Hasta siempre, Fidel
Ao chegar ao poder em 1959, Fidel Castro (13/08/1926 - 25/11/2016) parecia ser mais um desses caudilhos latinos americanos que se erguem em armas para derrotar as oligarquias que se apossaram dos destinos de suas pátrias e que mal chegam ao governo, reproduzem essas práticas.
A simpatia que cercava os jovens barbudos de Sierra Maestra, logo começou a se desfazer entre os democratas liberais, que os apoiaram inicialmente, quando varreram de Havana a máfia corrupta que transformara o país num grande prostíbulo e se começaram a criar, a pouco mais de 100 quilômetros de Miami, um país que não aceitava mais a condição de colônia norte-americana.
Fidel Castro não pretendia reproduzir em Cuba o modelo de democracia representativa europeia, que muitos dos seus apoiadores iniciais, como Jean Paul Sartre, por exemplo, defendiam que deveria seu objetivo e deixou isso logo claro, quando levou para o 'paredón' os acusados de crimes contra a humanidade e prática de torturas durante o regime de Fulgência Batista.
Embora só em 1976 Cuba tenha inscrito em sua Constituição que era uma república socialista, desde o início, Fidel e seus companheiros imaginaram que poderiam desenvolver na ilha um sistema socioeconômico à margem do capitalismo, o que provocou desde logo a reação americana.
"É isso que eles não podem nos perdoar, que estejamos aqui, sob seus narizes, e que tenhamos feito uma revolução socialista debaixo dos narizes dos Estados Unidos", disse Fidel.
O aprofundamento do caráter socialista da revolução cubana - o que de certa forma não estava incluído nos manuais marxistas - só foi possível porque a conjunção internacional no início da década 60, com o crescimento do poderio econômico e militar da União Soviética, assim o permitiu.
Apesar disso, o apoio soviético nunca foi pleno e, de certa forma, atendia mais aos interesses dos russos do que aos cubanos.
Em 1962, quando da crise dos mísseis, Nikita Kruchov negociou com Kennedy o desmantelamento da base soviética em Cuba em troca da retirada dos foguetes norte-americanos da Turquia.
Cuba, no caso, foi mais uma peça no xadrez da Guerra Fria, e Kruchov, como já tinha feito Stalin durante a guerra civil espanhola, enterrava mais uma vez a ideia da solidariedade internacional dos povos, em troca da preservação da experiência do chamado socialismo real na União Soviética.
Mesmo sem o apoio integral dos soviéticos, Cuba continuou tentando construir o seu modelo de socialismo, ainda que não sendo aquele sonhado por Marx, Lenin e Trotsky, se tornaria um modelo para às esquerdas latino-americanas.
Como disse uma vez Fidel, comparando Cuba com os demais da América Latina:
"Em vez de nos agredirem como nos agridem, por que é que não fazem simplesmente uma pergunta: como é possível que Cuba, em 30 anos, tenha feito o que a América Latina não fez em 200 anos?"
Em setembro de 2015, quando o Papa Francisco visitou Cuba, Fidel Castro deu a melhor justificativa para a Revolução Cubana:
"Esta noite milhões de crianças dormirão na rua, mas nenhuma delas é cubana."
Essa é a grande diferença de Fidel dos demais líderes latino-americanos, que em algum momento da história dos seus países tentaram desenvolver um modelo político à margem do imperialismo.
Foi o caso de Allende, no Chile, derrubado por um golpe militar em 1973; de Lula, no Brasil; de Lugo, no Paraguai; de Correa, no Equador; de Morales, na Bolívia; e, até mesmo do casal Kirchner, na Argentina, que avançou em conquistas sociais para os mais pobres, mas que jamais contestaram o regime capitalista.
Quem mais avançou nesse caminho foi Chávez, na Venezuela, que, mesmo assim, precisou usar o adjetivo 'bolivariano' para o seu movimento e não socialista, talvez até mesmo para preservar seu regime.
Esse parece ser o grande problema dos líderes da esquerda latino-americana, que sonham com um socialismo democrático à lá europeia e não dão o passo seguinte rumo ao rompimento com o modelo capitalista.
Slavoj Zizek disse que os políticos que mais temem uma revolução socialista de verdade, são os socialistas democratas.
Istaván Meszaros foi mais preciso na análise dessa política de conciliação em seu livro Atualidade Histórica da Ofensiva Socialista:
"O discurso político tradicional geralmente proclama o sistema parlamentar como o centro de referência necessário de toda mudança legítima. A crítica só é admissível em relação a alguns detalhes menores, visando corretivos potenciais, que apenas remenda até certo ponto a estrutura da política parlamentar estabelecida, mesmo quando se torna impossível negar sua vacuidade, deixando inalterado o próprio processo, estruturalmente arraigado, de tomada de decisões."
Com a morte de Fidel Castro, desapareceu o único personagem da história política da América Latina que teve a coragem de tentar fazer uma verdadeira revolução socialista.
Em homenagem a Fidel Castro, nada melhor do que reproduzir um texto do grande escritor uruguaio Eduardo Galeano (As veias abertas da América Latina):
"Seus inimigos dizem que foi rei sem coroa e que confundia a unidade com a unanimidade.
E nisso seus inimigos têm razão.
Seus inimigos dizem que, se Napoleão tivesse tido um jornal como o Granma, nenhum francês ficaria sabendo do desastre de Waterloo.
E nisso seus inimigos têm razão
Seus inimigos dizem que exerceu o poder falando muito e escutando pouco, porque estava mais acostumado aos ecos que às vozes.
E nisso seus inimigos têm razão.
Mas seus inimigos não dizem que não foi para posar para a História, que abriu o peito para as balas quando veio a invasão; que enfrentou os furacões de igual pra igual, de furacão a furacão; que sobreviveu a 637 atentados; que sua contagiosa energia foi decisiva para transformar uma colônia em Pátria e que não foi nem por feitiço de mandinga nem por milagre de Deus, que essa nova Pátria conseguiu sobreviver a dez presidentes dos Estados Unidos, que já estavam com o guardanapo no pesco&cced il;o para almoçá-la de faca e garfo.
E seus inimigos não dizem que Cuba é um raro país que não compete na Copa Mundial do Capacho.
E não dizem que essa revolução, crescida no castigo, é o que pôde ser e não o quis ser. Nem dizem que em grande medida o muro entre o desejo e a realidade foi se fazendo mais alto e mais largo graças ao bloqueio imperial, que afogou o desenvolvimento da democracia a la cubana, obrigou a militarização da sociedade e outorgou à burocracia, que para cada solução tem um problema, os argumentos que necessitava para se justificar e perpetuar.
E não dizem que apesar de todos os pesares, apesar das agressões de fora e das arbitrariedades de dentro, essa ilha sofrida, mas obstinadamente alegre, gerou a sociedade latino-americana menos injusta.
E seus inimigos não dizem que essa façanha foi obra do sacrifício de seu povo, mas também foi obra da pertinaz vontade e do antiquado sentido de honra desse cavalheiro que sempre se bateu pelos perdedores, como um certo Dom Quixote, seu famoso colega dos campos de batalha."
Marino Boeira é jornalista, formado em História pela UFRGS
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