No que somos iguais,nós os gaúchos, eles, os americanos
Na sua tarefa de construção de um tipo de pensamento único, o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, acolhe semanalmente em seus espaços, dezenas de representantes do empresariado, da política e da universidade, todos irmanados na ideia de que o Rio Grande deve ser reconstruído a partir daquilo que eles imaginam que seja moderno e eficiente.
Na última semana coube ao publicitário Alfredo Fedrizi, que hoje se apresenta como consultor em inovação em tecnologia a repetir a velha história de que as dificuldades econômicas do Estado se devem a um tipo de pensamento atrasado e conservador.
Nada de se discutir as relações reais no mercado de trabalho, que isso não interessa, mas sim suas conseqüências na superestrutura política, ideológica e cultural.
O articulista levanta fatos reais para defender sua tese, mas os apresenta de forma isolada, sem tirar deles suas verdadeiras conseqüências.
Assim, somos um estado que cultiva um sentimento de exclusão em relação ao restante do País, baseado em premissas falsas da História (uma guerra perdida, um folclore construído nas cidades, heróis de pés de barro) ,o que nos impede de avançar, como os outros Estados (não diz quais) em busca da modernidade e da eficiência funcional.
Esquece ou não sabe, o articulista que essa construção fantasiosa (o gauchês) é mais uma resposta à uma falta de um modelo econômico progressista, do que sua causa.
Por que não fizemos uma reforma agrária radical, exaltamos esse tipo do gaúcho fronteiriço, guerreiro e valente, criado (e ai Fedrizi tem razão) por Paixão Cortes e Barbosa Lessa.
O interessante é que todo esse folclore, apesar de mentiroso na essência, tem um aspecto positivo, na medida em que ele funciona como um elo entre todos os gaúchos, projetando um sentimento de orgulho que pode ser compartilhado por todos os que aqui nasceram.
Obviamente, é um sentimento perigoso, que extremado, nos levaria ao xenofobismo e ao preconceito racial, se aproximando do fascismo e até do nazismo, mas que, em pequenas doses, alivia as dores da exclusão social em que vive a maioria dos gaúchos.
O interessante é que essa mitologia, quando vista em outros povos, não é considerada um motivo de atraso. Veja-se o caso da história da expansão da economia dos Estados Unidos para o Oeste, com a dizimação de todos os povos indígenas que viviam na região, que o cinema transformou numa gesta heróica e símbolo da coragem e da determinação do homem branco americano.
Agora mesmo, ainda que com atraso, estou vendo na televisão a série Designated Survivor, com Kiefer Sutherland. Um ataque terrorista explode o Capitólio, no momento em que o Presidente, seus secretários e congressistas estão reunidos e mata a todos. Tom Kirkman, um modesto Secretário de Urbanismo, que não foi convidado, porque seria demitido no dia seguinte pelo Presidente, se vê de repente transformado no único sobrevivente na hierarquia governamental e precisa assumir a Presidência.
A série é bem fraca, cheia de diálogos piegas, de problemas familiares banais, de amores previsíveis e de uma tolerância racial de pouca credibilidade, mas o personagem principal - correto, franco e de boas intenções - representa muito bem o estereótipo do homem médio americano, tão falso como o nosso gaúcho fronteiriço.
O seu sentimento de patriotismo e de uma genuína certeza das boas intenções do homem norte-americano sobre os selvagens terroristas, obviamente árabes, são sempre mesclados pela tolerância com os que pensam diferentes, desde que não tentem mexer com o "american way of life".
Lá, como aqui, tenta-se criar o sentimento de pertencimento a um clube fechado (o homem branco americano e o gaúcho fronteiriço) para não se discutir as causas mais profundas, que estão na essência do sistema capitalista de exclusão social.
Marino Boeira é jornalista, formado em História pela UFRGS
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