Não há no mundo quem consiga confundir mais completamente os apoiadores das políticas e estratégias de Vladimir Putin, que Vladimir Putin. No momento, as chamadas mídias sociais zunem de surpresa e susto, depois que o presidente da Rússia anunciou que as forças russas serão "retiradas" da Síria.
A primeira coisa que jornalistas e analistas que se dessem ao respeito deveriam fazer é anotar que o presidente Putin explicou que a razão dessa retirada é a evidência de que "os objetivos determinados para o Ministério da Defesa foram em termos gerais alcançados" ("Análise da saída militar dos russos, da Síria", 4/5/2016, The Saker, The Vineyard of the Saker, port.). A segunda, é que não se trata de 'retirada' das forças russas do conflito sírio em geral, apenas de algumas forças militares de solo, que deixarão as áreas já seguras em torno de Latakia.
Pode também indicar uma retirada (ou realocação) de certas forças especiais de tipo 'voluntário', e 'assessores aposentados' que estiveram incorporados ao Exército Árabe Sírio e unidades aliadas no centro, leste e norte da Síria. São menos conhecidas, mas bem poderiam ser mais bem noticiadas e explicadas à mídia-empresa pela turma de negociadores da oposição mantidos e pagos por dinheiro de fora da Síria e que têm assento à mesa de negociação em Genebra.
A 'retirada', afinal, com certeza seria uma das 'demandas' da equipe de negociadores da oposição, e demanda que a Rússia muito provavelmente aceitaria, porque aquelas forças já não eram criticamente decisivas. Latakia está em segurança e os assessores completaram o treinamento que lá estavam para oferecer.
Mas agora que Putin decidiu unilateralmente pela retirada, antes de ela ser objeto de discussão e barganha, a oposição perdeu completamente qualquer chance de apresentar a mesma retirada como sucesso dela, na mesa de negociações, como 'resultado' da força e do desejo político, não dos russos, mas da oposição síria. Feitas as coisas como Putin as fez, os russos colheram todos esses benefícios, e têm de ser vistos hoje como negociadores razoáveis e de boa fé, que realmente deram o primeiro passo na direção de uma solução pacífica.
A verdade é que no mundo em que vivemos, a estratégia militar é coisa que vai muito além da estreita esfera dos conflitos armados, e parte equivalente de qualquer sucesso é combater e vencer também no front da informação. Por isso é crucialmente importante compreender que papel cumpriu, na guerra de informação, o anúncio que fez hoje o presidente Putin. E também é preciso compreender o que de fato significa "retirada".
Para começar, é preciso ter em mente que o modo como a Rússia compreende e explica seus movimentos de política exterior é muito diferente do que fazem os EUA. Por isso, os públicos telespectadores, leitores e audientes dos veículos da mídia-empresa ocidental, acostumados a ouvir explicações - mesmo que quase unanimemente sejam mentirosas -, estranham quando as decisões políticas são expostas de modo tão lacônico, o que não é difícil de compreender.
Na verdade, nesse caso a 'retirada' não é completamente "retirada", não, pelo menos, no sentido em que se entende o termo no ocidente. Mais preciso seria dizer, à ocidental, que se trata de 'operação pela qual uma força militar desengaja-se do inimigo'.
E há muitas boas razões para fazer o que os russos estão fazendo. O movimento reflete o fato de que a Rússia ajudou a Síria a alcançar o tipo de controle necessário para lidar com algumas questões que interessam à Rússia - especificamente, a segurança da base aérea de Latakia. E o movimento também será muito útil aos russos, nas conversações de paz em Genebra.
Mas por que a palavra 'retirada' tem sabor tão esquisito na boca do ocidente? A resposta está num fenômeno estranho que se constata ao longo do desenvolvimento dos falares dos EUA em matéria de política externa: ninguém nunca mais falou em "derrota"; só se fala de 'retirada'. A transmigração dos significados foi resultado da necessidade de 'suavizar' para o público norte-americano as duras realidades de derrotas militares como no Vietnã e no Iraque. Então, as derrotas passaram a ser apresentadas sob nova griffe, como 'retiradas'. Ao fazê-lo, os autores da mudança de significação converteram a palavra "retirada" em sinônimo de "derrota", de covardia, de falta de capacidade para decidir. Coisa semelhante aconteceu com a palavra "recuo" [orig. retreat].
Entre os especialistas estrategistas a coisa sempre foi diferente e não mudou. Um estrategista examina um mapa estratégico e diz: 'OK, podemos retirar forças daqui e alocá-las mais para lá'. Os termos "retirar"/"retirada" são neutros. Nada mais simples que retirar forças; e forças militares também podem recuar tática ou estrategicamente, sem desonra. Erro será supor que "retirar" e "retirada" sejam sinônimos de "revés" ou de "derrota".
Também será erro tomar a retirada de forças militares que a Rússia anunciou como equivalente a alguma mudança nos compromissos já assumidos, ou a algum tipo de virada contra a Rússia ou o Exército Árabe Sírio na maré daquela guerra.
Para os que não acompanharam de perto a campanha dos militares russos, é importante esclarecer o mais esclarecidamente possível, que os seis meses de trabalho durante os quais os russos varreram todos os grandes núcleos de forças dos terroristas do ISIS/Daech no centro e no norte da Síria, ao mesmo tempo em que devolveram a segurança às áreas litorâneas e costeiras em torno de Latakia, só podem ser descritos como sequência ininterrupta de sucessos táticos e estratégicos indiscutíveis.
E, sim, claro: tantas vitórias drásticas em período tão curto de tempo também são motivos de sobra para, na sequência, retirar as tropas. Não se pode esquecer que o objetivo de qualquer guerra justa é trazer de volta a paz - nunca prolongar o conflito desnecessariamente.
O mais importante em todos os casos é que remover de território sírio algumas das forças militares da Rússia é movimento que os russos conceberam e executaram para estimular uma solução política para o conflito. Algumas forças russas, da Aeronáutica e da Marinha, permanecerão na Síria, o que significa que continuarão os ataques aéreos contra o Daech (ISIS), al-Nusra e alguns outros grupos que integram a autoproclamada 'oposição', mas não foram protegidos pelo cessar-fogo (declarados "organizações terroristas"). Os russos manterão presença continuada, e não para tomar chá e assistir ao pôr-do-sol nos mares da Síria.
O movimento do presidente Putin, de retirar da Síria as forças militares que já não são necessárias pode ser interpretado - e parece que significa exatamente isso - como, simultaneamente, gesto de boa-vontade na direção de solução pacífica e, também, como expressão clara de confiança tremenda, absoluta, no efeito dos progressos conquistados até aqui.
Para compreender melhor, imaginemos o contrário: que Putin tivesse anunciado não a retirada de algumas forças, mas o aumento do esforço [algum surge, 'avançada', à moda Obama (NTs)] militar e da presença russa no conflito. Significaria que as coisas tivessem saído como o esperado? Que tudo estaria indo muito bem? Ou muito mal?
Não cabe absolutamente dúvida alguma sobre o 'empenho', a 'decisão', o 'comprometimento' dos russos, do tipo de dúvida que haveria se a 'retirada/derrota' tivesse sido mal construída.
Mas nesse ponto tudo obriga a pensar no modo como os EUA insistem em conduzir e apresentar a própria política externa. Em todos os casos em que os EUA enfrentaram revezes graves, mas fizeram como se não tivessem sido derrotados, o revés/derrota sempre levou a aumentar a presença, ou a intensidade da presença militar dos EUA, como se esse aumento fosse prova de 'empenho', 'decisão' e 'comprometimento'. O que é prova de derrota foi reformatado nos veículos da mídia-empresa norte-americana, e exposto aos norte-americanos como prova de valentia, coragem, brio, capacidade para decidir.
Por tudo isso, para compreender a abordagem dos russos de Putin, é indispensável desconstruir algumas dessas 'associações' de significados contraditórios que todo o ocidente foi e continua a ser induzido a perpetrar.
Fato indiscutível hoje é que nenhum processo político na direção de superar o conflito sírio jamais apareceria sobre a mesa, sem a estratégia aérea que a Rússia construiu e executou na Síria.
A decisão de retirar as tropas significa que os militares russos devolvem integralmente o comando militar da situação ao Exército Árabe Sírio que responde ao presidente Bashar al-Assad. A ofensiva do EAS prossegue em direção ao leste. A batalha por Palmyra está em curso nesse momento em que escrevo - e é batalha mais que simbólica.
Mas agora o foco muda e concentra-se nas negociações de paz de Genebra. Ninguém absolutamente pode dizer que Putin teria traído o povo sírio ou qualquer de seus aliados Irã, Hezbollah,[1] o Exército Árabe Sírio; seria erro grave.
Originalmente, depois de anos de combate exaustivo, o Exército Árabe Sírio estava sem capacidades para manter estratégia militar coerente contra um grupo de terroristas continuadamente financiado e armado pelo Departamento de Estado dos EUA. Agora, depois da intervenção russa, essa situação está alterada. O Exército Árabe Sírio teve condições para se reorganizar e já pode novamente trabalhar em estratégia militar coerente.
Seria ingenuidade pretender que conhecemos em extensão e detalhes tudo que foi discutido e negociado em conversações e acordos entre os presidentes Assad e Putin. E retirar tropas sem ter estratégia militar contínua seria nonsense.
A meta, o objetivo, é agora, como sempre foi, alcançar acordo político que ponha fim à guerra - porque, se não houver solução política, a única alternativa é manter presença militar russa continuada e permanente na Síria.
O movimento do Presidente Putin visa a desescalar toda a situação em toda a região - e é esforço para fazer avançar o diálogo e a barganha política, precisamente o que Putin sempre disse que era seu projeto preferido, desde o início.
Nesse cronograma apertado, antes do início das conversações de paz, a aliança saudita-turco-qatari tentou empurrar o processo de negociações na direção do espetáculo midiático, para assim encobrir as próprias perdas no campo de combate. Foi o que se viu acontecer, com a demanda ridícula de que a Síria teria de aceitar, como precondição para negociações de paz, o 'prêmio' que a aliança invasora ambicionava já desde o primeiro dia e não conseguiu até hoje: uma mudança de regime, com remoção do governo sírio legítimo, denominada 'midiaticamente' e cinicamente, uma 'transição'.
Mas, falando objetivamente, é demanda no mínimo estranhíssima, porque não é racional supor que alguém obteria na mesa de negociações o que perdeu fragorosamente em guerra. Negociações de paz são sempre, em todos os casos, reflexo da realidade da guerra.
Em resumo, a Rússia não abandonou a Síria, como já há veículos q 'noticiam'. Nem as decisões de Putin são 'enigmáticas' ou 'ilógicas', se se considera o seguinte:
1) A principal operação russa era limpar a costa de Latakia, marginalizando o Daech e seus aliados. Isso foi feito e, como resultado, várias unidades ficaram sem atribuição, exceto ocasional artilharia de barragem.
2) A força aérea da Rússia cumpre hoje cerca de 50% das missões de voo que cumpria em outubro e novembro de 2015. O acordo de cessar-fogo e a diminuição nas atividades é efeito daquele sucesso.
3) O cessar-fogo gerou muita luta interna entre os takfiri, o que ajudou também as forças sírias e aliados.
4) A Rússia pode levar de volta para a Síria qualquer das unidades de campanha que está retirando, inclusive em rotação, se a Síria novamente requerer ajuda. A Rússia não está sendo 'expulsa' da Síria, nem expirou o mandato que a levou legalmente para lá. A presença de forças russas na síria foi resposta a um pedido do governo sírio, determinado pelo próprio governo sírio.
5) A decisão foi coordenada com Irã e Assad, e provavelmente foi avaliada como meio eficaz para impedir que a Alta Comissão das Negociações apresentasse o fim (bem-sucedido) da ação russa como se fosse vitória da Comissão de Negociações em Genebra.
Permanecem na Síria as bases aéreas e naval (além dos S400), que é o núcleo duro da presença russa e que pavimentou o caminho, desde o início, até as conversações de Genebra.
O que se pode dizer é que é prematuro, precipitado e sem fundamento pretender que Putin teria errado em manter secretas as discussões com Assad e aliados iranianos.
Por mais que as declarações não raro super sintéticas e os movimentos do presidente russo quase sempre deixem perplexos até os mais empenhados defensores da Rússia e do próprio Putin, não há como discordar de que, até agora, tudo funcionou muito bem. Cada frase, cada movimento, é parte de uma mesma estratégia vencedora que se mantém perfeitamente ativada.*****
[1] A retirada de soldados russos foi coordenada com os aliados. Como os russos, o Hezbollah também está retirando algumas de suas tropas da Síria: "a retirada acontecerá de áreas como Aleppo, mas o Hezbollah permanecerá em Damasco e áreas próximas da fronteira com o Líbano, como Qalmoun e Zabadani (...) O mais provável é que o Partido não faça qualquer anúncio oficial" (mais em Daily Sabah (ing.), Turquia, 15/3/2016, http://www.dailysabah.com/diplomacy/2016/03/16/assad-ally-hezbollah-withdraws-fighters-from-syria) Ver também "Moscou informou Washington, Damasco e Teerã da intenção de reduzir forças na Síria", 16/3/2016, Elijah Manier (ing.), Síria https://elijahjm.wordpress.com/2016/03/16/moscow-informed-washington-damascus-and-tehran-of-its-intention-to-reduce-forces-in-syria/ [NTs]
14/3/2016, Fort Russ, Editorial (O. Richardson, I. Sinchougova e J. Flores)
Subscrever Pravda Telegram channel, Facebook, Twitter