desconto para africanos mais pobres que, em contrapartida, ficam nas estivas e são os primeiros a se afogar em caso de naufrágio.

Estimativas indicam que 15 mil emigrados clandestinos chegaram à Itália de janeiro até 15 de abril deste ano. Se acrescentarmos a esse número os milhares de mortos e desaparecidos, teremos uma pálida ideia do business milionário dessa nova forma de comércio escravista. Os investigadores revelam também a incrível facilidade com que os traficantes movimentam seus capitais entre bancos internacionais (até agora sabe-se de suecos, holandeses e dos Emirados Árabes), sinal de poderosas conivências políticas e financeiras. Seguindo o percurso desse dinheiro, prenunciam-se logo inquietantes revelações.

Diante dessa eficiente organização criminosa, é compreensível a atenção que os políticos, especialmente italianos e franceses, vêm dedicando à necessidade de reprimi-la, tentando envolver na ação a União Europeia como um todo. Muito menos compreensível e justificável é a modesta atenção dedicada à prática do acolhimento. Só a Igreja Católica e uma minoria de europeus pedem o restabelecimento da missão italiana Mare Nostrum em versão potencializada e europeia. Surdos a esses apelos e mais atentos ao eleitorado xenófobo, os governos europeus pensam em fortalecer a limitada missão Triton, que tomou o lugar da anterior. O recado é claro: a missão italiana, que se estendia até as águas líbias, tinha como missão o resgate de vidas e, secundariamente, a repressão ao crime. Já a missão europeia restringe-se ao patrulhamento das águas e à aplicação do direito de navegação, tendo à disposição um terço dos fundos da missão italiana para eventual socorro.

Nessas horas, os políticos lembram os 800 mortos do último, estúpido naufrágio como uma espécie de ritual, para depois se concentrar em elucubrações sobre possíveis medidas de repressão unilateral, de duvidosíssima eficácia, para combater o tráfico em território líbio, o que os líbios nunca aceitarão. Políticos italianos e gregos, em particular, elaboram com superficialidade amadora opções, como o uso de drones, bloqueio naval ou bombardeio das embarcações vazias nos portos líbios, fazendo inaplicáveis paralelismos com a luta contra a pirataria marinha.

O rascunho da resolução do Conselho Europeu de Chefes de Governo, que se reuniu em Bruxelas na tarde de 23 de abril, já circulava no dia anterior. A Fundação Migrantes, da Conferência Episcopal Italiana, comentou que tal rascunho era "absolutamente fraco e em alguns aspectos, vergonhoso". As soluções dos fenômenos migratórios são complexas e de longo prazo, mas o imediatismo que governa a Europa não tem instrumentos para enfrentá-las de maneira estratégica.

A Europa, antiga pátria da solidariedade, é dominada hoje por uma maioria que a quer fechada como fortaleza. A classe dirigente do continente assemelha-se cada vez mais à elite brasileira, que, diante da miséria, tem remédio muito eficaz: olhar para o outro lado.

  

por Claudio Bernabucci - Carta Capital

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