INTERVENÇÃO DE LUÍS FAZENDA SOBRE IMIGRAÇÃO

Sr. Presidente Sras e Srs Deputados

No dia 29 de Junho de 2002, foi discutida nesta assembleia uma proposta de autorização legislativa que visava alterar a lei de entrada e permanência de estrangeiros.

Um ano e meio depois, após longos meses de negociações intragovernamentais, é-nos apresentada uma antecipação da regulamentação que não podia ser mais decepcionante. O que se antecipa é um quadro regulamentar que ignora os apelos à generosidade feitos pelo Presidente da República. O que se antecipa é um quadro regulamentar insensível aos apelos de amplos sectores sociais, desde sindicatos, organizações de imigrantes, associações de direitos humanos, organizações anti-racistas, figuras públicas e sectores da Igreja Católica.

Dos tumultuosos caminhos da negociação entre os dois partidos da maioria, entre o propõe e contrapõe, entre o humanismo humanismo de fachada e o falso rigor, resultado é pouco mais do que já estava. Apenas mais e mais burocratizado. Não nos iludamos: porque era difícil introduzir no quadro legislativo publicado em Fevereiro do ano passado qualquer retoque de humanidade, o proclamado esforço de adocicar a regulamentação é pura e simplesmente uma fraude.

Se não, vejamos:

Disse o Governo que ia regularizar os brasileiros que cá estivessem em situação irregular, com base no Acordo de Contratação Recíproca entre o Estado português e o Estado brasileiro, procurando contornar as regras estabelecidas na Lei de Imigração, que exigem que os vistos de trabalho sejam concedidos nos consulados do país de origem dos imigrantes. Foi anunciado que os imigrantes brasileiros poderiam então obter visto de trabalho junto a outros consulados portugueses, nomeadamente em Vigo ou Sevilha. Mas, e esta é a primeira fraude, são exigidos vários documentos que têm de ser obtidos no Brasil (cuja obtenção depende de procuração ou… de uma ida ao Brasil). Inúmeros imigrantes foram a Vigo, ou Sevilha e voltaram para trás sem ver a sua situação regularizada. Resultado: de 31 mil imigrantes que se inscreveram no recenseamento estão, até ao momento, regularizados apenas 76 imigrantes. O acordo com o Presidente Lula, assinado com tanta pomba e circunstância, deu, até agora, isto: 76 imigrantes legalizados. O governo deu esperanças a estes imigrantes. O governo enganou estes imigrantes. Mais uma vez se prova que o governo disfarça com retórica do PSD a aplicação do programa do PP.

Insiste a maioria nos acordos bilaterais, que mais do que constituírem instrumentos de regulação das relações entre Estado, passam agora a constituir instrumentos de discriminação de imigrantes ou potenciais imigrantes em função da sua nacionalidade, o que fere de morte qualquer imperativo constitucional de igualdade. Há uma agravante nesta possibilidade de adopção de uma política de selectividade de origens nacionais. A experiência de Portugal e de outros países com tradições migratórias tem demonstrado que a tendência é para que os fluxos migratórios se avolumem exactamente na ausência de mecanismos de promoção da migração legal e para que, nesses casos, se verifiquem processos de constituição de estruturas informais e clandestinas de recrutamento de mão-de-obra que, desprovidas de estatuto legal, tornam-se mais apetecidas. Esta situação facilmente concretizar-se-á se forem levadas a cabo as intenções de celebrar acordos bilaterais apenas com alguns países da CPLP, enquanto a realidade recente é a do incremento de fluxos migratórios das mais diversas origens, nomeadamente dos países de Leste. Que critérios serão estabelecidos para a concessão de vistos de trabalho ou de residência a nacionais de países com os quais Portugal não estabeleça qualquer acordo? Terão possibilidades de acesso a um visto ou sobrar-lhes-á apenas a clandestinidade, mesmo que camuflada num visto de turista, como solução para efectuar qualquer percurso migratório?

Diz a maioria que garante o acesso à saúde e à educação por crianças estrangeiras, ainda que filhas de imigrantes legais. E a protecção jurídica e social, quem a garante? E a licença de maternidade e paternidade, em caso de doença destas crianças, quem a garante? E a protecção laboral dos pais? E o direito à estabilidade e dignidade de vida nas suas mais variadas dimensões, quem o garante? É que as crianças não vão ao hospital sozinhas, não estudam sozinhas, não vivem sozinhas.

E como pretende a maioria fazer a articulação desta medida com eminência de expulsão dos pais. Pretende aceitar os filhos na escola, para depois expulsar os pais? A hipocrisia não tem limites.

Nada diz a maioria sobre o reagrupamento familiar, restrito apenas aos que possuam autorização de residência há mais de um ano. Nem sobre as dificuldades de obtenção de autorização de residência autónoma, por exemplo, por uma mulher imigrante que seja vítima de violência doméstica. Nem sobre a lastimável situação dos familiares de imigrantes com autorização de permanência que vêem dificultada qualquer possibilidade de trabalhar, em condições de protecção legal.

Nada diz a maioria sobre como prevê regulamentar os mecanismos de cancelamento de vistos, de autorizações de permanência e de autorizações de residência, nem sobre quais os critérios de renovação destas últimas. Basta o imigrante ficar desempregado para perder o direito ao seu documento? Quais os critérios que serão estabelecidos para a comprovação dos “meios de subsistência” e das “condições de alojamento”? Quais a taxas aplicadas para os casos de renovação de documento?

Diz a maioria que outros imigrantes, para além dos brasileiros, serão regularizados. Só que critérios confusos. Um primeiro critério é claro – entrada antes de Março de 2003. O outro critério – descontos à segurança social e ao fisco – faria todo o sentido se garantisse o acesso automático à legalização, mas é acrescido da exigência de registo criminal, referente ao nosso país e ao país de origem. Tentem tratar deste registo em alguns dos países de origem e percebem do que estamos a falar.

E os imigrantes que, por trabalharem em situação de clandestinidade, não tenham tido oportunidade de regularizar a sua situação perante a segurança social e o fisco? A proposta é inovadora: deverão provar que a responsabilidade é do empregador. A responsabilidade é do empregador, mas o ónus da prova cabe ao trabalhador, que se substitui assim às entidades de inspecção do trabalho.

O quadro é preocupante. A proposta do governo deixará de fora dezenas de milhares de imigrantes deixando-os à mercê de entidades patronais que deles abusa e apenas facilitará o monstruoso de redes mafiosas de exploração de mão-de-obra imigrante. Ou pretenderá a maior simplesmente eliminá-los, procedendo à sua expulsão?

Não seria mais simples, justo e eficaz a abertura de um processo de regularização extraordinária, tal como propôs atempadamente o Bloco de Esquerda? A abertura de um processo de regularização extraordinária – longe de ser desfasada da realidade, é uma solução realista, incontornável e a resposta necessária para o estabelecimento de critérios de legalização justos e claros.

A maioria anuncia uma quota de 20 mil imigrantes para este ano. Enterra a cabeça na areia. Irresponsavelmente, hipoteca a esperança de reequilíbrio demográfico e acomoda-se à fatalidade do envelhecimento de uma população que, segundo previsões dos mais variados indicadores nacionais e europeus, será drástica. Olhando apenas para o imediatismo da conjuntura, recusa-se a responder às necessidades estruturais do país.

Sr Presidente

Srs e Srs Deputados

A repressão é a pedra de toque deste Governo. Controlo máximo dos imigrantes e restrição dos seus direitos. Do seu direito em cá ficar, do seu direito a uma vida com dignidade do seu direito a trazer os seus familiares. A suposta generosidade no acolhimento está patente na restrição do reagrupamento familiar, na introdução de limitações para a renovação da autorização de residência, na possibilidade de cancelamento do documento, apenas por alterações da vida do imigrante. As autorizações de permanência deixam de existir, mas que os as detêm (se conseguiram renová-la) continuam a ver o seu futuro inseguro.

De rigor e generosidade esta lei não tem nada. É clara nos seus objectivos de restrição e repressão e confunde caridade com generosidade. Porque faz do imigrante um problema e maltrata aqueles que “dão lucro a Portugal”, esta política que nos é apresentada pode ser “una”, mas apenas na hipocrisia. Não é difícil, ao ler esta lei, saber qual é, de facto, a sua origem partidária. E isso é demasiado preocupante para que nos possamos calar.

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[1] Agregados de cidades com inter-relações funcionais.

[2] Área de influência de um ou vários pólos urbanos (serve e é servida).

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