"É, na essência, o que os russos dizem desde 2011, quando começou o conflito na Síria. Naquele mesmo ano, o presidente Assad disse também a mesma coisa - como disse novamente, quando aceitou, no outono daquele ano, um plano de paz da Liga Árabe que também dizia precisamente a mesma coisa; e mais o Plano Annan para a paz, que também dizia exatamente a mesma coisa, logo no ano seguinte."
No início da intervenção da Rússia na Síria - em entrevista à Radio Sputnik - previ que os russos buscariam cobertura legal para suas ações, na forma de mandado do Conselho de Segurança.
De fato, meses de atividade diplomática intensa resultaram em três Resoluções do Conselho de Segurança, separadas mas complementares, todas aprovadas em apenas poucas semanas.
Tomadas conjuntamente com relatos dos continuados avanços que o exército sírio está obtendo, essas Resoluções dão à Rússia o que começa a tomar forma de mão ganhadora.
Mas para compreender é preciso analisar em detalhe cada um das Resoluções e mostrar como as três operam juntas.
RESOLUÇÃO n. 2.249
A primeira é a Resolução n. 2.249 aprovada dia 20/11/2015 por unanimidade. O texto integral pode ser lido aqui.
A provisão chave da Resolução está no parágrafo 5 [tradução de trabalho, sem revisão técnica (NTs)]:
"5. (O Conselho de Segurança) conclama todos os estados-membros com capacidade para fazê-lo a tomar as medidas necessárias, considerado o que determina a lei internacional, especialmente o que determinam a Carta da ONU; a legislação internacional de direitos humanos, que protege refugiados; e todas as leis humanitárias no território sob controle do Estado Islâmico no Iraque e Levante (ing. ISIL) também conhecido pela sigla Da'esh (ár.) na Síria e Iraque, a redobrar e coordenar esforços para impedir e suprimir atos terroristas cometidos especificamente pelo ISIL também conhecido como Da'esh; bem como pela Frente al-Nusra, e todos os demais indivíduos, grupos, organizações de fachada e entidades associadas à Al-Qaeda, e outros grupos terroristas, como designados pelo Conselho de Segurança da ONU, e contra outros grupos que venham a ser definidos pelo Grupo de Apoio Internacional à Síria, GAIS [ing.International Syria Support Group (ISSG)] e endossado pelo Conselho de Segurança da ONU, nos termos da declaração do GAIS de 14 de novembro, e para erradicar o paraíso seguro que implantaram em áreas significativas do Iraque e Síria."
Já discuti noutro artigo essa Resolução n. 2.249.
Alguns leitores na lista de discussão daquela discussão chamaram a atenção para o fato de q Resolução n. 2.249 ter sido proposta ao Conselho de Segurança não pela Rússia, mas pela França.
De fato, foi simples ato de cortesia - praticado por razões bem objetivas - que a França fez à Rússia, logo depois dos ataques de Paris.
Os russos haviam trabalhado muito durante semanas para conseguir aprovar uma Resolução semelhante à Resolução n. 2.249. Foram propostos dois rascunhos. Até o ataque em Paris, aqueles esforços haviam dado em nada, por causa da oposição dos EUA.
Depois do ataque em Paris, os russos negociaram diretamente com os franceses e ficou combinado que os franceses apresentariam ao Conselho de Segurança a proposta de Resolução.
Fizeram assim ao mesmo tempo como ato de cortesia e homenagem aos franceses, e para garantir que os EUA apoiariam aquele projeto de Resolução. Os EUA de modo algum poderiam opor-se a proposta apresentada França, sua aliada na OTAN, logo depois do ataque em Paris.
Que aconteceu assim fica claramente demonstrado não só pelos eventos que levaram à aprovação da Resolução, mas também pelo próprio texto da Resolução, que acompanha exatamente o pensamento russo.
A Resolução n. 2.249 toma por alvo os vários grupos terroristas jihadistas que proliferaram na Síria e Iraque desde o início das guerras naqueles dois países. Primeiro e sobretudo, o chamado Estado Islâmico, mas também - nas palavras da Resolução -, "todos os demais indivíduos, grupos, organizações de fachada e entidades associadas à Al-Qaeda, e outros grupos terroristas". Também autoriza, como se lê acima, "estados-membros com capacidade para fazê-lo a tomar as medidas necessárias (...)".
Na Grã-Bretanha, essa [parte da] provisão serviu ao governo britânico como justificativa para a campanha de bombardeio na Síria. O que os britânicos fizeram não é absolutamente legal.
O ponto chave é que "as medidas necessárias [devem considerar] "o que determina a lei internacional, especialmente o que determinam a Carta da ONU"."
A lei internacional não permite campanha de bombardeio por um país em território de outro, exceto (1) com o consentimento do governo cujo território seja bombardeado; ou (2) por mandado do Conselho de Segurança, nos termos do cap. 7º da Carta da ONU ("Ação Relativa a Ameaças à Paz, Ruptura da Paz e Atos de Agressão"); ou (3) como ato de autodefesa nos termos do art. 51[1] da Carta da ONU.
O governo britânico não tinha nem procurou obter o consentimento do governo sírio, para atacar o autoproclamado 'Estado Islâmico' em território sírio.
A Resolução n. 2.249 não autoriza ação alguma nos termos do capítulo 7º. De fato, não faz qualquer referência ao capítulo 7º - os russos tomaram todos os cuidados para garantir que assim fosse.
O governo britânico diz que estaria agindo em autodefesa, conforme o que diz o art. 51, segundo o chamado princípio da "prevenção", que permite que um país lance ataque preventivo contra outro país, se houver boas razões para crer que aquele país prepara-se para atacá-lo. O governo britânico diz que esse princípio lhe daria direito de bombardear o 'Estado Islâmico' [que não é estado; o único estado que há, no que tenha a ver com 'estado islâmico' em território da Síria, é olegítimo estado sírio (NTs)], porque seria "ameaça imediata" à Grã-Bretanha, ainda que a tal ameaça não se tenha até hoje concretizado.
É argumento absolutamente vicioso, definido como tal pela ampla maioria dos advogados especialistas em direito internacional, inclusive, é claro, os britânicos. O art. 51 só pode ser invocado quando e se o Conselho de Segurança não esteja agindo ou não teve tempo para agir.
No caso do 'estado islâmico' em território do Estado Sírio, o Conselho de Segurança agiu, ao aprovar a Resolução n. 2.249. Não há qualquer base legal para q os britânicos bombardeiem o 'estado islâmico' em território do Estado Sírio alegando, sob o art. 51, que o Conselho de Segurança não teria agido, quando claramente, sim, ele agiu.
O direito de autodefesa de que fala o art. 51 só surge quando houve algum ataque - ou é claramente iminente -, de um estado soberano contra outro.
O chamado 'estado islâmico' não é estado soberano. É organização rebelde que está, ilegalmente, no controle, pela força, de algumas áreas dentro do território dos estados soberanos de Iraque e Síria, contra cujos governos legítimos está em guerra.
O art. 51 não autoriza ataque ao chamado 'estado islâmico' dentro do território dos estados que lhe fazem guerra, a menos que os governos desses países concordem ou que o Conselho de Segurança autorize.
No caso da Grã-Bretanha - e de EUA e França e demais estados da coalizão liderada pelos EUA - não houve nem foi buscada nem foi concedida qualquer autorização pelo governo da Síria, ou pelo Conselho de Segurança.
A Resolução n. 2.249 portanto autoriza a ação militar de Rússia e Irã na Síria com consentimento do governo sírio, mas não qualquer outra ação militar que não tenha o consentimento do governo da Síria.
Especificamente, ela não autoriza a ação militar da coalizão liderada pelos EUA. Toda e qualquer ação militar que os países membros dessa coalizão - EUA, Grã-Bretanha, França e o resto - foi, na prática, declarada ilegal.
O que a Resolução n. 2.249 faz é dar aos russos e aos iranianos - mas a nenhum outro país - autoridade do Conselho de Segurança para prosseguir as operações militares contra terroristas jihadistas na Síria, porque só os russos têm consentimento do governo sírio para fazer o que fazem. Esse era o objetivo dos russos e por isso tanto trabalharam para aprovar a Resolução n. 2.249.
Por que os russos precisam da Resolução n. 2.249, se já tinham o consentimento do governo sírio?
A razão, aí, é que os russos compreendem muito bem que os EUA e aliados contestam a legitimidade do governo sírio. Com isso, estava aberta a possibilidade de, em algum momento futuro, os EUA e aliados 'declararem' que a ação dos russos na Síria seria ilegal, porque estariam agindo com consentimento de um governo que teria supostamente 'perdido' a legitimidade.
A Resolução n. 2.249 veda completamente essa possibilidade, e dá aos russos um mandado do Conselho de Segurança, contra o qual ninguém poderá alegar ilegitimidade.
Visita de Kerry a Moscou e as Resoluções ns. 2.253 e 2.254
Essas duas Resoluções - Resoluções ns. 2.253 e 2.254 - foram votadas em dias sucessivos (17 e 18/12/2015) imediatamente depois de visita do secretário Kerry, dos EUA, a Moscou. Não há dúvidas de que foram objeto de longas negociações entre Rússia e EUA. A visita de Kerry a Moscou selou o acordo. Implica dizer que essas duas Resoluções tiveram apoio formal dos EUA.
A primeira delas - Resolução n. 2.253 - foi proposta por EUA e Rússia.
A segunda - Resolução n. 2.254 - foi proposta ao CS-ONU pelos EUA. Contudo, como já ocorrera na Resolução n. 2.249, foi uma formalidade, para garantir o apoio dos EUA. Como se vê claramente no texto, a Resolução n. 2.254 - como as Resoluções ns. 2.249 e 2.253 - refletem o pensamento da Rússia, não dos EUA, e é claramente resultado do trabalho da diplomacia russa.
Resolução n. 2.253
Das duas, a mais importante é a Resolução n. 2.253. Diferente das Resoluções ns. 2.249 e 2.254, essa terceira Resolução é baseada no capítulo 7º. Impõe sanções financeiras ao chamado 'estado islâmico', outros grupos jihadistas e seus apoiadores.
É Resolução gigantesca, de 28 páginas e teor altamente técnico. Precisamente porque é muito longa e muita técnica, ainda não se comentaram todas as suas muitas implicações. O texto integral pode ser lido aqui.
A Resolução n. 2.253 impõe ao chamado 'estado islâmico' e outros vários grupos jihadistas as sanções financeiras e outras que já se viram em outros momentos (congelamento de bens, proibição de viajar, etc.) que o Conselho de Segurança tem autoridade para impor nos termos do capítulo 7º da Carta da ONU.
Também impõe o conjunto de mecanismos de monitoramento e fiscalização (comissões de sanções, etc.) para aplicar as sanções. A maior parte da Resolução n. 2.253 trata desses temas.
Mas o ponto chave da Resolução n. 2.253 é que ela criminaliza o que os russos dizem que Turquia e alguns dos Estados do Golfo têm feito, garantindo apoio ao chamado 'estado islâmico' e a outros grupos jihadistas.
No emaranhado técnico complexo dessa Resolução, esse ponto até aqui passou praticamente sem ser visto.
O melhor resumo dos objetivos dessa Resolução está posto lá mesmo, no preâmbulo:
"[O Conselho de Segurança] Reafirma o determinado em sua Resolução n. 1.373 (2001) e em particular suas decisões de que todos os estados-membros devem coibir e reprimir o financiamento a atos terroristas e abster-se de prover qualquer tipo de apoio, ativo ou passivo, a entidades ou pessoas envolvidas em atos terroristas, inclusive suprimindo práticas de recrutamento de membros de grupos terroristas, e eliminar o fornecimento de armas a terroristas (...)."
A partir daí, a Resolução faz provisões detalhadas para que esse objetivo seja alcançado.
Parágrafo 2(c) impõe amplo embargo de armas para o chamado 'estado islâmico' e outros grupos jihadistas.
Parágrafo 12 declara crime a não observância da provisão que proíbe qualquer ajuda ao chamado 'estado islâmico' e aos outros grupos jihadistas.
Parágrafo 13 proíbe que se forneça ao chamado 'estado islâmico' e outros grupos jihadistas qualquer tipo de assistência econômica.
Pode-se dizer que, uma vez que há Resolução do Conselho de Segurança que declara a ajuda a terroristas crime internacional, indivíduos acusados desse crime podem ser processados e julgados em tribunais de qualquer país, não exclusivamente em tribunais do próprio país dos acusados ou do país onde tenham residência.
O parágrafo 20 reafirma precisamente essa disposição; ali o Conselho de Segurança claramente 'lembra' que os estados-membros da ONU têm o dever legal de aprovar leis domésticas que declarem crime o específico procedimento de ajudar terroristas.
É como 'sugerir' que, se os estados-membros deixarem de cumprir essa obrigação, ou se aprovarem as leis mas não as aplicarem, nesse caso outros estados-membros têm o direito legal de executar o desejo do Conselho de Segurança e atuar para levar aqueles acusados a julgamento em tribunais dos próprios estados.
Assim, por várias vias, a Resolução n. 2.253 realmente converteu em crime internacional qualquer ajuda dada ao chamado 'estado islâmico' e a outros grupos jihadistas.
Os russos já acusaram publicamente a Turquia de ter feito e continuar a fazer precisamente tudo - fornecer armas e assistência econômica e financeira ao chamado 'estado islâmico' e outros grupos jihadistas - que a Resolução n. 2.253 proíbe expressamente e declara crime internacional.
Os russos em semanas recentes têm feito graves acusações sobre o contrabando de petróleo roubado do estado sírio, entre a Turquia e o chamado 'estado islâmico', as quais, se comprovadas, a Resolução n. 2.253 também declara crime.
Há também preocupações amplamente dispersas - manifestadas não só pelos russos - de que o chamado 'estado islâmico' e outros grupos jihadistas estão sendo financeiramente apoiados por outros governos e por ricos empresários em alguns dos estados do Golfo.
Na cúpula do G20 em Antaliya, como se sabe, Putin exibiu aos demais líderes do G20 provas de que sim, acontece exatamente como os russos denunciaram, e disse publicamente que parte da ajuda que o chamado 'estado islâmico' e outros grupos jihadistas recebem chegam-lhes de alguns dos países do G20.
Se tudo isso for verdade, nesse caso todos os envolvidos nessas práticas, na Turquia, Estados do Golfo e onde mais for, devem agora considerar que o Conselho de Segurança, em Resolução aprovada nos termos do capítulo 7º, já declarou que eles todos praticam crime, provavelmente crime internacional, pelo qual podem ser julgados por tribunais de outros países.
Eis o que o parágrafo 13 da Resolução n. 2.253 diz sobre que tipo de atividades estão sendo proibidas. Observem a ênfase no comércio ilegal de petróleo:
"13. (O Conselho de Segurança) Reitera a obrigação dos estados-membros, de assegurar que seus cidadãos, residentes ou pessoas em seus territórios não forneçam qualquer tipo de ajuda econômica ao ISIL, Al-Qaeda e indivíduos, grupos, subgrupos e entidades a eles associados; relembra também que essa obrigação se aplica ao comércio direto e indireto de petróleo e produtos dele refinados, a refinarias modulares e a material relacionado, incluindo produtos químicos e lubrificantes e outros recursos naturais; relembra ainda a importância de todos os estados-membros cumprirem o dever de assegurar que os respectivos cidadãos, residentes ou pessoas em seu território não façam qualquer tipo de doação a indivíduos e entidades designadas pela Comissão, ou que atuem em nome, ou sob a direção daqueles indivíduos ou entidades designadas".
Se o filho de Erdogan e outros membros da família estiverem realmente envolvidos no comércio ilegal de petróleo com o chamado 'estado islâmico', e se há sauditas e qataris - até príncipes - que realmente continuam a financiar grupos jihadistas na Síria, todos eles cometem crime, provavelmente crime internacional, pelo qual poderão ser processados e julgados nas cortes de outros países, dos quais não tenham nacionalidade. Qualquer desses pode agora vir a ser processado e condenado é, claro, na Rússia.
Um fato pequeno, mas interessante, sugere fortemente que alguns países - Turquia e estados do Golfo - estão muito infelizes e provavelmente muito alarmados com essa Resolução n. 2.253.
O fato a que me refiro é que nenhum dos países acima referidos apareceu no Conselho de Segurança para se pronunciar na sessão em que a Resolução n. 2.253 foi aprovada. Nem por lá se viu qualquer representante da Liga Árabe, dominada pelos sauditas. Que nenhum representante desses estados esteve presente àquela sessão é confirmado pelo sumário da discussão da ONU que precedeu a votação que aprovou a Resolução.
Atualmente, só um estado árabe - a Jordânia - é membro do Conselho de Segurança. O embaixador da Jordânia esteve presente e falou naquela sessão; e apoiou a Resolução.
Mas em semanas recentes a Jordânia afastou-se dos demais membros da coalizão anti-Assad - fato que se tornou muito claro durante recente visita do rei da Jordânia a Moscou, por coincidência no mesmo dia em que o SU24 russo foi derrubado.
Mas estados que não sejam membros do Conselho de Segurança mesmo assim podem assistir a sessões do CS e falar em discussões que considerem importantes para eles, como também a Liga Árabe e outros corpos. Síria e Ucrânia o fazem frequentemente - como a Liga Árabe, no passado; e quando solicitam licença para esse tipo de participação, são atendidos praticamente sempre.
Interessante, nesse caso, é que nem a Turquia nem qualquer estado árabe manifestou ao CS qualquer interesse em se pronunciar no CS - por mais óbvio que fosse o interesse que tinha, para eles, o tema em discussão.
Resolução n. 2.254
A terceira Resolução, n. 2.254, foi aprovada logo no dia seguinte. O texto pode ser lido aqui. E a Resolução n. 2.254 está provocando os sentimentos mais amargos: é o mapa do caminho para um acordo negociado para o conflito na Síria. Nessa intenção, a Resolução n. 2.254 faz reviver o "Plano Annan", de paz, assinado em Genebra em 2012.
Que a Resolução n. 2.254 faz renascer o Plano de Paz de Annan está admitido e declarado no parágrafo 1, que faz referência ao comunicado final da Conferência de Genebra de 2012, no qual foi assinado o Plano de Paz de Annan:
"1. (O Conselho de Segurança) reconfirma o endosso que já deu ao Comunicado de Genebra de 30 de junho de 2012; endossa as "Declarações de Viena" na busca de completa implementação do Comunicado de Genebra, como base para uma transição política dos próprios sírios, liderada pelos sírios, como meio para pôr fim ao conflito na Síria, e reafirma com destaque que o povo sírio decidirá o futuro da Síria".
O Plano Annan determinava cessar-fogo, negociações para construir um governo de transição, mais negociações para definir os termos de uma nova constituição para estado não sectário, vale dizer, não islâmico [o que é besteira, porque a Síria é estado laico (NTs)], e eleições a serem supervisionadas pela ONU, quando as etapas iniciais tivessem sido cumpridas.
Parágrafo 4 da Resolução n. 2.254 diz tudo isso, mas acrescente um cronograma altamente ambicioso e provavelmente desatinadamente otimista:
"4. (O Conselho de Segurança) expressa seu apoio, quanto a isso, a um processo político liderado pelos sírios e facilitado pela ONU que, num prazo de seis meses, estabeleça governo com credibilidade, inclusivo e não sectário, e fixa uma agenda um processo para elaborar uma nova Constituição; também expressa seu apoio a eleições livres e justas, nos termos da nova Constituição, a ser realizada no prazo de 18 meses e administrada sob a supervisão da ONU, para assegurar que atenda às necessidades de governança e aos mais altos padrões de internacionais de transparência e prestação/cobrança social democrática de contas e informações [ing. accountability], com todos os sírios, inclusive membros da diáspora, elegíveis para participarem, como disposto na Declaração de 14 de novembro de 2015 do Grupo Internacional de Apoio à Síria, GIAS [ing. International Syria Support Group, ISSG].
As provisões mais importantes do parágrafo 4 são as que dizem que o processo deve ser conduzido pelos sírios, e que o resultado final deve ser "governo com credibilidade, inclusivo e não sectário [i.e. não islamista]".
É, na essência, o que os russos dizem desde 2011, quando começou o conflito na Síria. Desde então, os russos não disseram outra coisa além de reforçar e reforçar a urgente necessidade de conversações entre todos os sírios, para resolver pacificamente aquele conflito.
Também em 2011, o presidente Assad disse exatamente a mesma coisa - como quando aceitou, no outono daquele ano um plano de paz da Liga Árabe que também dizia precisamente a mesma coisa, e o Plano Annan para a paz, que também dizia exatamente a mesma coisa, logo no ano seguinte.
Tudo poderia ter sido resolvido por uma Resolução do Conselho de Segurança, em qualquer momento desde 2011; e com certeza tudo também poderia ter sido resolvido depois que as 'partes' concordaram, pelo menos cenograficamente com o que assinaram em Genebra em 2012.
A razão pela qual nenhuma Resolução do Conselho de Segurança assemelhada à Resolução n. 2.254 foi aprovada em 2012 - ou mesmo antes, é escandalosamente simples: a oposição síria apoiada pelos EUA sempre disse que de modo algum negociaria com o governo sírio enquanto o presidente Assad lá estivesse; e, até agora, os EUA sempre se recusaram a apoiar qualquer Resolução que não considerasse a 'exigência' dos EUA, de que "Assad tem de sair".
Em outras palavras, EUA e a oposição síria e outros estados ocidentais passaram mais de quatro anos 'exigindo' a derrubada ilegal, golpista, do presidente Assad - e nada conseguiram.
Agora, mediante negociações mais democráticas - precisamente o que os russos sempre insistiram que seria indispensável - é possível, até, que o presidente Assad deixe o governo (caso não seja eleito).
Se os russos não tivessem firmado o pé na oposição aos 'desejos' dos EUA de que "Assad tem de sair", as negociações hoje propostas seriam mais uma vez absolutamente esvaziadas, porque nada restaria a discutir exceto um rito suposto-democrático, para transferir o poder, das mãos de um governo Assad legítimo, para as mãos dos opositores de Assad, necessariamente ilegítimos se chegassem ao poder mediante o golpe dos sonhos dos EUA.
Três anos e meio adiante, depois de a Síria ter sido completamente devastada por uma guerra terrível [não é "guerra civil" e os inimigos de Assad não são 'a oposição' (NTs)], os EUA então - apesar das bufadas de Samantha Powers e do diz-desdiz da miséria mental do secretário Kerry - deixaram de exigir a saída de Assad, mesmo que só temporariamente.
O que se vê afinal pela aprovação da Resolução n. 2.254, e o Secretário de Estado Kerry já disse, é que os EUA finalmente tiveram de render-se à lógica dos russos nessa questão, a única que, de fato, faz sentido: insistir na exigência golpista de que o presidente Assad deixasse o governo, como precondição para iniciar conversações é, simplesmente, garantir que nenhuma conversa jamais comece; e que a guerra continue.
Kerry agora anda dizendo que exigir a saída do presidente Assad como precondição para começar conversações "não começa coisa nenhuma, é óbvio" [orig. "a non starting position, obviously"].
Nisso Kerry acerta. A tragédia é que tantos milhares de pessoas tiveram de morrer, antes de os EUA aceitarem essa verdade clara.
O resultado é que, com três anos de atraso, o Conselho de Segurança finalmente aprovou uma Resolução que, afinal, é o próprio plano de paz de Annan, acrescido da autoridade do Conselho de Segurança e da lei internacional.
Assim sendo, grupos sírios anti-Assad - e os estados que os patrocinam - que continuarem a insistir em que a saída do presidente Assad seria ainda precondição para conversações agem em aberto desafio ao Conselho de Segurança; isso faz daqueles grupos e dos estados que os patrocinem responsáveis por qualquer desdobramento da guerra que resulte de atitudes deles.
CONCLUSÃO
Esse trio de Resoluções tem de ser tratado como enorme vitória da diplomacia russa - vitória que, há poucos meses, ainda era inimaginável.
Em quatro anos de conflito, o Conselho de Segurança permaneceu paralisado. Agora, em rápida sucessão, aprovaram-se três Resoluções, em rápida sequência, as quais, todas, seguem o pensamento russo.
Essas Resoluções (1) dão a autoridade e o mandato do Conselho de Segurança às ações da Rússia na Síria; (2) impõem, com peso de lei, que a Turquia, estados do Golfo e outros cortem qualquer apoio que dessem a grupos jihadistas na Síria e ao chamado 'estado islâmico' - sob risco de serem acusados de prática de crime, provavelmente internacional; e (3) endossam um plano de paz para a Síria que é, em todos os aspectos, idêntico ao plano dos russos, apresentado e defendido desde o início do conflito em 2011.
Essas Resoluções porém não significam que o conflito na Síria esteja sequer perto de resolvido, ou que Rússia - ou Síria ou Irã - "ganharam".
Os apoiadores de 'mudança de regime' - em Washington, Paris, Londres, Riad e Ancara - ou na própria Síria - nem se mudaram nem desistiram de seus 'projetos': eles continuam a insistir que a derrubada do presidente Assad é o único resultado que os satisfará. O objetivo dos EUA é esse e nada indica que tenham mudado de posição [Hillary Clinton, que é sionista, odiadora de árabes e candidata do dinheiro de Israel e da indústria bélica nos EUA (NTs)].
A reação da 'comunidade' golpista nos EUA - que sempre trabalha ativamente pró-'mudança de regime' em governos que não se deixem reduzir completamente à função de vassalos dos EUA e Israel -, contra o sucesso diplomático dos russos no caso da Síria, aparece muito visível num evento à primeira vista mínimo, mas imenso, em significações.
Samantha Power, embaixadora dos EUA à ONU e cruzada-em-chefe dos golpes de 'mudança de regime', amiga íntima de Kissinger, deu jeito para desaparecer das três sessões em que se votaram as Resoluções: 20/11/2015, quando foi aprovada a Resolução n. 2.249; 17/12/2015, quando foi aprovada a Resolução n. 2.253; e 18/12/2015, quando foi aprovada a Resolução n. 2.254. Nesses dias, Power desapareceu. O voto dos EUA foi dado por outro diplomata.
Nem Turquia ou qualquer dos estados do Golfo que querem golpe de 'mudança de regime' na Síria deixarão de apoiar seus 'procuradores' dentro da Síria - mesmo que, agora, aquele apoio já esteja tipificado como crime.
A verdade é que já está em curso uma luta subterrânea em torno de quais grupos ativos na Síria serão definidos como grupos terroristas e quais ficarão fora da lista. Grupos ocidentais que apoiam golpistas da 'mudança de regime' na Síria, grupos ativos na Turquia e nos estados do Golfo todos já pressionam para que os grupos alinhados com cada um desses não sejam definidos como terroristas e possam continuar a receber dinheiro.
Seja como for, as Resoluções são importantes e fazem enorme diferença efetiva.
A ação dos russos e o modo como abordaram a questão síria acabam de receber o 'selo de qualidade' da ONU e têm agora, a seu favor, o peso da lei internacional.
Os russos podem, portanto, continuar a insistir na defesa de seu ponto de vista em tudo que tenha a ver com a Síria e o conflito na Síria - seja o fechamento da fronteira turca para impedir a passagem de terroristas; o fim do contrabando do petróleo roubado de território sírio; o a forma que venha a ter um acordo que ponha fim à guerra na Síria. A posição dos russos é, hoje, a única que tem, legitimamente validade e reconhecimento legais formais. A ação dos russos na Síria é, hoje, a única que o Conselho de Segurança determinou e legalmente protege.
Os russos estão agora em posição muito mais forte para pressionar quem tenha interesses divergentes dos interesses da Rússia - em primeiro lugar, o presidente Erdogan. Ter interesses divergentes dos interesses da Rússia implica, hoje, desafiar o Conselho de Segurança e atropelar a lei da comunidade internacional.
Sobre como os russos alcançaram essa vitória, é questão complexa, mas tem a ver com a mudança no equilíbrio militar na Síria gerado pela intervenção militar dos russos, e com a repugnância que o chamado 'estado islâmico' e o terrorismo jihadista provocaram na opinião pública ocidental, ampliada pelos ataques em Paris. Não há dúvida de que esses foram fatores decisivos.
Em todos os conflitos, particularmente em conflitos nos quais as forças relacionam-se por vias muito complexas, como é o caso do conflito na Síria, vence o lado que, ao longo do tempo consiga acumular mais pequenas vantagens significativas.
Com o exército sírio prosseguindo na ofensiva, o trio de Resoluções que a diplomacia russa conseguiu arrancar do Conselho de Segurança, somado à mudança na relação de forças no campo militar, começam a dar à Rússia de Putin o que já tem todo o ar de posição vitoriosa.
A grande questão para as próximas semanas é em que medida os russos - e seus aliados sírios e iranianos - conseguirão capitalizar as vitórias mais recentes, e como agirão para dar bom uso à vantagem que acabam de obter.*****
[1] "ARTIGO 51 - Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado contra um Membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais. As medidas tomadas pelos Membros no exercício desse direito de legítima defesa serão comunicadas imediatamente ao Conselho de Segurança e não deverão, de modo algum, atingir a autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a efeito, em qualquer tempo, a ação que julgar necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da segurança internacionais" [NTs].
As 3 Resoluções aprovadas no Conselho de Segurança da ONU
22/12/2015, Alexander Mercouris, Rússia Insider (rep. in The Vineyard of the Saker)
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