Diogo Carvalho*
Após o período imediatamente posterior a revolução de outubro de 1917, o cinema produzido na Rússia ganhou a alcunha de Cinema Revolucionário. Contudo estes tipos de filmes oriundos deste período, não alcançavam grandes públicos devido a uma série de problemas, dentre eles a dificuldade técnica em obter material para realização de películas, bem como o pequeno número de salas de exibição em relação ao tamanho da URSS. Ao contornar estes problemas relativos à falta de material cinematográfico, os debates públicos sobre a função social do cinema na URSS foram circunscritos a questões estéticas que propiciariam uma maior aceitação critica da população que ia ao cinema. Os desafios impostos a esta geração de cineastas, e demais profissionais do ramo cinematográfico eram imensos, além de romper com traços culturais oriundos do Oeste e da cultura burguesa, eles deviam fazer cinema para educar a população. O cinema foi de vital importância para propagação e consolidação dos valores oriundos da revolução de outubro. Porém a Rússia e as demais repúblicas tinham um número bastante elevado de cidadãos analfabetos, que não conseguiam entender as legendas que ajudavam a esclarecer determinados enredos de alguns filmes mudos. Com o surgimento da perspectiva referente à possibilidade do uso do som captado durante as filmagens, o poder pedagógico do cinema aumentou bastante, pois agora o entendimento sobre o conteúdo dos filmes se tornou acessível a letrados e iletrados.
Como já dito, o incentivo à produção artística era crucial, já que, com uma ampla população analfabeta, a imagem constituía ferramenta necessária para a instrução e para aglutinação do povo em torno da Revolução. (Greco, 2008,pag 05)
Quando eu lhe pedia se eles gostavam dos desenhos, os camponeses respondiam: a gente não sabe, a gente é ignorante, iletrados... os espectadores totalmente iletrados não olham, de fato os inter-títulos. Eles não conseguem entrar na intriga. Eles percebem situações sem elos umas com as outras, como estas imagens de trem pintados de várias cores. (Vertov, apud Feigelson, 2009, pag 368)
A introdução do som no cinema foi uma revolução na forma de produção e exibição dos filmes. Após este incremento, os cineastas passaram a se preocupar com uma parafernália eletrônica destinada a captar o som nos sets de filmagem e também com salas de exibição adequadas para este novo tipo de apreciação da imagem. Na historia do cinema Mundial o Som foi introduzido em 1926 pela Warner Bros que então passou a gravar o áudio do set em um disco.
Na Rússia soviética, o som foi introduzido, no final dos anos 20, a partir, de pesquisas desenvolvidas em Moscou, por Pavel Tager, e em Leningrado por Alexander Shorin. Contudo, a adaptação dos estúdios e dos cineastas a introdução do som foi lenta, demorou alguns anos. Um dos maiores problemas encontrados na introdução de dispositivos sonoros, no cinema soviético foi à dificuldade de exibição destes filmes, devido ao baixíssimo número de salas adaptadas para este tipo de exibição. BEUMERS, (2009, pág 79) afirma que em 1932 a URSS só possuía 200 projetores preparados para a exibição de imagem e som simultâneos e mais de 32000 salas que só exibiam filmes mudos. Só em 1936 foi que a produção de filmes contendo sons atingiu 100% dos filmes realizados na URSS.
Percebendo as diferenças estéticas e de público que o som introduziu nas dinâmicas de filmagem e exibição, proeminentes cineastas como Eisenstein e Pudvokin se debruçaram sobre esta problemática, e em conjunto com Grigori Alexandrov lançaram um manifesto advogando, que o uso do som, não deveria refletir a cena em si. Para estes cineastas, o som não deveria retratar a realidade acústica da narrativa, mas sim auxiliar a montagem audiovisual, o áudio neste sentido, teria a função de complementar à edição imagética, através de músicas ou palavras sincronizadas com as cenas, mas sem sons do ambiente. Contudo, o que percebemos ao analisar a edição do áudio dos filmes produzidos neste período, foi um equilíbrio entre a utilização do som ambiente da narrativa com músicas e outros sons. Um bom exemplo desse tipo de edição, que buscou a interação das diversas possibilidades sonoras, como mais um recurso ao entretenimento, foi o filme de Vertov denominado Entusiasmo-A Sinfonia de Donbas realizado em 1930. Logo no início do filme, Vertov colocou uma série de legendas onde ele vai dizer que:
A imagem e o som de parte deste documentário, foram gravados externamente mediante o sistema Shorin, em minas, fábricas e outros lugares reais. A música da película é a seguinte: uma marcha do compositor Timofeev dedicada à (Sinfonia de Dombas) e os acordes finais da sinfonia de Shostakovich O primeiro de Maio. (Vertov, 1930)
Ao analisar o filme percebe-se que o uso de sons ambientes, e incluímos ai a fala de algumas personagens, se intercalará durante todo o filme com sons externos e artificiais às cenas imagéticas contidas nesta obra. No inicio do documentário, Vertov abusa dos recursos propostos por Eisenstein em seu manifesto, mas também permite que o som ambiente seja utilizado, inclusive em depoimentos como o de um trabalhador não identificado, que aos 00:28 min do filme, fez um apelo para todos os cidadãos se dedicarem ao aumento da produção de minérios, em função da necessidade de progresso. Posteriormente a esta cena, a trilha sonora do filme fica mais objetiva com relação à intenção do diretor em colocar na sua obra, os verdadeiros sons das imagens relativas ao trabalho desempenhado por cidadãos da URSS nas minas destinadas a abastecer a indústria soviética. A maioria dos sons, não provém de diálogos dos trabalhadores, mas sim do impacto de suas ferramentas, ou maquinas utilizadas para extração e escoamento dos minérios produzidos nestas minas.
Com o advento do som a função pedagógica do cinema se tornou mais efetiva e, os milhões de trabalhadores analfabetos puderam apreciar a sétima arte em todo seu potencial. Porém, quase que concomitante a este período, Stalin começou a acumular forças sobre o controle do Partido, o que influenciou drasticamente a produção cultural soviética. Os debates em torno de um modelo estético oficial destinado a normatizar a produção cultura se tornaram cotidianos. During this period the concern about the balance of cinema between entertainement and education was growing, and this was reflected in heated theorical debates. (BEUMERS, 2009, pag 48).
Ao adotar a perspectiva de construção do socialismo em um só país, Stalin colocou a URSS em uma situação de isolamento internacional que havia sido superada após a guerra civil. Numa postura desafiadora e contra o isolacionismo recorrente das políticas de Stalin, os chefes do Sovkino, Ilya Trainin e Konstantin Shvedchikov adotaram a seguinte política: eles aumentaram a importação de filmes estrangeiros que faziam muito sucesso na URSS, para que a renda da bilheteria fosse destinada a produção de filmes soviéticos. Esta política de gestão cultural encontrou forte resistência de uma parcela dos cineastas que então, dominavam a direção da Associação dos Cinematógrafos Revolucionários. Outra instituição que participou ativamente deste debate, em torno do modelo de gestão do cinema na URSS foi a Sociedade dos Amigos do Cinema Soviético, fundada em 1925, mas dissolvida em 1934, devido as suas críticas sobre o realismo socialista, e a não importação de filmes estrangeiros. Vale ressaltar que esta instituição foi fechada pelo OGPU, organização que sucedeu a Cheka, como o órgão de espionagem interna da URSS.
Ao mesmo tempo, que a cinematografia soviética foi absorvendo os avanços técnicos relacionados ao desenvolvimento do cinema, a sua estrutura política ganhou contornos autoritários com a conquista pela hegemonia política sobre o aparato do Partido Comunista por Stalin. Pode parecer paradoxal, mas à medida que o cinema soviético foi se adaptando ao som, a sociedade da URSS foi se tonando cada vez mais silenciosa.
*Historiador. Mestrando do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade. Bolsista CAPES. [email protected]
Referências Bibliográficas.
BEUMERS, Birgit. A Histoy of Russian Cinema. New York: Berg, 2009. 328 p.
FEIGELSON, Kristian. Merker/Medvedkine ou os olhares cruzados leste/oeste: A história revisitada no cinema. In: NÓVOA, Jorge. Cinematógrafo: um olhar sobre a história. Salvador/são Paulo: Edufba/unesp, 2009. p. 363-379.
GRECO, Patricia. Revista Contra Cultura. Rio de Janeiro: Miserê Produções, v. 2, 02 abr. 2008. Disponível em: <www.uff.br/revistacontracultura/Arte%20Revolucao%20Greco.pdf>. Acesso em: 02 abr. 2010.
Filmes Consultados.
VERTOV, DZIGA. Entusiasmo -A Sinfonia de Donbas ( URSS, 1930)
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