Dr. Antônio Lírio e um certo dossiê

Não tenho tido muita paciência quando se trata de discutir o assunto intervenção armada fruto, talvez, da nossa desastrada e dolorosa experiência com os “gorilas” que tomaram conta do poder América Latina afora, como braço armado lacaio da política intervencionista e exploradora de Washington.


por Sidnei Liberal*

Meu caro Dr. Lírio


Recebi tua correspondência anterior com certa dose de má-vontade, confesso. Peço-te desculpas pelo fato. É que não tenho tido muita paciência quando se trata de discutir o assunto intervenção armada fruto, talvez, da nossa desastrada e dolorosa experiência com os “gorilas” que tomaram conta do poder América Latina afora, como braço armado lacaio da política intervencionista e exploradora de Washington, em nome do grande deus capital. O motivo surrado e maroto: o combate ao comunismo. Agora, com novos dados que incluem um dossiê contra o presidente Lula, arriscarei algumas opiniões.

Da última vez que os facínoras assumiram “momentaneamente” o poder ali permaneceram por quanto tempo? Que fizeram? Digo: por uma geração inteira. Mais: deixaram uma herança maldita de terra arrasada na cultura, uma perversa concentração de renda, ainda hoje difícil de resolver, um aumento de dívida pública e de inflação a níveis estratosféricos, uma corrupção sem limite, velada pela extrema censura aos meios de comunicação. Humilhação, banimento, exílio, tortura e assassinato de milhares de democratas e patriotas. Terrorismo de estado. E uma perigosa e humilhante submissão do Brasil aos interesses estadunidenses diante dos organismos multilaterais. Humilhação perante a Democracia, vexame perante a Civilização.


Outra coisa que também me deixou desestimulado foi que a tua hipótese considerava o pressuposto de um Estado Democrático de Direito ameaçado. Onde? Uma visão realista, não preconceituosa, atestará que, hoje, mesmo que ainda insuficientemente, ascendemos a um patamar jamais alcançado no Brasil quanto ao Estado Democrático de Direito. Ou a sucessiva exposição de escândalos não é a prova cabal de que nos anos lulistas nada mais se joga para baixo do tapete? Ou não passou a fase em que o ministro Brindeiro (ou Blindagem), de FHC, era mais um Engavetador-Geral? Ou não foi das estruturas institucionais do governo atual a responsabilidade pela apuração dessas falcatruas contra a ética, expondo, inclusive, membros do próprio partido do governo?


Não credito apuração responsável às novas vestais lacerdistas da imprensa venal e da nova UDN, sob as máscaras de PSDB e PFL, corruptas e hipócritas. O que esses narcisistas membros de CPIs produziram? Apenas imagens de um ruidoso BBB parlamentar-midiático. A intenção, como a ação real, foi lançar contra a candidatura oficial à reeleição essa profusão de imagens, adrede editadas. Nessa tarefa, um papel destacado para nossa “diligente” grande imprensa, cada vez menos profissional e cada vez mais venal. As repetidas tentativas de se ligar ao presidente Lula sucessivas crises, que se tornaram evidentes nesses anos, foram completamente desmoralizadas.

Há, também, em tua hipótese, um pressuposto ainda mais importante para uma intervenção militar: o desejo do povo. Mas, que povo está a desejar uma intervenção? A secular elite, descontente com a reeleição de um nordestino que está impressionando o mundo com sua política de diminuição do nosso perigoso fosso social? Ou os golpistas do PSDB e do PFL que vêm tentando apear do poder um governo legal e legitimamente eleito?

 Ainda bem que, conforme teu relato, o interlocutor militar condiciona, com muita sabedoria e propriedade, a possibilidade de uma ação armada, somente mediante a iminência de real ameaça à Democracia e à Constituição e a uma necessária defesa dos direitos do Povo. Povo com letra maiúscula para marcar bem seu real significado.


As nossas Forças Armadas sabem da sua responsabilidade de defender a Lei, a Justiça e os legítimos interesses do Povo. Nossos militares sabem que a modernidade não mais comporta o aventureirismo político. Sabem que são chagas de tempos sombrios passados. E sabem mais: que, solicitadas por quem de direito, saberão exercer, com dignidade e competência, suas atribuições de fiel instrumento de defesa do bem coletivo que é a nossa Democracia. Por isso, não tenho, agora, a menor dúvida, feitas as devidas correções dos conceitos utilizados em tua tese, de que é legítima, e da mais alta relevância, a utilização do instrumento das Forças Armadas quando efetivamente em defesa do interesse do nosso Povo e da Democracia.


Sobre o suposto “dossiê” contra o presidente Lula, supostamente em gestação por instituições estadunidenses, conforta-me o fato de que esses aloprados membros da “inteligência” dos EUA têm produzido cômicas e ridículas teses como essas, desde os tempos do macarthismo até os dias das provas de destruição em massa do Saddam. Considero-o, entretanto, uma criação do bloguista Jorge Serrão, do anêmico “Alerta Total”. Esse tipo de gente, que não esconde sua passagem pelas trincheiras golpistas nem pelo “caixa” de Roberto Marinho, e em razão da fartura de sua “criatividade política”, multiplicava-se às vésperas do golpe militar contra João Goulart. Tentativa pueril e inócua de se recriar o clima golpista de outros tempos.


Não subsiste o “documento”. É bastante primário e contem informações inconsistentes e desmoralizadas. Não tenho omenor respeito por esse “dossiê”, para mim apócrifo, elaborado por certo “organismo, sediado em Washington, que estuda e monitora a realidade da América”, anônimo, portanto, divulgado por um bloguista que define seu próprio blog como “Jornalismo Inteligente e Informação Privilegiada são as marcas registradas do Alerta Total. Leia todo dia! Política, Economia e Assuntos Estratégicos. Nitroglicerina Pura!“ Definitivamente, não é sério. Nem o bloguista, nem o blog, tampouco o “dossiê”.


Em atenção ao teu pedido de uma opinião, porém, e pensando que esta troca de idéias possa ser exposta a outras pessoas da nossa relação, como contribuição a um debate democrático, diria que aquele “documento” – assinalando que “Lula prepara um dos maiores movimentos de reestruturação econômica, voltado para as classes populares, dentro do projeto de longevidade no poder” – demonstra, desde o início, que as políticas de interesse popular, nomeadas de “populista” pela viciada elite – farta de poder no Brasil – somente poderiam ser praticadas com o pressuposto da intenção de longevidade no poder. É claro que o “populismo”, que trás no cerne o caminho da distribuição de renda, não interessa às nossas elites, nem ao Bush, nem ao Serrão. Quem se lembra do motivo do suicídio do “populista” Vargas?


Outra tese do documento, além daquelas variadas e batidas tentativas de envolvimento do presidente Lula com a crise moral da nossa sociedade, que atinge quase todas as instâncias da vida republicana, é a de que o Brasil “é um País continental e onde o povo é submisso, sem cultura e informação para avaliar as conseqüências políticas deste movimento rumo ao socialismo”. Pergunta-se: o Povo é submisso a quem? Eles – o Bush, nossas elites e o bloguista infame – é que querem o nosso Povo submisso e sem cultura. Para que? Para perpetuar, por mais 500 anos, a secular e perversa dominação parasita. Sem cultura? Não é o que assinalam pesquisas realizadas entre os trabalhadores brasileiros, apesar da secular má-vontade intencional de sucessivos governos com a cultura do nosso Povo. Mas, que cultura e que informação política tem o povo nos EUA?


É assim que penso. Submeto-me a censura por não me aprofundar na análise desse insólito “dossiê” e assumo inteira responsabilidade em indicar o seu melhor destino: o lixo. E não me arrependo da minha reação nem dos pensamentos que coloquei já em minha resposta anterior. A não ser, é claro, pelo mau-humor demonstrado, pelo que espero a benevolência da tua desculpa, merecedor que és do meu mais profundo respeito. Um abraço fraterno.


Leia no original: http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=12292
Publicado no Vermelho Oline ( www.vermelho.org.br ) em 16 de janeiro de 2007

Sidnei Liberal

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