Argentina: Lei da previdência imposta com balas e manobras
Nada mais surpreende nesta Argentina sob Estado de exceção. Exceção para os setores mais débeis, trabalhadores, anciãos, mulheres, crianças, e deficientes físicos, que acabam de ser saqueados dos seus direitos conquistados. A nova Lei da Previdência aprovada na 3a. feira, foi imposta com tiros e pedras na rua e manobras violentas no Parlamento, não obstante a pressão de centenas de milhares de manifestantes pacíficos entre organizações sociais e sindicais e cidadãos isolados, completamente invisibilizados pela mídia. Após 17 horas de debate, madrugada adentro, com 117 votos contrários, 2 abstenções e 9 ausências na Câmara de Deputados, uma apertada maioria de 125 de Cambiemos (de Macri), transformou o ajuste previdenciário em lei. Não obstante, tentativas insistentes - várias vozes do bloco opositor kirchnerista e aliados - foram rechaçadas: propostas, desde a suspensão da Sessão, o retorno do projeto à Comissão, e até um plebiscito popular. O povo argentino não dormiu nessa noite. A marcha multitudinária, a greve em várias categorias (bancários, hospitais, ministérios), o ruído do embate violento de 3 horas na praça, fora do Congresso, entre um grupo de manifestantes e as forças policiais repressivas (resultando em mais de 100 feridos graves e 65 presos), continuou com um "panelaço" noturno estrondoso de donas de casa, velhos, jovens e crianças em vários bairros da capital e do interior do país, na esperança de fazer-se ouvir; nada deteve o ato violento que significou a votação da lei, ignorando os 80% de rechaço popular, e pisando na Constituição.
Os atores e autores dentro do Parlamento
As previstas manobras parlamentares não deixavam muitas esperanças. Governadores, chamados por uma deputada peronista, María Emilia Soria, de "prostitutas do Executivo", pressionaram seus deputados a votar. Outra deputada, Rosa Muñoz denunciava como o seu governador de Chubut foi ameaçado de não receber fundos para pagar o salario dos seus funcionários estaduais. Não há independência de poderes. O Executivo suplantou o Parlamento.
O cenário fora do Parlamento
A mídia hegemônica, o enfoque da violência, a inviabilização da multitudinária manifestação e a repressão, foram condimentos para a panela de "Cambiemos" garantir a fome do poder de grupos econômicos multinacionais e impor a lei do FMI.
Para a maioria dos analistas políticos da esquerda que acompanharam essa terrível batalha na Praça do Congresso, não resta dúvidas de que o descontento é explosivo e comprensível no país, sobretudo em setores de estrema pobreza e mal organizados. Nesse meio de cultura, incendiou-se a chama da violência, acompanhada de pedradas, com muitas evidências de grupos organizados de mascarados ou infiltrados da própria polícia, parte do cenário de batalha (estrategicamente combinado com os serviços de segurança e a liderança política de Cambiemos), sob a cumplicidade das câmeras da grande mídia; tratou-se de compor a imagem de vitimização da Polícia da Cidade (*) para justificar a brutal repressão posterior. O esquema midiático de incriminação da inteira manifestação, é impedir e ocultar a novidade mais importante neste momento: a unidade do movimento operário, sindical-popular, de todas as Centrais Sindicais (duas CTAs), incluindo a CGT, com todas as forças políticas opositoras, desde a Unidade Cidadã (kirchnerista), os partidos de esquerda, aos setores progressistas da sociedade e do parlamento. Essa é a grande notícia!
Golpe midiático: intimidar, desestimular a adesão do povo em casa, e justificar, à nação e ao mundo, a votação urgente da lei. Durante três horas de batalha campal, a mídia não transmitiu sequer uma imagem das centenas de milhares de manifestantes, sindicatos e organizações sociais e dos trabalhadores, que transbordaram a Rua 25 de maio, a famosa Nove de Julho, e todas as adjacências, formando um cordão humano monumental, persistindo pela terceira vez (em uma semana), conscientes dos riscos da violência repressiva. As imagens panorâmicas tiradas por drones alternativos, foram visibilizadas somente por redes sociais. Entra em cena um mecanismo midiático que já operou em fatos como aquela "revolução não transmitida", quando se ocultou a verdade e a reação popular massiva no resgate a Hugo Chávez frente ao golpe na Venezuela (2002). O golpe midiático é mais forte que a violência das pedras. Precedentemente, tiraram do ar jornalistas opositores do C5N (**); agora, perseguem e ferem dezenas de trabalhadores das comunicações, fotógrafos e cinegrafistas. Assim, as manifestações massivas, as opiniões, as faixas sindicais, as palavras de ordem, não foram transmitidas. Reforça-se a conclusão: não descuidar! Os meios de comunicação são vitais para assegurar e avançar nos direitos e conquistas sociais.
Após a lei da previdência, votaram a fiscal e o orçamento anual de 2018.
Dois dias após a aprovação da lei da previdência, aprovou-se a reforma fiscal que em nada favorece as pequenas empresas, e ameaça o mercado de trabalho; votou-se o orçamento anual, já com todos os cortes e o pacote dos ajustes que comportarão a "reforma" trabalhista adiada para o próximo ano. O deputado e ex-ministro da economia Axel Kiciloff disse: "Isso é parte do pacotão de reformas neo-liberais que o governo escondeu até terminarem os comícios e agora pretende executá-lo com urgência." "Perdoa impostos aos que mais lucram e traslada a carga aos que menos tem". "Vocês (parlamentares governistas) estão arrasando este país". "O ANSES (inps) tinha superávit, vocês o deixaram no vermelho e agora, cortam os subsídios". Abrem-se alas à privatizaçao do fundo de pensão já antes des-privatizado por Cristina Kirchner.
As reações continuam e aumentam
Mas, as reações não esperam por nada. A oligarquia se sente respaldada pelo poder político central. Na província de Jujuy, governada por Geraldo Morales, o mesmo que prendeu Milagro Salas, desencadeou-se uma feroz repressão a 400 trabalhadores demitidos do Engenho canavieiro, "A Esperança", falida, administrada pela Província, e comprada por uma empresa colombiana. Há 20 feridos e 20 detidos. E a mais recente foi a invasão armada de 4 civis contra a residência de um vereador da Unidade Cidadã, Hernán Letcher, diretor de CEPA (Centro de Economia Política Argentina).
Por outro lado, a reação popular, oposta não só à Lei votada, mas ao acionar político-repressivo do governo Macri. Uma juíza de 1a. instância, López Vergara, havia apelado à legislação que regulamenta a Polícia da Cidade a não portar armas de fogo e estar identificada nas manifestações públicas: "Todos temos que colaborar com a paz social. Que se cumpra a lei, dentro dos marcos constitucionais e internacionais!". Isso lhe está custando uma ameaça e ação penal de instâncias superiores do governo. Juízes, como o de La Plata, que acionou contra o ministro das energias pelo roubo do "tarifaço" sofrem perseguição judicial. Mas, a oposição não se detém. Formam-se dezenas de núcleos cidadãos, promovida pela CTEP (Confederação de Trabalhadores da Economia Popular), em vários municípios, com apoio de juristas locais, chamados "Amparos", contra a inconstitucionalidade da "reforma previdenciária", violadora de pactos internacionais.
A reação popular não é só contra o assalto econômico, mas ao incremento da repressão social. Todos os organismos pelos direitos humanos, mães e avós, igreja pelos pobres, protestam e se mantém mobilizados. O mais surpreendente é a reação espontânea e popular dos chamados "cazerolazos" (panelaços) noturnos. O panelaço foi característico dos reacionários anti-kirchneristas, mas foram adotados hoje pelo anti-macrismo nos bairros pela primeira vez com o protesto aos "tarifaços", para fazer ruído e visibilizar pessoas comuns, vizinhos, não militantes, os que não aparecem nas manifestações, os velhinhos com bengala, deficientes físicos, famílias, classe média empobrecida, e talvez alguns eleitores iludidos por "Cambiemos". Não se trata de uma reação "somente porque lhes tocam a carteira", como alega parte da esquerda. Quando os invisíveis se expõem, mesmo com a repressão ameaçadora, é porque lhes tocaram a consciência. É algo mais profundo na sociedade argentina, é o início da derrota política de Macri.
Apenas um extrato de elite, da burguesia e da alta classe média, num país de 30 mil desaparecidos na ditadura militar, pode aceitar os discursos belicistas de Macri, que se gabou da repressão, além da sua vice-presidenta Michetti: "Você vai ao Canadá e a verdade é que se um grupo de pessoas gera tal nível de violência, as forças de segurança atuam expulsando-as, seja como for; se não der, passa imediatamente com o caminhão hidrante; e depois, atira balas de borracha na perna..."
Uma pessoa que vivenciou anos de luta na Argentina, expressou sua grande esperança ao ver o povo sair desta maneira, com panelas na mão, em multidões, naquela noite, enchendo a Praça do Congresso, sobre os escombros de pedra e repressão. "Algo assim, vi somente, quando morreu Nestor Kirchner. Uma multidão enorme, comovida, decidida. O povo tomou consciência do que se perdia".
Helena Iono
(*) Nesse dia, a "gendarmeria" nacional, autora da brutal repressão do ato de dois dias anteriores, foi substituída corpo da polícia da cidade.
(**) Victor Hugo Moráles e Roberto Navarro, ex-moderadores do C5N dos programas "O diário", e "Economia e Política", respectivamente. Atualmente, no www.eldetapeweb.com, e rádio AM 750.
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