Quase 4 milhões de pessoas já morreram na guerra da República Democrática do Congo, afirmou um artigo publicado recentemente no jornal de medicina 'Lancet'. Se a informação for confirmada, trata-se do maior número de mortes em um conflito desde a Segunda Guerra Mundial, informou Roland Pease na BBC Brasil.
O levantamento foi feito pelo Comitê de Resgate Internacional, com base em uma amostragem de 20 mil casas visitadas por uma equipe da organização em 2004.
De acordo com o artigo, a maior parte das mortes ocorre em decorrência de doenças facilmente preveníveis ou tratáveis, como malária e diarréia, mais do que pela violência em si. Segundo os pesquisadores, as crianças são as principais vítimas da falta de cuidados. Comparando as estatísticas com as de outros países da África subsaariana e com dados do próprio Congo anteriores à guerra, os pesquisadores concluíram que o conflito está matando 38 mil pessoas todo mês (no Iraque foram 7 mil mortos em todo o ano de 2005).
Os pesquisadores então projetaram a média mensal no período entre 1998, quando começou a guerra, e 2004, ano em que estiveram no país. Em algumas regiões, as taxas de mortes chegavam ao dobro do que eram antes do início do conflito.
Índices vergonhosos O artigo da 'Lancet' destaca também a desnutrição generalizada e o colapso do sistema de saúde pública como conseqüências da guerra. Para fundamentar o argumento, eles citam o caso de Kisangani, onde as taxas de mortalidade caíram 80%, quase retornando ao patamar pré-guerra, desde que os combates cessaram na região. Os autores afirmam que a comunidade internacional responde de forma inadequada à crise. O informe da ONU para o Desenvolvimento Humano (IDH) de 2000 apontou que, entre 173 países pesquisados, o Congo aparecia na posição de número 152. Atrás dele estão países em grande parte da África, entre eles Uganda, Ruanda e Etiópia. Entre 190 países, o Congo possui a nona maior taxa de mortalidade de crianças até 5 anos (UNICEF, 2000), de 207 crianças para cada 1.000 nascimentos.
Em 1998, o país recebera apenas 126 milhões de dólares em ajuda oficial (PNUD, 2000). Apenas a título de comparação, em abril de 2003 o Departamento de Defesa dos Estados Unidos levantou US$ 1,7 bilhões em ajuda para "socorro" (após o intenso bombardeio a civis, um típico crime de guerra) e "reconstrução" do Iraque. A CIA reconhece - pelo menos - a existência do país, destacando em seu relatório, logo no início, que a República Democrática do Congo já "um dos maiores produtores de petróleo da África"...
100 mil pessoas fugiram desde agosto de 2004 A diretora adjunta da organização de direitos humanos Médicos Sem Fronteiras (MSF), Helen O'Neill, esteve recentemente na cidade de Lukona, Katanga, e relatou a catástrofe humanitária que atualmente acontece nas províncias de Katanga e Kivu do Norte. No dia 24 de janeiro de 2006, Helen fez um pronunciamento ao Conselho de Segurança da ONU. "Enquanto falamos, a vida e o sustento das pessoas estão sendo despedaçados pelo violento conflito entre facções armadas em ambas as províncias (Katanga e Kivu do Norte). Na sexta-feira, 20 de janeiro, soldados desertores do exército congolês atacaram a cidade de Rutchuru em Kivu do Norte, provocando a fuga de mais de 30 mil pessoas. As equipes de MSF também tiveram que se retirar para Uganda", disse.
Todos esses eventos, completa Helen, acontecem numa área onde há uma forte presença da Missão de Observação das Nações Unidas no Congo (MONUC), "Isso mostra o quão instável a situação é, e como é prematura, para muitas pessoas, a discussão sobre paz e democracia". Em Katanga, desde agosto de 2004, os conflitos entre os diversos grupos armados já provocaram a fuga de mais de 100 mil civis congoleses vítimas de violência. Apesar disso, pouca assistência tem sido oferecida aos deslocados que perderam tudo e tentam agora encontrar refúgio em áreas despreparadas para recebê-los. "Por que suas necessidades mais básicas como alimentação, abrigo, água e cuidados de saúde não estão sendo atendidas? Por que há uma quase total falta de ajuda humanitária tanto em nível nacional quanto internacional? Caso não haja uma mobilização imediata, muitas vidas poderão ser perdidas", afirmou Helen.
Um relatório do Conselho de Segurança do dia seguinte ao pronunciamento de Helen, de 24 de janeiro, acusa o exército congolês de diversas violações aos direitos humanos, tal como a execução de seis pescadores, estupros, prisão de crianças e utilização de mão-de-obra local para transporte de bens roubados.
Situação cada vez pior "Inúmeras ondas de violência já assolaram a província de Katanga, desde que a paz foi oficialmente declarada na República Democrática do Congo há dois anos", afirmou Helen ao Conselho de Segurança. As milícias Mai Mai, afirma, atacaram cidades, queimando as casas, saqueando as pessoas, matando e estuprando inocentes. Ela confirmou que militares forçaram os sobreviventes a servir de carregadores.
"Operações militares realizadas pelo exército congolês contra essas milícias sacrificaram as necessidades e o bem-estar dos civis em nome da retomada da ordem e da segurança. E os soldados cometeram abusos que vão desde assaltos e extorsões até estupros".
Como enfermeira, Helen esteve na cidade de Lukona em setembro de 2005 oferecendo assistência às famílias recentemente deslocadas. "Me lembro das longas filas de pais que aguardavam para que seus filhos pudessem ser vacinados contra o sarampo. Eu ouvia as suas angustiantes histórias sobre membros da família que haviam sido mortos, sobre a violência sexual a que eram submetidos, o incessante medo e o cansaço dessa fuga constante pela sobrevivência". O cenário é idêntico, por exemplo, ao genocídio de Ruanda em 1994, quando um milhão de pessoas foram mortas - com a benção da comunidade internacional, que lavou as mãos e retirou o apoio emergencial ao país no auge do conflito.
No Congo, a situação está no mesmo caminho. "Só tem piorado. Desde meados de novembro de 2005, mais de 80 mil pessoas fugiram de suas cidades por causa das operações militares e dos ataques dos Mai Mai.
Um civil ferido que tratamos no hospital de Bukama nos contou sobre os múltiplos assassinatos que presenciou e como os Mai Mai forçavam os civis a trabalharem para eles. Cerca de 15 mil pessoas vivem hoje em pântanos infestados por mosquitos ou em pequenas ilhas flutuantes do lago Upemba. Na semana passada, as milícias atacaram duas cidades, Kibondo e Kyubo, aumentando o sentimento de insegurança dos deslocados", afirmou Helen.
Doenças e desnutrição Apesar desta situação crítica, pouquíssima assistência tem sido oferecida àqueles mais afetados pela violência. Os grupos de deslocados dependem da boa vontade da população local para terem acesso a comida, roupas e abrigo, provocando um estresse considerável nas comunidades. "Atualmente, a Médicos Sem Fronteiras oferece cuidados de saúde de emergência, abrigos, artigos de primeira necessidade, água e estruturas de saneamento em diversos locais. Mas estamos completamente sozinhos. Outras organizações nacionais e internacionais de ajuda humanitária precisam se mobilizar urgentemente para que possamos atender às demandas crescentes dessas pessoas".
Helen acrescente que não entende porque a comunidade internacional de ajuda humanitária só está presente em áreas onde há um número significante de tropas da ONU, como nos Kivus, enquanto as pessoas em Katanga estão abandonadas apesar das necessidades que são enormes e não param de crescer. "Há problemas preocupantes de saúde - malária, infecções respiratórias, diarréia - como resultado de milhares de pessoas obrigadas a viver em condições precárias de higiene e em locais superlotados. Atualmente, a MSF está respondendo a um surto de cólera na região. Foram tratados 570 novos casos de cólera entre os dias 6 e 20 de janeiro em Kikondja".
A precariedade nutricional e a desnutrição, informa, também estão crescendo. "Em Mukubu, a MSF recebe 20 crianças com desnutrição severa por semana nos seus centros de alimentação terapêutica. E um levantamento nutricional realizado na semana passada revelou que 33% das 3.500 crianças pesquisadas apresentavam desnutrição moderada ou corriam o risco de desnutrição. Em Mitwaba, a última distribuição de alimentos do Programa Mundial de Alimentos da ONU aconteceu em agosto, com 13 mil deslocados recebendo alimentos suficientes para três meses. Desde então, eles não receberam mais nada".
Violência sexual e mortalidade Os mais de 15 mil deslocados em Nyonga, no Lago Upemba, não receberam nenhuma assistência além dos cuidados médicos e os artigos de primeira necessidade oferecidos pela MSF. Material para abrigo e artigos de cozinha foram distribuídos para 3.200 famílias, cuidados de saúde são oferecidos por clínicas móveis e por um centro de saúde da MSF e uma campanha de vacinação contra o sarampo está sendo realizada para 8 mil crianças. No entanto, muitos dos deslocados buscaram refúgio nas florestas próximas e estão inacessíveis para as equipes de MSF.
A violência sexual também é uma grande preocupação. "Em dezembro, a MSF tratou cinco mulheres e uma adolescente de 14 anos perto de Pweto que disseram ter sido estupradas por soldados do exército congolês. O problema pode estar subestimado devido ao medo e ao estigma", conta. Para além dos eventos mais recentes estão as precárias condições de vida enfrentadas pela população no norte e no centro de Katanga. Um relatório publicado pela entidade em novembro do ano passado revelou que os índices de mortalidade em Kilwa são de 4.4 mortes para cada 10 mil pessoas entre crianças com menos de cinco anos de idade. "Isto representa mais do que o dobro do índice considerado emergencial", alerta.
"Hoje nós chamamos sua atenção para a crise em Katanga. Mas isso não deve tirar a atenção das necessidades constantes que existem em toda a República Democrática do Congo". Os projetos no país representam uma das maiores mobilizações de ajuda humanitária da 'Médicos Sem Fronteiras' no mundo, com 220 profissionais estrangeiros e 2.100 profissionais congoleses oferecendo assistência em 26 localidades. Helen fez, então, um desabafo, já ao final de seu depoimento: "Esta terrível situação vai persistir em Katanga, nos Kivus e em Ituri, com centenas de milhares de pessoas sofrendo com múltiplas fugas, violência direta por parte de diversos grupos armados, desnutrição, e surtos recorrentes de doenças que poderiam ser evitadas. Esta realidade se tornou lugar-comum em muitas áreas, e está passando completamente despercebida. Devemos todos agir para evitarmos esta 'normalização' do inaceitável".
Veja algumas imagens de fotógrafos que acompanharam a Médicos Sem Fronteiras em http://viiphoto.com/projects.php?pID=5319 (*) Editor do Consciência.Net, colabora com o Fazendo Media (editoria de Internacional), Revista Viração e Núcleo Piratininga de Comunicação. Integrante do Movimento Humanista. Original deste texto em http://www.fazendomedia.com/novas/internacional010206.htm
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