Estouro da bolha financeira ou parte da guerra ilimitada dos EUA?
Por Fábio Reis Vianna.
"Algumas pessoas farão muito dinheiro hoje à noite. Mas se a guerra de preços continuar, muitos perderão empregos, empresas irão à falência e países petrolíferos inteiros irão desmoronar. Tempos terríveis", profetizou Javier Blas, correspondente da Bloomberg News, na fatídica noite de domingo (8) em que o preço do barril de petróleo desabou praticamente 30% após a Arábia Saudita lançar uma guerra de preços.
Depois de a Rússia, num primeiro momento, não ter aceitado a proposta da Opep pela redução da produção com o intuito de segurar a queda dos preços, surpreendentemente - e após as fortes quedas da última sexta-feira (6) - a Arábia Saudita golpeou a Rússia aumentando a produção e consequentemente abrindo o caminho para uma escalada nos preços.
Coronavírus expõe as tensões que se avolumam no sistema mundial
Segundo artigo do Washington Post, um estranho personagem chamado Ali Khedery - classificado pelo jornal norte-americano como ex-funcionário dos EUA no Iraque e ex-perito no Oriente Médio para a Exxon - escreveu no Twitter domingo (8) à noite: "$20 o petróleo em 2020 está chegando". "Implicações geopolíticas enormes. Um estímulo oportuno para os consumidores líquidos. Catastrófico para petro-kleptocracias..."
Mesmo que na reunião da Opep - marcada para o final de março - um acordo de corte na produção ocorra, já que os russos disseram estar abertos a novas conversações, vai ficando a cada dia mais claro a tão anunciada crise financeira mundial, que parece estar mais próxima do que há alguns meses.
O acirramento da rivalidade entre as grandes potências - já assumido e encarado como uma realidade pelos países participantes da última Conferência de Munique - vem desenhando um cenário de movimentos quase irracionais dos principais atores do tabuleiro geopolítico mundial.
Isso vai ao encontro à ideia de que os Estados Unidos definitivamente abandonaram a postura de liderança contemporizadora da chamada Ordem Liberal do século XX para assumir uma conduta predatória, o chamado realismo ofensivo, já explicitada em sua nova estratégia de segurança nacional.
Segundo John Plender, do Financial Times, "o choque provocado pelo coronavírus nos mercados internacionais coincide com um cenário financeiro perigoso, marcado pelo forte crescimento do endividamento mundial". O Instituto Internacional de Finanças já alertou para a alta taxa de endividamento de 322% em relação ao PIB mundial, alcançando uma dívida total de US$ 253 trilhões.
Os primeiros reflexos do coronavírus, quando do seu aparecimento repentino na China, levaram o gigante asiático a abruptamente fechar as bolsas de Shenzhen e Shangai, o que foi uma acertada estratégia de prevenção aos ataques especulativos que se seguiriam ao alastramento do vírus.
O circo armado pela mídia ocidental e os primeiros sinais de pânico nos mercados mundiais sinalizariam ali o princípio do estourar da inflada bolha financeira mundial. A guerra de preços no mercado de petróleo é a quase confirmação de que o impacto sobre a confiança já está dado, e o caminho para o desencadear da crise da dívida global são favas contadas.
Sendo assim, o raciocínio que se desenvolve aqui, a princípio, não faria sentido se olhado pelo ângulo do interesse imediato eleitoral da administração Trump, porém, do ponto de vista da lógica da guerra infinita desencadeada pela nova estratégia de defesa dos Estados Unidos, é totalmente plausível.
O aumento acelerado da competição no sistema mundial vem se aprofundando desde a entrada da China no caleidoscópio interestatal deste princípio de século XXI.
Apesar de a Rússia ainda ser a grande justificativa dos esforços do hegemon do sistema em aprofundar a competição permanente e selvagem que tem levado ao limite a instabilidade geopolítica global, a milenar China, ao assumir e bancar uma estratégia expansionista para além de suas fronteiras, tornou-se uma ameaça à supremacia norte-americana no Leste Asiático e na Ásia Central, bem como até na região que para os norte-americanos seria equivalente em termos estratégicos ao Mare Nostrum dos romanos: a América Latina.
Neste cenário, o uso dos instrumentos de guerra híbrida se intensificaram e se tornaram regulares na estratégia de desestabilização de adversários. Na lógica do hegemon desafiado por potências rivais cada vez mais audaciosas e formulando articulações entre si, a expansão permanente do seu poder - agora com a roupagem de um império militar raivoso - é inerente à própria sobrevivência da sua hegemonia.
Este estado de guerra ou iminência de guerra permanente se retroalimenta gerando um ambiente global de instabilidade constante. Os recentes acontecimentos decorrentes do assassinato do general iraniano Qasem Soleimani em território iraquiano são um exemplo muito claro disso.
Mesmo quando no dia 3 de março o Federal Reserve cortou as taxas básicas de juros em 0,5 ponto em resposta à expansão do coronavírus e sem nenhum aviso prévio, os Estados Unidos implicitamente deram uma demonstração de força e reforçaram a ideia de que seus interesses nacionais estão acima de qualquer coisa.
Diante deste contexto, caberia levantar a hipótese de que o surgimento do coronavírus na China não seria um fato isolado na escalada das tensões do atual cenário global onde o líder do sistema, se vendo pressionado e questionado por atores emergentes e ávidos por alçar degraus mais elevados na hierarquia, reage de maneira violenta e unilateral para reafirmar sua hegemonia.
Os ataques no campo comercial e tecnológico contra a China já indicavam essa virulência aparentemente até irracional por ser prejudicial a todo o comércio internacional e, em último caso, também aos Estados Unidos.
Ocorre que, se pensarmos num paralelo entre o que representa a ascensão da Huawei e do avanço que representa a tecnologia 5G para a China com o que representou o Sputnik para a União Soviética nos anos 50, tudo que já foi exposto neste artigo começa a fazer sentido.
O Global Research, Centro de Pesquisa sobre Globalização, com sede no Canadá e dirigido pelo professor Michel Chossudovsky, já publicou uma série de artigos de especialistas internacionais onde eles demonstram que "não se pode excluir que o vírus tenha sido criado em laboratório".
No que diz respeito à esfera meramente geopolítica e geoeconômica do ocorrido, é inegável o estrago que a epidemia de coronavírus vem causando à China.
Segundo a Rivista Italiana di Geopolitica - limes, até a Belt and Road Initiative (BRI), o projeto das novas rotas da seda chinesa, foi afetada pela difusão da epidemia, causando o atraso no transporte de mercadorias empregadas no desenvolvimento dos projetos de infraestrutura tocados pela China no exterior. Se os Estados Unidos estavam ávidos por golpear a economia chinesa de alguma forma, conseguiram.
O próprio secretário de Comércio dos EUA, Wilbur Ross, numa entrevista à Fox Business, por descuido ou não, confessou: "Penso que o coronavírus contribuirá para o regresso de postos de trabalho da China para os EUA. Na China, primeiro houve a Sars, depois a peste suína, agora o coronavírus". O New York Times foi enfático: "A perda para a China pode ser um benefício para a América".
De fato, como escreveu em artigo recente o geopolitólogo italiano Manlio Dinucci, "o vírus pode ter um impacto destrutivo sobre a economia chinesa e, numa reação em cadeia, sobre o resto da Ásia, da Europa e da Rússia, já afetadas pela queda nos fluxos comerciais e turísticos, para total vantagem dos EUA, que permaneceram economicamente disponíveis".
Se o surto do coronavírus é meramente um grave alerta do acaso de que a bolha financeira mundial está prestes a estourar, ou se seria mais um elemento inserido no arsenal de guerra ilimitada da nova estratégia de defesa dos Estados Unidos - um reboot antecipado do sistema versão global - só a História nos dirá.
Fabio Reis Vianna
Escritor e analista geopolítico.
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