No tempo dos capitães-generais

 Extraída de um sermão do padre Antonio Vieira (1608-1697), a metáfora do sol e da sombra dá titulo ao novo livro de Laura de Mello e Souza, professora de História da Universidade de São Paulo, O Sol e a Sombra: política e administração na América Portuguesa do século XVIII (São Paulo, Companhia das Letras, 2006), que reúne dez ensaios escritos ao longo dos últimos dez anos e que discutem problemas e trajetórias referentes ao império português, especificamente na região Centro-Sul da América portuguesa no século XVIII.

Adelto Gonçalves (*)

Extraída de um sermão do padre Antonio Vieira (1608-1697), a metáfora do sol e da sombra dá titulo ao novo livro de Laura de Mello e Souza, professora de História da Universidade de São Paulo, O Sol e a Sombra: política e administração na América Portuguesa do século XVIII (São Paulo, Companhia das Letras, 2006), que reúne dez ensaios escritos ao longo dos últimos dez anos e que discutem problemas e trajetórias referentes ao império português, especificamente na região Centro-Sul da América portuguesa no século XVIII.

Embora a imagem possa servir para outras interpretações, a metáfora é utilizada por Laura de Mello e Souza para mostrar como funcionava a prática administrativa no império português à época, quando, com a Corte tão longe e separada por meses de viagem, muitos administradores régios tratavam de encontrar suas próprias soluções para os problemas que se avolumavam, além de aproveitar a distância para monopolizar os negócios dos colonos e garantir a recompensa material pelo sacrifício de viver tantos anos fora do Reino.

Isso não significa que todos governadores e capitães-generais, ouvidores e altos funcionários fossem rematados ladravazes, mas que havia implicitamente a idéia de aproveitar os anos no Ultramar para garantir um pé-de-meia e uma aposentadoria folgada no Reino, não há dúvida. Até porque os ordenados e emolumentos pífios pagos pela Coroa funcionavam como incentivo para que esses altos funcionários se imiscuíssem nos negócios locais, ficando com boa parte dos lucros, o que, naturalmente, sempre gerava protestos e ódio dos naturais do lugar e daqueles que já estavam estabelecidos na terra.

Portanto, não vai aqui nenhuma manifestação de lusofobia nem apoio aos conceitos extravasados recentemente por um apresentador de programa na televisão brasileira que causaram tanta celeuma na Internet entre portugueses e brasileiros, a propósito da exibição de uma telenovela luso-brasileira. Até porque, depois da independência, muitos administradores provinciais não escaparam da suspeita de se aproveitarem da sombra generosa do Estado para construir fortunas. E, hoje, sobretudo, não são raros os homens públicos que entraram pobres na política e ostentam fortunas incompatíveis com os ganhos que obtiveram exercendo cargos.

Embora o livro de Laura de Mello e Souza não tenha esse objetivo, no ensaio “Os motivos escusos: Sebastião da Veiga Cabral”, lê-se que o governador Dom Brás Baltazar da Silveira, que governou a capitania de São Paulo e Minas do Ouro de 1713 a 1717, voltou para o Reino milionário, dono de uma fortuna superior a 200 mil cruzados. Segundo a autora, há evidências de que, durante o seu governo,foram descobertos os diamantes na capitania, sem contudo haver comunicação oficial à Coroa. “Era ainda considerável, naquele tempo, a complacência monárquica ante o envolvimento de administradores em negócios, lícitos ou ilícitos”, acrescenta a autora.

É claro que, longe dos olhos das autoridades metropolitanas, nas colônias quem podia roubava — e não apenas os governadores. Assim, enormes fortunas foram construídas com a sonegação de impostos ou a corrupção de funcionários destacados para zelar pela arrecadação da Fazenda Real. Às vezes, o fiscal da alfândega era exatamente um comerciante que tinha interesse em fazer passar suas mercadorias — o que incluía escravos — sem o pagamento dos direitos alfandegários.

Para resumir a história, basta lembrar que um alvará de 1785 determinava que todo governador que fizesse qualquer negócio por conta própria ou alheia, além do confisco dos bens, deveria ser expulso do governo e nunca mais governar qualquer capitania.

Esse alvará havia sido baixado por D.Maria I a propósito das “prevaricações cometidas pelos governadores e capitães-generais e pelos ouvidores” da capitania de Moçambique, Rios de Sena e Sofala. Só que esse alvará com força de lei nunca seria colocado em prática, tanto na África como no Estado do Brasil e demais possessões portuguesas, a ponto de, uma década mais tarde, a Gazeta de Lisboa, de 25/5/1795, reivindicar a sua efetiva aplicação, igualmente sem êxito.

Aliás, Fritz Hoppe em A África Oriental Portuguesa no tempo do marquês de Pombal (Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1970) cita à página 115 documento em que o governador Baltazar Pereira do Lago, que governou a capitania de Moçambique, Rios de Sena e Sofala de 1765 a 1779, refere-se a um secretário de governo que vivera ali mais de 13 anos e cujo espólio não tinha com que pagar dívidas de quatro mil cruzados, considerando aquilo “raridade de procedimento que aqui se admira, como cousa nunca vista”.

Para não ficarmos só com exemplos “africanos”, podemos lembrar de Antônio Manuel de Melo Castro e Mendonça, que governou acapitania de São Paulo de 1797 a 1802, sobrinho do todo-poderoso ministro Martinho de Melo e Castro (1716-1795), contra quem abundam nos arquivos documentos em que moradores, o bispo e de oficiais das câmaras da capitania o acusam de, em conluio com seu ajudante-de-ordens, participar de vários negócios de açúcar, sal, animais, algodão e mantimentos. Mendonça não permitia que os comerciantes fizessem comércio de açúcar diretamente com o Rio de Janeiro e a Corte, atravessando seus negócios, ao franquear o porto de Santos apenas aos navios que vinham por sua conta. Apesar disso, não se pode dizer que, em seu governo, a capitania de São Paulo não tenha progredido. Pelo contrário. Quer dizer: Mendonça seria um dos precursores de uma velha máxima da política brasileira: “rouba, mas faz”.

Em O Sol e a Sombra, Laura de Mello e Souza traça também um belo perfil de D. Pedro de Almeida, o conde Assumar, que governou a capitania de Minas de 1717 a 1721, contra quem não se levantaram acusações graves de corrupção. O que pesou contra Assumar foi o episódio de 1720 em que mandou executar o tropeiro Filipe dos Santos sem julgamento. Filipe dos Santos era um reinol, nascido em Cascais, homem branco e livre que, portanto, só poderia ter sido condenado à morte depois de passado por julgamento formal pela Junta de Justiça.

O brilhante ensaio de Laura de Mello e Sousa mostra como a construção do “mito” de Filipe dos Santos como herói nacional foi correlata à construção da memória do conde de Assumir como tirano cruel e boçal, colocando as coisas em seus devidos lugares. Na verdade, Assumar era um homem extremamente culto e bem preparado, como, aliás, a maioria dos nobres nomeados para ocupar o cargo de governador e capitão-geral nas conquistas.

As razões que o levaram a tomar tão drástica atitude, que o marcaria para sempre mesmo no Reino, são buscadas pela professora Laura de Mello e Souza nesse que é, sem dúvida, o melhor ensaio do livro, embora os demais sejam todos igualmente de relevante importância para o conhecimento da história da América portuguesa, o que só vem enriquecer uma obra que já inclui livros fundamentais como Desclassificados do ouro, Inferno atlântico e O diabo e a Terra de Santa Cruz, além de Cotidiano e vida privada na América portuguesa (org).

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O SOL E A SOMBRA: POLÍTICA E ADMINISTRAÇÃO NA AMÉRICA PORTUGUESA DO SÉCULO XVIII, de Laura de Mello e Souza. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2006, 505 págs. E-mail: [email protected]

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: [email protected]

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey