O caso das Áreas de Proteção Ambiental (APAs) da cidade de Bauru (SP)
Por Lucas Matheron*
Na esteira do movimento reformista radical operado pela nova cúpula governamental e que visa encolher os direitos sociais, observa-se paralelamente um forte movimento desenvolvimentista que visa reforçar e concentrar mais um pouco o poder econômico daqueles que já o detinham, usando-se de prerrogativas autocráticas, e isso na linhagem direta dos famigerados planos de austeridade do tsunami neoliberal que assolou diversos países europeus e que hoje já estão sendo abolidos.
Só que lá!
Aqui, aproveitando a profunda crise que afeta o país, a cúpula do poder "brashingtoniano" decidiu aplicar o que Naomi Klein definiu como "A Doutrina de Choque".(1)
Nessa visão "matemática" do mundo, impulsionar a economia é frequentemente visto como passando o trator sobre a natureza e seus habitantes, sejam eles humanos ou silvestres, para alavancar o sistema especulativo sobre a terra em detrimento aos sistemas produtivos. Bauru, a 350 km da capital no oeste do interior paulista, é um exemplo atual disso.
Na virada do milênio, o movimento ambientalista conseguiu aprovar três APAs, cobrindo uma área de 2/3 do seu município, a fins de proteger os poucos remanescentes, porém expressivos e preciosos, do seu patrimônio ambiental, isto é, mananciais hídricos e maciços florestais, que haviam escapado da fúria desenvolvimentista da chamada "Cidade sem Limites". E, para sedimentar tal proteção, havia sido vetado, pelo Plano Diretor da cidade, o parcelamento do solo para fins residenciais nas áreas de APA - Área de Proteção Ambiental, Unidade de Conservação (UC) que permite usos sustentáveis, conforme definição do SNUC - Sistema Nacional de Unidades de Conservação.
Já na gestão anterior, quando o município estava sob o comando de um ex-ambientalista que conheci na coordenação da Rede de Ongs da Mata Atlântica (RMA) e passado para o PMDB por, acredito, oportunismo eleitoral, já havia sido sinalizada uma virada ideológica quanto aos ideais protecionistas. Mas a nova gestão, também comandada por um
(ex?) ambientalista, arrematou, menos de 30 dias após ter tomado posse, ao convocar uma audiência pública para apresentar à Comunidade o projeto de alteração do Plano Diretor para permitir o parcelamento do solo em áreas de proteção (leia-se APAs). (2)
A audiência ocorreu em 01 de fevereiro na Câmara municipal (3) com aquela apresentação de tipo "goela abaixo", bem conhecida, em que ficou explícito que, a despeito da legislação federal do SNUC, os Planos de Manejo das tais APAs que, decorridos mais de 16 anos depois de suas criações ainda não foram realizados, seriam elaborados sob a direção do Executivo para depois, e somente depois, serem constituídos os Conselhos gestores, com encargo de executá-los. Em outras palavras, a sociedade implementa "democraticamente" as decisões do "Poder" autocrático.
Ouvi também, naquela e na segunda audiência, o discurso de que havia de implementar um "mecanismo de compensação" para poder autorizar o desmatamento em áreas "julgadas necessárias de serem desmatadas". Ora, lá vem o bem conhecido "direito de desmatar, ou de poluir" através do fajuto mecanismo de compensação! Vai desmatar uma área centenária ou até milenar de mata nativa, genuíno Cerrado com sua flora e fauna específica, e replantar "ali" uma área de eucalipto (exagero) para "compensar"? Sinceramente, não é aceitável.
O Cerrado é um dos biomas mais importantes pela sua biodiversidade, que cobria cerca de 41% do centro oeste do Estado de São Paulo. Hoje com 1% de sua cobertura original, os remanescentes do bioma se tornaram valiosíssimos, devendo ser preservados, o que motivou, em 2015, um convênio (4) entre a Prefeitura de Bauru e a SOS Mata Atlântica.
Apesar das críticas feitas quanto à necessária proteção dos parcos remanescentes de Cerrado e da necessidade de constituir primeiramente os Conselhos gestores, ocorreu - às pressas - uma segunda audiência pública em 20 de fevereiro, na qual foram reiteradas as críticas, bem como outros questionamentos que ficaram sem resposta, e no dia 11 de março, uma "entrelinha" no Jornal da Cidade (5) informa que não haverá mais audiências e que o projeto seria encaminhado para a Câmara municipal para votação. Sem mais nem menos!
Ora, além das APAs que foram criadas com o intuito óbvio de preservar um patrimônio ambiental relevante, o governo estadual criou em 2009 uma lei específica (Lei 13.550), chamada Lei do Cerrado (6), a fins de preservar definitivamente os remanescentes do bioma no Estado, bioma já extremamente impactado. Anteriormente, o PRONABIO, programa federal do Ministério do Meio Ambiente, havia sinalizado, desde 2004, 900 áreas prioritárias de preservação no território nacional (7) onde a região de Bauru ficou mapeada com a referência CP-512 e classificada com prioridade "extremamente alta" recomendando, justamente, a criação de Unidades de Conservação.
Quando se sabe quais já foram as tentativas de burlar a legislação municipal e ambiental por parte de certas pessoas e empresas que constituem esse poder econômico na cidade, por exemplo o chamado "Caso Pamplona" (8), quando se sabe da pressão que esse mesmo "poder econômico" está fazendo para expandir sua sede especulativa e quando se lê que o atual Secretário estadual do Meio Ambiente sugere "flexibilizar" a Lei do Cerrado (2) fazendo jus ao chefe do Executivo que quer cumprir sua promessa de campanha de "destravar a cidade" custe o que custar, não há dúvida que estamos vendo a crista da onda economicista querendo desabar e varrer todos os recursos restantes no planeta, sejam eles humanos ou ambientais, e força nos é de constatar que há uma categoria de população que ainda não entendeu que a sobrevivência do ser humano não pode transigir com a preservação urgente e irrestrita da natureza.
Afinal, o próprio atual Prefeito da cidade intitulou uma matéria escrita em 2014, quando ele era secretário executivo do Instituto Ambiental Vidágua: "Proteger o Cerrado de Bauru não é mera ação de governo, é obrigação do Estado Brasileiro enquanto Nação."
(1) YouTube ou PDF: Naomi Klein "A Doutrina de Choque"
(2) JCNet - Política - 29/01/2017 - "APAs: órgãos aprovam uso sustentável"
(3) YouTube - "AUDIÊNCIA PÚBLICA PARA DISCUTIR MUDANÇAS NO PLANO DIRETOR 01 02 17" - TV Câmara-Bauru
(4) Portal do Governo do Estado de São Paulo - Sistema ambiental paulista - "Bauru tem o primeiro plano municipal de conservação do Cerrado"
(5) JCNet - Entrelinhas - 11/03/2017 - "Diretor"
(5) LEI Nº 13.550, DE 2 DE JUNHO DE 2009 - Dispõe sobre a utilização e proteção da vegetação nativa do Bioma Cerrado no Estado, e dá providências correlatas.
(6) MMA - "Áreas prioritárias para a conservação, utilização sustentável e repartição de benefícios da biodiversidade brasileira" - pp. 56 a 62 e mapa.
(7) YouTube - "#302 cqc Proteste Já O pesadelo da casa própria no interior de SP 13 04 2015"
* Lucas Matheron é tradutor, professor e ambientalista, presidente-fundador da ONG Flora Brasil, coeditor internacional para os países francófonos das redes Movimento Mulheres pela P@Z! e da Aliança RECOS (Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras), redator independente na mídia cidadã francófona Agoravox e morador da APA Vargem Limpa/Campo Novo em Bauru.
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