Rumores midiáticos vêm levantando a possibilidade de Delfim Neto ocupar um cargo de ministro no segundo mandato do presidente Lula. Diante deles, acabamos nos recordando da recente cobertura jornalística do falecimento do ditador chileno Augusto Pinochet pelas redes de televisão.
Há poucas semanas, assistimos a imagens das atrocidades cometidas contra suspeitos e acusados de discordarem daquele sistema ditatorial, seguidas por uma visão bastante positiva da política econômica do mesmo regime que torturou e assassinou.
Como numa peça ou num filme em que são desrespeitadas regras básicas de continuidade, percebe-se um abismo entre primeiro e segundo ato: imediatamente após o relato daquele período que representou um dos piores atentados aos Direitos Humanos da História mundial, sucede-se um verdadeiro elogio a uma política econômica considerada bem sucedida e responsável por tirar o Chile de uma condição de país 'subdesenvolvido' dependente e o alavancar ao paraíso dos países centrais.
É como se, na apresentação do disparate entre a repulsa e o elogio a um mesmo regime, esforçando-se por separar o inseparável, os meios de comunicação afirmassem que as práticas dos porões da ditadura nada tivessem a ver com suas respectivas medidas econômicas, fechando os olhos para o fato de que ambas fazem parte de uma mesma política de Estado, concentradora de renda e distribuidora de miséria e punição para os pobres. Sem falar que as próprias análises acerca das políticas econômicas são parciais e etnocêntricas, ao adotarem uma atitude semelhante à de alguém que pensa conhecer um país passeando apenas no calçadão de sua 'avenida Vieira Souto'.
É preciso ressaltar que, ao longo dos 'anos de chumbo' da América Latina, a tortura não era meramente uma prática individual de torturadores perversos, mas sim, consistia numa política do Estado ditatorial. E foi esta a mesmíssima política de Estado que legitimou suas respectivas práticas econômicas! Para enxergar isto, devemos nos recordar que o exercício do poder não se dá apenas por meio de um, mas por inúmeros tentáculos, cada um representando uma esfera diversa, mas todos originados de uma mesma raiz: o poder econômico, o político, o poder da mídia e, sobretudo, o poder punitivo que deixou sua marca nos inúmeros desaparecidos e torturados.
Em toda a América Latina, os regimes ditatoriais visavam estabelecer uma política de subjugar os interesses dos países 'periféricos', como o Chile e o Brasil, aos interesses dos países 'centrais' ou, mais especificamente, do imperialismo norte-americano que sempre nos considerou um simples quintal. O discurso da mídia, capitaneado pela Rede Globo e pela revista Veja, ambas fundadas concomitantemente à instauração da ditadura militar no Brasil, busca justificar as práticas punitivas dos regimes ditatoriais apresentando as supostas maravilhas dos avanços econômicos. Estes meios procuram afirmar que, apesar de todos os desaparecidos, torturados, e da miséria decorrente de um a distribuição de renda criminosa, que houve um avanço no plano econômico. Certamente, houve crescimento econômico, mas somente para os ricos!
Voltemos os olhos novamente ao Brasil: durante a ditadura militar, o presidente Lula teve todos os seus movimentos grampeados, tendo inclusive sido preso. Fazem parte da composição de seu governo pessoas que foram torturadas, assim como companheiros de torturados, desaparecidos e assassinados políticos. A campanha explícita da direita midiática para fazer Delfim Neto ministro do Governo Lula, só pode ser entendida como uma infiltração! É como se a política econômica de Delfim Neto, ministro à época da ditadura, nada tivesse a ver com a política punitiva assassina e torturadora do DOPS/DOI-CODI. Ao contrário, ele é justamente um dos maiores símbolos dessa política da tortura da miséria. Todos sabemos que Delfim Neto não foi apenas o ministro de um governo militar mas, sim, que foi o ministro da economia dos militares. Delfim Neto como ministro, hoje, seria uma espécie de 'Cabo Anselmo' no interior do governo Lula: uma evidente infiltração de forças que não desapareceram pela decretação da anistia e do fim da ditadura.
Ao contrário da esquizofrenia de certos programas jornalísticos, pensamos que não existe absolutamente diferença alguma entre um mero torturador braçal e alguém que defende a política econômica do regime ditatorial. Elogiar a política econômica da ditadura Pinochet e defender a nomeação de Delfim Neto fazem parte de uma mesma atitude. Caso ocorra, contra toda nossa torcida e expectativa, isto consistiria numa conhecida política de infiltração do Estado Policial da Ditadura, o que deixaria o governo Lula numa corda bamba, já que o distanciaria brutalmente de muitos companheiros próximos.
André Barros, advogado criminalista, mestre em Ciências Penais; Marta Peres, doutora em Sociologia, professora da UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro
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