A humilhação de Lula mostra que não houve "conciliação" e jamais haverá "absolvição da história"
Por Gabriel Brito, no Correio da Cidadania
A cena é daquelas que só se pode acreditar vendo: Lula está preso, sim, é verdade. Duríssimo golpe em todos que sonharam com um país melhor. Mesmo aqueles que já tinham rompido há tempos com o Partido dos Trabalhadores e o consideram instrumento de aprofundamento da ordem neoliberal, com discurso demagógico que não resistiu às vicissitudes de uma crise econômica muito superior a tal "marola", não podem dissimular o impacto.
Lula preso é um golpe de morte nos últimos 40 anos de lutas sociais e trabalhistas. A tragédia já era anunciada, afinal, estamos falando de setores que há tempos se descolaram dos seus supostos representados, inclusive sob inúmeros alertas. Talvez por isso mesmo a burguesia brasileira tenha se sentido à vontade o bastante para quebrar as regras do seu próprio jogo e excluí-lo da cena político-eleitoral. Como vimos publicando, seu projeto neocolonial espoliador não pode se valer por meios democráticos. E depois daquilo que tanto chamamos de falsa polaridade, simbolizada nas disputas com o PSDB, agora é hora de partir para o assalto.
Para não deixar dúvidas, reiteramos o publicado quando da condenação no TRF-4: "é certo que estamos falando de um jogo roubado: Lula ir, em velocidade máxima, ao banco dos réus enquanto figuras como Michel Temer e Aécio Neves continuam gozando do status de inimputáveis é de causar engulhos em qualquer cidadão munido de honestidade intelectual. Os discursos e licenças poéticas reivindicados pelos três relatores do processo do tríplex, em seu simulacro de justiça e 'lei para todos', não são menos risíveis".
"Acho que o julgamento do Habeas Corpus foi uma lástima pela manobra da Carmen Lúcia em julgar o caso particular antes da regra, o que acabou tendo como efeito o resultado adverso ao Lula. Se ela tivesse votado as tais Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC) o resultado seria outro e Lula estaria livre. Parece que em breve essas ADCs serão julgadas", complementa o sociólogo Marcelo Castañeda, também colunista deste Correio.
Mas apesar do reconhecimento de tamanha hipocrisia da parte daqueles que não venceram uma eleição federal neste século, e seus pares de classe incrustados no vasto aparato estatal, também devemos reiterar que "não é possível fazer concessões ao lulopetismo e sua notória estratégia de se apresentar ao público como vítima de um sistema largamente denunciado por aqueles que tanto desprezou - e até criminalizou - ao longo dos últimos anos".
Fatos x propaganda
Como escrito pelo cientista político Fabio Luís Barbosa dos Santos, em seu livro Além do PT - A crise da esquerda brasileira em perspectiva latino-americana, "observou-se uma polarização política sem qualquer correspondência com o que efetivamente estava em disputa: a gestão da crise que se aprofundava no país. Enquanto o tom das acusações entre os candidatos se elevava, rebaixava-se o debate político. Um clima de hostilidade visceral intoxicou o eleitorado, ampliado pela mídia corporativa. Não é difícil perceber a função dessa polarização postiça, que ocultou as questões relevantes para o Brasil. Junho de 2013 escancarou a insatisfação com o padrão lulista de desenvolvimento do subdesenvolvimento, que neste momento teve expressões à esquerda e à direita".
Pode parecer perseguição aos atordoados partidários dos governos de Lula, mas fica novamente difícil tecer explicações sobre sua humilhante derrota sem passar pelos levantes de 2013, até hoje discriminados por uma esquerda que agora pede por unidade e diz condenar o sectarismo. Faz isso da boca pra fora, mas segue a torcer o nariz para as manifestações políticas mais diversas da história do Brasil. E pagou caro por propagandear de forma fantasiosa uma caminhada de progresso na vida do grosso da população, quando não passou de um voo de galinha, um momentâneo avanço material, numa vida cercada de privações e violências.
"Vamos aos dados oficiais contidos no Cadastro Único do Bolsa Família, disponível no sítio do Ministério do Desenvolvimento Social: em fevereiro de 2013, havia 71,1 milhões de pessoas que viviam com meio salário-mínimo. Dá 35% da população brasileira da época. Estamos falando de um período em que se completavam 10 anos de governos petistas, aqueles que supostamente reduziram dramaticamente a pobreza. Só supostamente. Saltemos para 2015, o último ano completo do governo de Dilma Rousseff e, como tal, o último ano do ciclo petista (até agora). Havia, então, 73.327.179 pessoas pobres - o que dá cerca de 36% de sua população total. Portanto, aumentou o número de pobres (em pouco mais de dois milhões de pessoas) e aumentou também um pouco a porcentagem de pobres no conjunto da população", escreveu Clovis Rossi, na Folha de S. Paulo.
Unidade em torno de quê?
Portanto, se há setores e grupos que ainda se interessam por essa tal unidade contra o mal maior - nem sempre associado ao caráter da exploração capitalista enraizada no Brasil - entender quem e por que se fizeram aqueles levantes continua necessário. Entre outras coisas porque com a resistência poética e slogans das redes sociais ou churrascos entre amigos no Sindicato dos Metalúrgicos é que não se sairá do canto do ringue.
"Lamentavelmente, o PT e sua militância estão obsoletos, afogaram-se num mar de prepotência e intolerância diante da alteridade. Toda crítica vem sendo tratada como discurso de ódio e, a seguir, achatada num bloco unitário e amorfo de 'antipetismo'. O extremismo petista parte, então, para a solução mais simples: denunciar como fascista tudo o que lhe desagrada, enfatizando o discurso de polarização partidária, que é forma não só de destruir o inimigo, como também de dobrar as críticas vindas à esquerda, segundo a tentativa de construir um discurso unificado hegemônico das 'esquerdas', quer dizer, a unificação que atende à vontade do governismo", escrevera neste Correio, em 2014, a advogada e militante de direitos humanos Priscila Prisco, ao comentar a contratação da empresa de marketing Marissol, incumbida de estabelecer "perfis sobre o antipetismo".
Sim, quem um dia teve Florestan Fernandes para compreender a mecânica da luta de classes brasileira atacou com uma obscura empresa de marketing e suas pesquisas de campo que veem manifestantes como clientes de uma democracia que só poderia se realizar pelo mercado e pelo consumo.
Ficou patente, desde então e com renovados exemplos, o fenecimento do partido como instrumento da transformação social. A acomodação e burocratização da sigla chegou a tal ponto que, além de incapaz de compreender a realidade, ou se recusar a fazê-lo, sempre respondeu com mais e mais austeridade. Não só em 2015-16, no mandato natimorto de Dilma, mas já naquele fervilhante 2013 e também em 2014.
"Confrontado com a impotência de mudar a ordem, o povo brasileiro assistiu uma radicalização reacionária durante o processo eleitoral. Neste contexto, muitos quadros acudiram a uma defesa apaixonada do petismo, esvaziada de qualquer potencial de mudança. No outro lado, uma classe dominante sempre avessa ao protagonismo popular sentiu que o momentum lulista passava e retomou a ofensiva. Sem alternativas programáticas a apresentar, seu discurso deslizou rapidamente a preconceitos e rancores que revelavam a intolerância com a existência de um partido de trabalhadores, embora desprovido de autonomia de classe", observa Fabio Luís em sua obra.
A falsa polaridade e sua destruição final
De impotência em impotência, e propaganda chapa-branca irresponsável, alienada do chão social, fomos sendo tragados pelos setores reacionários da sociedade, estes que ergueram um monumental apartheid social e apenas toleraram a habilidosa arbitragem política de Lula. Pois se do lado de cá nos acomodamos, por lá jamais descansaram em sua luta de classes. Quando as condições de "ganha-ganha" se esboroaram, sua ofensiva canhestra já estava armada. Porque sempre esteve, basta revisitar os acervos da mídia hegemônica e suas manchetes entre 2003 e 2012.
"O xis da questão é que o PT se tornou prescindível para realizar as reformas antipopulares exigidas no momento. Em 2015, a militância estava apassivada entre a dispersão e a resignação. Acomodados ao neoliberalismo, os defensores do governo recorriam a argumentos cada vez mais acanhados ou delirantes, sem ressonância popular", reforça Fabio Luis.
Traída a cidadania em todos os momentos decisivos, também podemos compreender a ausência de rebeldia diante de tamanha ofensiva conservadora. A acomodação, burocratização e desmobilização foi tanta que na hora em que as coisas fugiram do controle não houve forças para o combate. E quando houve se deu o "inexplicável" passo atrás.
Isso se viu em todos os momentos possíveis: na tentativa frustrada de nomear Lula para a Casa Civil, nas duas votações do impeachment de Dilma, nos fortes protestos contra Temer em 2016, nas milhares de alianças com o PMDB nas eleições municipais e nas duas greves entregues a este governo em 2017, em estratégia mesquinha das centrais sindicais que vislumbraram uma vitória eleitoral a partir de um país em frangalhos neste 2018.
Só restou, como dito, a resistência poética. "Quanto à atitude de Lula acho que, dentro da escolha dele em permanecer no país, era o que lhe restava ao invés de se entregar resignadamente em Curitiba. Era como se ele dissesse para Moro: vai ser do meu jeito. Sobre a militância que o cercou, era toda ela de esquerda, em uma espécie de mistificação de Lula como decorrência de sua decisão de não se entregar em Curitiba e fazer um jogo de força com Moro, jogo esse que Lula ganhou, a meu ver, no campo político. No entanto, me parece que essa mobilização está restrita ao campo da esquerda e não contamina a sociedade", complementa Castañeda.
Sobre os metalúrgicos do ABC, aliás, cabe lembrar que se tratou de uma organização pioneira em propor a tese do negociado sobre o legislado, lá em 2007, agora tornada realidade na Reforma Trabalhista de Temer. Afinal, falamos daquela classe trabalhadora que "foi ao paraíso", conseguiu suas vitórias, terá aposentadoria. Por isso, mais uma vez, não se compreende o que foi 2013, levante da geração nascida e crescida sob a égide da mercantilização total da vida. Também por isso jamais poderia partir dali uma resistência real à destruição da figura de Lula e do PT.
"Em 2012, eu estava lutando pelo Pinheirinho, quando Dilma não assinou a desapropriação e eu vi mais de 600 famílias serem massacradas. Em 2013, eu estava lutando pelo assentamento Milton Santos, quando também Dilma não assinou o decreto que manteria os assentados em suas terras, nas quais já estavam há muitos anos. Em 2013, eu estava nas ruas lutando pelo transporte público de qualidade, enquanto o PT condenava os que lutavam de serem braço da direita. Eu 2014, eu estava nas ruas lutando contra o grande desvio de dinheiro que foi a Copa do Mundo do governo do PT, enquanto Dilma assinava a Lei Antiterrorismo, que antecede o que pior há de vir aí aos movimentos sociais. De 2016 até hoje estou nas ruas, nas ocupações, nas periferias, nos sindicatos, fazendo luta, formação e resistência, enquanto boa parte dos movimentos que blindam Lula em São Bernardo se recusava a se mobilizar porque achava que quanto pior melhor, pois as chances do PT aumentariam nas próximas eleições. Agora, não vou sair nas ruas por Lula e pelo PT. Não me condenem por isso", escreveu uma leitora à Redação deste Correio, que pede anonimato pois lida em seu cotidiano com o proxenetismo da direita raivosa e seu projeto-cascata Escola Sem Partido.
Sem dúvidas, são tempos de trevas que poderão se acentuar. Só por estes dias, lidamos com notícias de massacres e rebeliões em presídio no Pará, chacinas em Fortaleza, em nova demonstração da falência do Estado brasileiro e ascensão de seu braço paralelo, e a informação de que na Bahia, governada pelos petistas Jacques Wagner e Rui Costa, o assassinato de negros cresceu 118% nos últimos dez anos.
Um país destroçado, sem dúvidas, e com instituições que não estão à altura de nada, ainda que o destruído PT delas dependa para se refazer politicamente, pois pelas ruas sabe que passará vergonha e falará sozinho.
"A decisão do STF sacralizou o esfacelamento final das instituições públicas brasileiras. Com clareza meridiana os juízes decidiram com a pressão imediata dos que operam com a força física do Estado, as Forças Armadas, que se pronunciaram com ameaças à forma constitucional. Juízes supremos que decidem sob o ditado da força mostram que não têm poder de fato e de direito. Aliás, a história da nossa Suprema Corte é farta de episódios em que magistrados, em colégio ou individualmente, se curvaram diante dos canhões. Perderemos até mesmo a ficção do pacto constitucional que ainda oferece alguma garantia de sobrevida à sociedade civil. Se não houver diálogo e bom senso de todos, os próximos anos serão de profundas trevas. E tal situação apenas prolonga o que vivemos desde o golpe de Estado que instaurou a suposta República brasileira", contextualizou o filósofo Roberto Romano.
Mas, novamente recorrendo à excelente obra de Fabio Luís e lembrando das críticas do sociólogo Ricardo Antunes, para quem o lulismo "não tocou nas estruturas da tragédia brasileira", não haverá a propalada absolvição da história. "A transformação do PT em braço esquerdo do partido da ordem será integrada como mais um capítulo da contrarrevolução permanente, que caracteriza a história brasileira contemporânea. A compreensão dos anos sombrios que virão não deverá ser feita por contraste, mas como desdobramento dos governos que o precederam. Não houve inflexão histórica: o sentido da atuação é o mesmo, ainda que o ritmo, o tempo e os meios difiram. Ao contrário de ser uma novidade, é quase uma lei da história que a frustração de governos identificados com a esquerda prepara o terreno para a ascensão da direita radical"
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