Entre o tradicional e o contemporâneo, o particular e o universal, na obra de Solha
Por Alexandra Vieira de Almeida
Na narrativa em versos de W.J.Solha, A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso (Penalux, 2018), temos o embate cultural entre vozes das mais diversas, criando-se, assim, um texto rico em referências e estilos nesta obra monumental. Retomando o gênero épico em seus primórdios onde a narrativa era composta por versos, o autor mistura estilos a partir da junção entre o tradicional e o contemporâneo, o particular e o universal. Utilizando-se da épica, Solha reestrutura aquilo que é um fenômeno do todo e o subtrai para o regionalismo nordestino a partir do cordel e do rimance típico do Nordeste. Com estrofes de dez versos decassílabos, se vale do martelo agalopado, dando ritmo e musicalidade ao seu livro. Nos duetos entre os personagens Ariano Suassuna e Miguel de Cervantes, percebemos o universalismo das línguas com a utilização das línguas portuguesa e espanhola. Além disto, nos faz refletir sobre a constante invasão da língua inglesa no nosso idioma. Mas como resposta antropofágica, temos a utilização de um vocabulário típico do nordeste, com nossa caatinga, alimentos típicos da região e aspectos da flora e fauna, fazendo de seu livro um diálogo, um repente, ou seja, uma resposta à globalização a que estamos submetidos, com a revelação de nossas particularidades, num projeto de brasilidade que dialoga com um estrangeirismo reinante em nações periféricas.
Há também o embate entre forma e conteúdo no seu romance em versos. Valendo-se da estrutura tradicional do martelo agalopado, produz um conteúdo rico em nuances e mais livre da forma. O conteúdo apresenta uma mistura de línguas e culturas, com a trágica visão da violência e da crueldade das estruturas de poder. Dulcineia, com sua naturalidade não tão bela se utiliza do artifício para seduzir (toma um banho de loja) Trancoso (nosso Dom Quixote), os heróis, que juntamente com Bozo (nosso Sancho Pancha) tentarão driblar os aviões da Força Aérea Brasileira para implodir a Pedra do Reino, onde uma multidão de romeiros se aglomera para que a lenda se torne realidade, ou seja, o encoberto Dom Sebastião retorne para trazer um reino de paz para uma nação tão sofrida. Com o retorno de pessoas que já morreram como, por exemplo, Miguel de Cervantes e Ariano Suassuna, personagens do livro de Solha, temos a mistura dos planos terreno e celestial, fazendo a junção entre o mundo dos vivos e dos mortos. A mídia comparece em peso, os principais jornais do mundo se concentram no sertão nordestino para a cobertura de tal fato, que embora mítico e místico, atrai os olhares do jornalismo objetivo e realístico que conhecemos. Utilizando-se do fantástico, do mítico e do onírico, Solha narra com forte realismo, trazendo o pictórico em sua fusão de cores e matizes.
Daniel Zanella, na orelha do livro de Solha, disse: "O rimance 'A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso' entrega o que podemos chamar de uma novela de cavalaria para tempos pós-modernos (dentro da lógica nordestina)". Dessa forma, encontramos neste livro magistral de Solha a mistura entre o tradicional e contemporâneo, o particular e o universal, fundindo culturas e estilos. E no belo prefácio do livro, de João Carlos Taveira, temos: "A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso é mais que uma metáfora a serviço de temas os mais variados". E ampliando aqui, podemos ver que Solha também é um aglutinador de formas, pois além de utilizar-se da narrativa e da poesia, revela as formas do gênero dramático, como podemos perceber a partir do título, a tragédia. Assim, a partir de seu caráter polivalente, encontramos os três gêneros existentes na nossa literatura em um único livro: o épico ou narrativo, o lírico e o dramático. Tragédia porque, como disse Aristóteles, a história se passa da felicidade à infelicidade, com o acontecimento funesto no final. Além disso, o tom dramatizado de seus versos dá o caráter cênico à sua narrativa em versos.
O circo de Sô Leo apresenta-se como um teatro de variedades, os famosos vaudevilles, com suas maravilhosas atrações. Aqui comparecem os personagens reais como fictícios e os fictícios como reais em sua obra, Miguel de Cervantes e Ariano Suassuna aparecem como uma das atrações do circo, juntamente com Trancoso, Dulcineia e Bozo. Mesclando o caráter real ao ficcional, Solha não admite fronteiras entre estes planos, elevando sua narrativa a partir da riqueza de personagens que comparecem na sua obra. Terry Eagleton, no seu livro de crítica literária, Teoria da Literatura: uma introdução, já dizia que não era produtiva para a literatura a díade fato x ficção. E temos na narrativa de Solha não este embate, mas a mistura entre ambos, perfazendo o caminho do mítico ao realista em A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso. Além do mítico, temos presente, a religiosidade recorrente do Nordeste com suas crenças. Dessa forma, vemos o mais antigo juntar-se ao mais novo. Solha recria, reinventa estas outras vozes, fazendo um trabalho de deglutição do universal ao particular, na sua força antropofágica cultural.
Com versos rimados, a narrativa de Solha adentra a profundidade de nossa cultura particular, traduzindo a essência de nosso povo com viagens rumo à Pedra do Reino, que dá nome a uma obra de Ariano Suassuna, pois o livro de Solha é uma homenagem aos grandes nomes da literatura nacional e também da estrangeira. Passando pela literatura, sua obra perpassa por outras áreas do saber, como o cinema e o jornalismo. Com tanta riqueza de saberes, somos levados também a citações da Bíblia, do mito e de grandes nomes da literatura, como Fernando Pessoa, como exemplo. Este é o cosmopolitismo de seu livro, que carrega muitos saberes. O escritor aqui em questão é um grande conhecedor da cultura, revelando no seu livro uma narrativa plena de seu domínio estético. Com coerência e riqueza de detalhes, seu romance é de grande fôlego. Não é para principiantes, mas para leitores conhecedores também dos vários matizes literários. Unindo o popular ao erudito, esta ambiguidade enobrece sua obra. Este jogo de formas, estilos e épocas torna seu romance algo imprescindível para as futuras gerações de leitores que só têm a ganhar com a leitura de um livro tão variado e rico em camadas. Como no palimpsesto, temos que extrair suas camadas, para ver o que se esconde de tão verdadeiro e enigmático em A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso.
Portanto, encontramos em A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso, um escritor pleno de seu domínio da escrita e da cultura universal e brasileira. Um livro de extrema beleza, com grande força vocabular, formal e conteudística. Mistura também o mais tradicional, como a religião e a cultura popular e local, ao mais tecnológico, com uma cultura de laptops e celulares que gravam tudo. Um verdadeiro painel que percorre desde o mito nórdico com sua Yggdrasil, uma árvore colossal, considerada o eixo do mundo até a Pedra do Reino, no sertão nordestino. Imagens da natureza de vários eixos do mundo. E para finalizar, nada melhor do que citar um trecho do livro: "Ao fundo,/um grupo de camponeses - que passa/com suas reses - confunde-se,/dócil,/com as figuras de barro do mestre Vitalino/e as de Manuel Eudócio".
"A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso", ficção. Autor: W. J. Solha. Editora Penalux, 98 págs., R$ 35,00, 2018.
Disponível em:
http://editorapenalux.com.br/loja/a-engenhosa-tragedia-de-dulcineia-e-trancoso
E-mail: [email protected]
A resenhista
Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: "40 poemas" e "Painel". "Oferta" é seu terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro "Dormindo no Verbo", pela Editora Penalux.
Contato: [email protected]
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