América Latina: A contraditória etapa de um continente

Para o economista argentino Claudio Katz, o neodesenvolvimentismo adotado por alguns países latino-americanos não significa uma ruptura como o modelo neoliberal Márcio Zonta, de Guararema (SP)
Com o olhar sobre uma América Latina em permanente disputa econômica, política e cultural entre grandes grupos internacionais capitalistas, burguesias regionais e governos de esquerda, o economista argentino Claudio Katz afirma que o neodesenvolvimentismo adotado por alguns países não rompeu com o neoliberalismo.


O professor da Universidade de Buenos Aires acredita que o Brasil deixou de lado somente algumas medidas neoliberais mais rígidas. "Lula e Dilma fomentaram apenas políticas que se afastaram do neoliberalismo ortodoxo", comenta.


Em entrevista ao Brasil de Fato, Katz analisou as políticas econômicas e a participação de Brasil e Argentina em busca de uma verdadeira integração do continente.


"Tanto Brasil quanto Argentina têm uma ambiguidade entre seus interesses econômicos; dúvidas se aprofundam em suas relações econômicas com os países do Mercosul ou outros mercados pelo mundo", diz.


Ademais, Katz chama atenção para os investimentos na América Latina advindos do capital financeiro internacional para exploração dos recursos naturais, sobretudo, no setor agromineral. "Esse é o principal perigo estratégico que tem o continente hoje. A crise atual do capitalismo é uma crise de reestruturação neoliberal. Onde a América Latina tem totalmente pré-determinadas suas funções no mercado mundial, como abastecedora de matéria-prima", alerta. Abaixo, confira a entrevista na qual o economista também fala sobre a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), bases estadunidenses no continente e as características atuais das elites regionais.
 
Em disputa
Existem projetos em disputa no continente. Um exemplo foi o projeto da ALCA [Acordo de Livre Comércio das Américas], que hoje em dia continua com os Tratados de Livre Comércio (TLC). A ideia de que a ALCA foi derrotada é certa enquanto projeto, mas houve uma contraofensiva estadunidense que conseguiu tecer acordos econômicos de livre comércio consolidada com a NAFTA, no México, além de TLCs firmados com Colômbia, Peru, Chile e vários países da América Central. Obama, ademais, concebeu uma estratégia da Aliança do Pacífico, que articula todos os países que formaram Tratados de Livre Comércio com os Estados Unidos, Canadá e países asiáticos.


Em segundo lugar, temos ainda um projeto de integração muito frágil no Mercosul, que tem se consolidado como tentativa de integração nos últimos dez anos, principalmente em torno da Argentina e do Brasil. Porém, tanto Brasil quanto Argentina têm uma ambiguidade entre seus interesses econômicos, principalmente. Dúvidas se aprofundam em meio a suas relações econômicas com os demais países do Mercosul ou outros mercados pelo mundo.


Uma potência regional tem que pensar aonde vai concentrar seus recursos, e vemos, nos últimos dez anos, que não houve avanço na região puxado pelo Brasil, que não ajudou na criação do Banco do Sul. O país não participa de nenhum debate sério sobre a criação de moeda comum no continente e está ausente na discussão de um projeto financeiro regional de manejo comum para uma reserva econômica.
Por outro lado, o que mais teve progresso foi a ideia da Aliança Bolivariana para as Américas (ALBA). Essa sim é um concepção de integração econômica muito densa fomentado pela Venezuela, Bolívia, Nicarágua, Equador, entre outros.


É no bloco desses países, aliás, que estão as ideias mais fortes de integração, como a moeda de Sucre, a ideia de um fundo de troca entre os países, e a formação do Banco do Sul. E, naturalmente, esses processos de integração têm muita fragilidade porque depende muito do petróleo venezuelano para avançar.
 
Cenário Político
Se tem registrado uma mudança muito grande no cenário político em relação à década passada na América Latina, pois se constituiu uma força política que fez declinar a Organização dos Estados Americanos (OEA) e levantou a Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (CELAC) e o MERCOSUL. Isso sim são fatores muito contundentes na geopolítica sul-americana. Realizar reuniões entre países latinos sem a presença dos Estados Unidos é inédito. Ter a Venezuela com presença no Mercosul é fato simbólico inimaginável há uma década.


Ou seja, em um plano geopolítico existe uma mudança. Entretanto, ainda não sabemos se esse ritmo de conquistas geopolíticas se converterá em ganhos econômicos para o continente.


Uma das funções da ALBA é fazer com que ambos se cruzem positivamente: avanço geopolítico e a economia. Porém, sem uma força social desde baixo, eu não acredito que vai avançar para além do que já existe.
 
Unasul
Também dentro da Unasul existe um conflito, uma disputa porque a instituição não só tem países com TLC, como tem também um problema geopolítico mais complicado. Por exemplo, a Colômbia com as bases militares estadunidenses. Portanto, dentro da Unasul temos a intervenção militar estadunidense por meio do Exército da Colômbia.


Recolonização
Esse é o principal perigo estratégico que tem o continente hoje. A crise atual do capitalismo é uma crise de reestruturação neoliberal, na qual a América Latina tem totalmente pré-determinadas suas funções no mercado mundial, como abastecedora de matéria-prima.


Os capitais estrangeiros que entram no continente, atualmente, vão direto ao setor extrativista, aos recursos naturais. Uma situação que traz um grande perigo para a região, que tem sua história marcada por uma inserção periférica, que sempre dependeu da oscilação da necessidade da matéria-prima pelos países centrais.


Assim, quando mudam os ciclos econômicos, os efeitos são nefastos para a população. Lamentavelmente, não existe uma consciência sobre isso, pois de novo há um espírito de satisfação por essa posição e um suposto pensamento de que esse ciclo de exploração dos recursos naturais pode durar para sempre.


Isso é uma velha mitologia exportadora liberal da América Latina, que volta a circular, como se não tivéssemos tido esses ciclos de exploração no século passado
 
Desindustrialização
Diante desse contexto de tentativa de recolonização do continente, se está criando uma brecha em términos industrial muito grande entre América Latina e Ásia, justamente entre duas regiões que participavam com condições periféricas. A Coreia do Sul é mais industrializada, se comparar, com qualquer país latino-americano.


O que se torna mais grave é a enorme associação de grupos capitalistas latino-americanos nesses processos.


As oligarquias exportadoras dos recursos naturais do final do século 19 não existem mais. O modelo atual é composto por empresas capitalistas brasileiras, argentinas e mexicanas que atuam com muito mais perversidade, pois trabalham visando a exploração de um recurso até a destruição plena.


Provavelmente, é o setor que mais enriqueceu nos últimos anos estando vinculado ao agronegócio. O pior é que muito deles atuam dentro dos projetos da Unasul e Mercosul.


Burguesia regional
Existem mudanças estruturais na burguesia regional. Já desapareceu o papel da velha oligarquia como existia antes. Antigamente, uma pessoa era dona de uma grande extensão de terra improdutiva e ficava praticamente ausente nessa propriedade sem investir na mesma.


A principal mudança estrutural é que a velha burguesia industrial brasileira, argentina e mexicana, muito centrada na produção de bens para o mercado interno, também tem declinado.


Uma nova burguesia está totalmente focada na exportação associada ao capital estrangeiro, e trabalha com horizontes regionais e internacionais. As grandes companhias brasileiras e argentinas são transnacionais multilatinas.


Essa é uma característica muito nociva à classe trabalhadora porque o lucro dessas empresas é pensado por meio do lucro do salário comparado. Ou seja, quando o salário no Brasil sobe muito, elas colocam seus negócios no Paraguai, como acontece agora.


Eu não gosto de chamá-los de burguesia lúmpen. Não me parece adequado porque gera uma imagem desconexa. Lúmpen é a burguesia do narcotráfico que existe à margem do Estado. Essa burguesia regional, pelo contrário, são estruturas que atuam com a base do Estado.


Portanto, são classes capitalistas menos nacionais e divorciadas de seus povos, e mais associadas ao capital estrangeiro.
 
Neoliberalismo ou Neodesenvolvimentismo?
O que temos visto na América Latina é o ingresso de países em processos diferenciados do neoliberalismo por conta de rebeliões populares. Parte da população do continente se revoltou justamente contra o tripé da base neoliberal: flexibilização nos direitos trabalhistas, abertura comercial e privatizações.


Portanto, houve mudanças contra essas características mais centrais do neoliberalismo e os Estados recuperaram fundos e recursos financeiros que utilizam politicamente para o assistencialismo. Agora, essa mudança é muito complicada, e não se trata de um abandono do neoliberalismo por alternativa de mesmo nível com uma política econômica coerente e definida. O neodesenvolvimentismo no momento não está competindo com o neoliberalismo em sentido de um programa econômico sólido.


Ademais, não é uma ruptura radical com o neoliberalismo, pois não altera a característica de redistribuição de renda. Essa é a grande diferença de políticas econômicas redistributivas reais, como as ocorridas na Venezuela, onde sim houve uma ruptura com o sistema neoliberal, porque passou a ter verdadeiramente uma redistribuição dos ingressos econômicos do país.


Dessa forma, muitas das tradicionais políticas neoliberais seguem no Brasil e seguem na Argentina. A política financeira no Brasil, ou a política de mineração na Argentina são neoliberais clássicas. O neodesenvolvimentismo, portanto, é uma tentativa de maior regulação de Estados na economia, o que se diferencia do neoliberalismo. Porém, a discussão é: para quem vai servir? Para que grupos?


Por fim, penso que a Argentina tem uma tentativa de política neodesenvolvimentista, o Brasil não, porque Lula e Dilma fomentaram apenas políticas que se afastaram do neoliberalismo ortodoxo. Já a Argentina tomou duas medidas: nacionalizou os fundos de pensão e nacionalizou a principal empresa petroleira. São duas ações que indicam mudanças significativas e marcou um tipo de ruptura, algo que não ocorreu no Brasil.


 http://www.patrialatina.com.br/editorias.php?idprog=14ea12a8d4c1ce8ae45564cddc241e95&cod=12288

Foto: Claudio Katz, economista

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