Intervenção federal no Rio: "leilão do Estado e falta de investimento nos profissionais da segurança"

Intervenção federal no Rio: "leilão do Estado e falta de investimento nos profissionais da segurança"


Ma­ri­elle Franco

Por Gabriel Brito, da Redação

Entrevista  em 24/02/2018

Apesar das pro­pa­gandas do go­verno, a crise pros­segue ga­lo­pante e o te­cido so­cial bra­si­leiro con­tinua em cor­rosão. Talvez a ex­pressão mais vi­sível, o Rio de Ja­neiro abre ca­pí­tulo iné­dito na his­tória da Nova Re­pú­blica e re­cebe a in­ter­venção fe­deral na Se­gu­rança Pú­blica, que visa dispor do Exér­cito em áreas mais pau­pe­ri­zadas. Sobre isso, con­ver­samos com a ve­re­a­dora Ma­ri­elle Franco, criada no com­plexo de bairros da Maré, re­gião com vasto his­tó­rico de mi­li­ta­ri­zação e, por outro lado, or­ga­ni­zação so­cial e co­mu­ni­tária.

"Dis­cute-se com poucos ele­mentos. Mas tra­balho com dois pa­ra­lelos. A in­sen­si­bi­li­dade e o des­res­peito com o fa­ve­lado e também os pró­prios po­li­ciais. O Braga Neto (no­meado chefe da in­ter­venção fe­deral) es­tava de fé­rias. O mesmo grupo go­verna o Rio desde 2007, o ex-se­cre­tário Ro­berto Sá (exo­ne­rado nesta se­gunda, 19 de fe­ve­reiro) se­guia a linha do an­te­rior, Ma­riano Bel­trame, que tinha algum nível de pres­tígio, se po­demos dizer assim, pelo menos para quem via de fora. Temos au­to­ri­dades que ficam sa­bendo das coisas pela im­prensa. A in­sen­si­bi­li­dade e des­res­peito se di­rigem a todos os mo­ra­dores da ci­dade", cri­ticou.

Além de ar­gu­mentar o ca­ráter fa­la­cioso de mais essa in­ter­venção mi­litar, a en­tre­vista res­salta a in­sen­si­bi­li­dade de ór­gãos po­lí­ticos e mi­diá­ticos na abor­dagem no tema, muitas vezes fo­cados no de­bate téc­nico-ju­rí­dico e pouco ci­osos da noção de que, para quem mora em certas áreas, pouca di­fe­rença faz, dado que o Es­tado mi­li­ta­ri­zado e o pró­prio exér­cito em suas áreas é uma tra­dição.  

"In­ter­venção mi­litar é farsa. E não é con­versa de hashtag. É farsa mesmo. Tem a ver com a imagem da cú­pula da se­gu­rança pú­blica, com a sal­vação do PMDB, tem re­lação com a in­dús­tria do ar­ma­men­tismo... Há uma série de fa­tores que me levam a essa con­vicção. Uma ação mi­diá­tica. Não à toa o Temer se reuniu com seu time de mar­que­teiros para ava­liar os im­pactos do anúncio da in­ter­venção, saiu nos jor­nais", atacou.

Ma­ri­elle também des­tacou a des­crença da ci­da­dania ca­rioca na me­dida, por mais que al­guns se­tores so­ciais con­ti­nuem a pres­ti­giar tal tipo de ação, talvez por mero de­ses­pero. De todo modo, rei­tera, como tantas vozes, que o aban­dono so­cial num es­tado que se en­tregou com­ple­ta­mente à mer­can­ti­li­zação da so­ci­e­dade, e agora está que­brado, é a grande ex­pli­cação do quadro.

"Mesmo sendo re­dun­dante, tem a ne­gação de di­reitos a esta po­pu­lação, claro. Meu exemplo con­creto, também sobre os mo­ra­dores da Maré: em 1997, 98, quando co­me­çaram os cur­si­nhos pré-ves­ti­bular, a pro­porção de alunos uni­ver­si­tá­rios no local era de 1% da po­pu­lação, igual o nú­mero de fun­ci­o­ná­rios do trá­fico. Hoje, temos cerca de 10% da po­pu­lação local na uni­ver­si­dade, mas graças a cur­si­nhos po­pu­lares e co­mu­ni­tá­rios pro­mo­vidos pela so­ci­e­dade civil, não por po­lí­ticas pú­blicas", re­sumiu.

A en­tre­vista com­pleta com Ma­ri­elle Franco pode ser lida a se­guir.


Cor­reio da Ci­da­dania: Em pri­meiro lugar, como ana­lisa a in­ter­venção do go­verno fe­deral na se­gu­rança pú­blica do Rio de Ja­neiro?

Ma­ri­elle Franco: Com re­ceio e pre­o­cu­pação. Já senti na prá­tica o que é dormir e acordar com ba­rulho de tanque, re­vistas e di­versas vi­o­la­ções de di­reitos, o que nos faz, fa­ve­lados e fa­ve­ladas, ter muita apre­ensão. Não só pela pers­pec­tiva do de­bate po­lí­tico e teó­rico. Na Maré, que é minha casa, meu lugar de vida, foram 14 meses de ocu­pação da Força Na­ci­onal na época das Olim­píadas. Des­pre­paro, vi­o­lação e vi­o­lência foram a ro­tina. 

Além disso, tem a questão da des­con­ti­nui­dade da po­lí­tica, um ponto im­por­tante. Foram 14 meses, com avanço pra cima do va­rejo do trá­fico ar­mado e recuo da parte deles, mas a pos­te­riori não houve ne­nhum tipo de con­ti­nui­dade. O foco no va­rejo não re­solve.

A po­pu­lação da Maré mais uma vez se vê sob o jugo de muitos fuzis, seja das Forças Ar­madas, da PM ou do crime. É um ele­mento que vul­ne­ra­bi­liza quem mora lá. E a po­lí­tica pú­blica de se­gu­rança, ao invés de pensar numa pers­pec­tiva in­clu­siva, ci­dadã, com al­ter­na­tivas ao va­rejo da droga, in­fe­liz­mente chega com a mão forte do ge­neral. Por isso vejo tudo com muito re­ceio.

Cor­reio da Ci­da­dania: O que você viu com os pró­prios olhos nestes pri­meiros dias de in­ter­venção?

Ma­ri­elle Franco: Sei que a per­gunta não visa o as­pecto téc­nico por si só, mas 2018 é um ano elei­toral. Se con­si­de­rarmos as ocu­pa­ções do Com­plexo do Alemão ou da Maré, vemos que foram em anos elei­to­rais. O pri­meiro sen­ti­mento que po­demos tirar das ruas é o re­flexo pelo es­tado do Rio, em todos os as­pectos que pre­ci­samos dar conta: ser­vi­dores sem sa­lá­rios, um sis­tema de trans­porte que não fun­ciona, uma ci­dade e re­gião me­tro­po­li­tana que não têm con­di­ções de dar ga­ran­tias de di­reitos so­ciais a seus mo­ra­dores... Ti­vemos re­cen­te­mente duas ou três chuvas com ala­ga­mentos pela ci­dade. Enfim, existe uma pre­o­cu­pação em torno da grande po­lí­tica a res­peito de como lidar com todo esse con­texto.

No en­tanto, ob­je­ti­va­mente, já temos al­guns re­flexos. É cedo para uma ava­li­ação de­fi­ni­tiva, mas pre­ci­samos pensar na di­fe­rença entre o De­creto de Ga­rantia da Lei e da Ordem (GLO) e este pro­cesso de in­ter­venção fe­deral, num es­tado da di­mensão do Rio, en­quanto as ope­ra­ções ocorrem. Vi­vemos a ope­ração na fa­vela da Maré, mas também na Ci­dade de Deus, por meio de forças mi­li­tares que já atu­avam quando co­meçou a vi­gorar o GLO, que entra na dis­cussão do mo­mento.

Agora, tais ope­ra­ções pa­recem ter mais apelo e le­gi­ti­mi­dade pe­rante a so­ci­e­dade, mas não há uma mu­dança tão apa­rente em termos de cir­cu­lação na ci­dade. Não dá pra ver se as pes­soas estão cir­cu­lando mais ou menos, se sen­tindo me­lhores, se há ga­ran­tias de que os ín­dices de le­ta­li­dade vão di­mi­nuir. Até porque não é a partir daí que a in­ter­venção se dá. 

De todo modo, o sen­ti­mento de in­se­gu­rança é ge­ne­ra­li­zado e nas fa­velas é ainda maior. E o que es­tamos vendo, nas áreas po­bres da ci­dade, é o abuso, as ações to­tal­mente inó­cuas no com­bate à vi­o­lência - aliás, são elas pró­prias vi­o­lentas e in­cons­ti­tu­ci­o­nais -, como re­vistar mo­chila das cri­anças e fo­to­grafar ci­da­dãos. Além de não coibir a cri­mi­na­li­dade, cri­mi­na­liza a po­breza. Armas e drogas não brotam nas fa­velas. Os que as fi­nan­ciam, e lu­cram com o mer­cado da cri­mi­na­li­dade, estão bem longe dali.

Cor­reio da Ci­da­dania: O que pensa das dis­cus­sões téc­nico-po­lí­ticas que tomam conta dos no­ti­ciá­rios prin­ci­pais? Para quem vive nos lo­cais ocu­pados pelo exér­cito tem muita di­fe­rença em re­lação a ou­tras in­cur­sões mi­li­tares, como as já men­ci­o­nadas, isto é, não chega a ser al­ta­mente in­sen­sível uma apre­ci­ação me­ra­mente téc­nica dos acon­te­ci­mentos?

Ma­ri­elle Franco: Acho que sim. Dis­cute-se com poucos ele­mentos. Mas tra­balho com dois pa­ra­lelos. A in­sen­si­bi­li­dade e o des­res­peito com o fa­ve­lado e também os pró­prios po­li­ciais. O Braga Neto (no­meado chefe da in­ter­venção fe­deral) es­tava de fé­rias. O mesmo grupo go­verna o Rio desde 2007, o ex-se­cre­tário Ro­berto Sá (exo­ne­rado nesta se­gunda, 19 de fe­ve­reiro) se­guia a linha do an­te­rior, Ma­riano Bel­trame, que tinha algum nível de pres­tígio, se po­demos dizer assim, pelo menos para quem via de fora. Temos au­to­ri­dades que ficam sa­bendo das coisas pela im­prensa. A in­sen­si­bi­li­dade e des­res­peito se di­rigem a todos os mo­ra­dores da ci­dade. 

Foi feita uma en­quete com duas per­guntas, a pri­meira se a pessoa era contra ou a favor da in­ter­venção, a se­gunda sobre se acre­di­tava nos seus re­sul­tados. De um dia pra outro a apro­vação já tinha caído de 80% pra 60%.

Há des­res­peito e in­sen­si­bi­li­dade, sim, mas quem já viveu o con­fronto sabe que al­guns corpos da ci­dade são mais des­res­pei­tados. Por­tanto, o de­bate da sen­si­bi­li­dade não existe porque esses corpos não são vistos como pes­soas pas­sí­veis de res­pei­ta­bi­li­dade. A abor­dagem aqui co­lo­cada é boa, pois também diz res­peito ao pró­prio ofi­ci­a­lato, aos agentes da se­gu­rança pú­blica que também de­ve­riam ter di­reito a outra po­lí­tica pú­blica de se­gu­rança. 

Cor­reio da Ci­da­dania: Que re­sul­tados você con­si­dera mais pro­vá­veis para esta me­dida?

Ma­ri­elle Franco: Eu pre­firo ir pelo oti­mismo: que con­si­gamos manter o pro­cesso de­mo­crá­tico de 2018 em curso e as forças de se­gu­rança en­tendam que não há so­lução sem diá­logo com pro­fis­si­o­nais da área, praças, po­li­ciais civis, mo­ra­dores de áreas ocu­padas, so­ci­e­dade civil or­ga­ni­zada. 

Ao não se so­lu­ci­onar o pro­blema e a in­ter­venção se con­so­lidar como algo que não re­solve, só o diá­logo po­derá re­solver.

In­ter­venção mi­litar é farsa. E não é con­versa de hashtag. É farsa mesmo. Tem a ver com a imagem da cú­pula da se­gu­rança pú­blica, com a sal­vação do PMDB, tem re­lação com a in­dús­tria do ar­ma­men­tismo... Há uma série de fa­tores que me levam a essa con­vicção. Uma ação mi­diá­tica. Não à toa o Temer se reuniu com seu time de mar­que­teiros para ava­liar os im­pactos do anúncio da in­ter­venção, saiu nos jor­nais.

Nós da Maré, em toda sua ex­tensão, desde o Caju, na fun­dação Oswaldo Cruz, até o final, em Ramos, tí­nhamos dois ba­ta­lhões, o 24º BIP (Ba­ta­lhão de In­fan­taria Blin­dada, do Exér­cito), e o Ba­ta­lhão de Po­lícia Mi­litar, se­pa­rados por uma dis­tância de uns 500 me­tros, além do CPOR (Centro de Pre­pa­ração de Ofi­ciais da Re­serva). 

Um deles é bem perto da Ave­nida Brasil, com o qual con­vivo desde que me en­tendo por gente. Já fui em for­ma­tura de amigos que de­pois de cum­prirem ser­viço mi­litar ti­veram ali suas ce­rimô­nias.

Assim, vi de perto como é o Exér­cito ou o ba­ta­lhão ocupar por tanto tempo esse es­paço. Além do mais, a con­vi­vência entre eles é apenas tá­cita e ter­ri­to­rial, sem in­te­ração. Por­tanto, a ocu­pação em si dos es­paços não deve re­solver a questão, como sempre vimos.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como fica po­si­ci­o­nado o go­verno Pezão nesta si­tu­ação com traços iné­ditos, ao menos em termos for­mais po­lí­tico-ju­rí­dicos? 

Ma­ri­elle Franco: Olha, o Fora Pezão só perde para o Fora Temer. Am­pli­ando um pouco a visão, o pro­cesso de de­cretar ca­la­mi­dade não de­veria partir apenas da questão da se­gu­rança, de­veria abarcar vá­rios âm­bitos, como a Uni­ver­si­dade. O Rio está em fran­ga­lhos, sem re­cursos e go­ver­nado por quem não tem le­gi­ti­mi­dade. 

Assim, Pezão dá uma car­tada, pois sabe como mexer as peças do ta­bu­leiro, no sen­tido de se apro­veitar do medo num mo­mento em que as pes­soas se res­guardam cada vez mais, pois da zona norte à zona sul es­tamos sempre na imi­nência de con­fronto e ti­ro­teios, dentro e fora das fa­velas. Es­tamos sempre sob ameaça da perda de bens, como carros e ce­lu­lares, pra não falar da pró­pria vida... Ele apro­veita tudo isso e dá uma ta­cada de mestre, por assim dizer, pois usa o medo das pes­soas, já que uma par­cela da so­ci­e­dade, in­fe­liz­mente, ainda acre­dita em tal tipo de so­lução. 

Pre­ci­samos de res­pon­sa­bi­li­dade com o pro­cesso his­tó­rico, ou seja, ana­lisar as in­ter­ven­ções mi­li­tares e ocu­pa­ções em épocas elei­to­rais, quais as saídas e le­gi­ti­mi­dade de um go­verno que sofre pe­didos de im­pe­a­ch­ment e deve sa­lá­rios a ser­vi­dores. O dé­cimo ter­ceiro de 2017 não foi pago ainda. O or­ça­mento da se­gu­rança de 2017 tem zero reais em in­ves­ti­mentos de qua­li­fi­cação dos pro­fis­si­o­nais da se­gu­rança. E o su­jeito ainda de­cide por uma in­ter­venção. 

Assim, Pezão usa o senso comum pra res­pirar um pouco. Bem de acordo com a his­tória do PMDB, faz um mo­vi­mento de cú­pula, que leva a ci­dade à fa­lência e de­pois joga a culpa no outro, como se Pezão não fosse vice do Ca­bral. Neste mo­vi­mento todo, ele con­segue res­pirar e ga­nhar tempo, avan­çando um pouco no pró­prio ima­gi­nário da po­pu­lação do Rio, in­fe­liz­mente.

Mas es­pero que não só na prá­tica como também com os ele­mentos como a cor­rupção, re­la­ções po­lí­ticas com Mo­reira Franco, Ca­bral, Edu­ardo Cunha, o es­tado do RJ com­pre­enda a jo­gada po­lí­tica e elei­to­reira. Serve para o PMDB res­pirar, mas vul­ne­ra­bi­liza toda a po­pu­lação. 

Cor­reio da Ci­da­dania: No âm­bito po­lí­tico fe­deral, o que pensa da ideia de Mi­chel Temer de criar o Mi­nis­tério da Se­gu­rança Pú­blica, que ab­sor­veria al­gumas prer­ro­ga­tivas do Mi­nis­tério da Jus­tiça, ou no­mear um mi­nistro ex­tra­or­di­nário caso a nova pasta não se efe­tive?

Ma­ri­elle Franco: Segue a mesma linha da res­posta an­te­rior: apro­veitar o de­bate da se­gu­rança pra se salvar e apostar em algum Jung­mann da vida pra can­di­dato, ou ainda se salvar e re­verter sua imagem. Também se deve ao mo­mento de con­ser­va­do­rismo atroz que vi­vemos, que faz Bol­so­naro avançar nas pes­quisas. 

A onda da po­lí­tica de di­reitos hu­manos, li­ber­dades, cons­truídas nos úl­timos anos, fa­lando de ra­cismo, igual­dade de gê­nero, avanço de coisas como o Pro­grama Na­ci­onal de Di­reitos Hu­manos, que sob o go­verno do PT, mesmo com todas as crí­ticas, avan­çaram, agora cede lugar ao con­ser­va­do­rismo que quer negar tudo como so­lução pra crise. 

Não tem mais mi­nis­tério de Di­reitos Hu­manos ou das Mu­lheres, mas querem criar um Mi­nis­tério de Se­gu­rança que tra­ba­lharia apenas pela ló­gica ar­ma­men­tista. Em suma, é só mais uma jo­gada. 

Cor­reio da Ci­da­dania: O que co­menta da en­tre­vista do ge­neral Edu­ardo Villas-Boas, a dizer "temos que agir com a ga­rantia de que não ha­verá outra Co­missão da Ver­dade"?

Ma­ri­elle Franco: Ele só pede li­cença pra vi­olar. O pró­prio in­forme do Exér­cito apre­senta a ideia de que as ins­ti­tui­ções de­mo­crá­ticas, se atu­arem com si­nergia e acom­pa­nha­mento, podem com­pro­meter sua atu­ação. É quase a linha Bel­trame, "pra fazer ome­lete tem de que­brar ovos", "po­demos ter perdas, mas são ne­ces­sá­rias pra manter a ordem". 

Enfim, não po­demos aceitar nem o dis­curso puro da ordem e nem o da li­cença pra tudo. O ge­neral quer o que, li­cença pra tor­turar e de­sa­pa­recer? Pois as Co­mis­sões da Ver­dade tra­ba­lham também a questão do mo­ni­to­ra­mento de dados, da in­for­mação, coisas sobre as quais sempre se quis negar acesso. 

Ele quer se de­so­brigar de prestar contas, quer se des­pre­o­cupar das re­la­ções so­ciais mais am­plas? É muito pre­o­cu­pante. O ge­neral quer li­cença pra vi­olar. 

Cor­reio da Ci­da­dania: Con­si­de­rando a eu­foria econô­mica que o RJ viveu nos úl­timos anos, como lidar com este mo­mento? Como se chegou tão fundo na crise, com des­do­bra­mentos de vi­o­lência tão alar­mantes? 

Ma­ri­elle Franco: Passa pela au­sência e leilão do Es­tado, passa pela com­pac­tu­ação com grupos cri­mi­nosos... Se pe­garmos o de­bate da vi­o­lência, passa pelo trá­fico, pela dis­puta de grupos pelo seu co­mando, passa também pelas mi­lí­cias, já que existe um de­bate moral a res­peito do que faz al­guns agentes da po­lícia en­trarem em fac­ções de mi­li­ci­anos. Há ainda a questão da re­gu­la­men­tação do bico do po­li­cial, o não aper­fei­ço­a­mento dos pro­fis­si­o­nais, o de­bate hi­e­rár­quico entre as po­lí­cias...

E, mesmo sendo re­dun­dante, tem a ne­gação de di­reitos a esta po­pu­lação, claro. Meu exemplo con­creto, também sobre os mo­ra­dores da Maré: em 1997, 98, quando co­me­çaram os cur­si­nhos pré-ves­ti­bular, a pro­porção de alunos uni­ver­si­tá­rios no local era de 1% da po­pu­lação, igual o nú­mero de fun­ci­o­ná­rios do trá­fico. Hoje, temos cerca de 10% da po­pu­lação local na uni­ver­si­dade, mas graças a cur­si­nhos po­pu­lares e co­mu­ni­tá­rios pro­mo­vidos pela so­ci­e­dade civil, não por po­lí­ticas pú­blicas.

Há 10, 15, 20 anos com­pre­en­demos que era im­por­tante a po­pu­lação am­pliar seu re­per­tório, avançar eco­no­mi­ca­mente, am­pliar seu es­pectro cul­tural... É aí que falo do leilão de um Es­tado au­sente nas áreas fa­ve­ladas e pe­ri­fé­ricas. A Maré tem ba­ta­lhão, Re­gião Ad­mi­nis­tra­tiva, De­tran, uma série de ór­gãos. O que jus­ti­fica ca­veirão, como vimos nesta quinta, e toda essa ope­ração onde se in­cide no va­rejo do trá­fico de drogas se o Es­tado está ali pre­sente? Aliás, pre­sente de que modo? 

Essa crise passa pelo não in­ves­ti­mento e aper­fei­ço­a­mento da se­gu­rança pú­blica e seus pro­fis­si­o­nais, pela ne­gação do di­reito a uma po­lícia ci­dadã ou o que vi­esse a ser isso. A Maré não teve UPP, por exemplo. Porém, olhamos a Ro­cinha e vemos a des­mo­ra­li­zação através do caso Ama­rildo. Ou para o Caju, onde parte da qua­drilha que le­vava arma para o trá­fico era da pró­pria UPP local.

Enfim, tem a au­sência e leilão do Es­tado, e também sua de­sor­ga­ni­zação in­terna como ele­mentos que levam ao acir­ra­mento da crise. 

Fora isso, existem ou­tros de­bates, da mo­der­ni­dade, do ter, do per­tencer, de qual corpo passa pela fa­vela e é o ele­mento sus­peito, ou quando e por que não é ele­mento sus­peito. Se você está no Ca­tete ou no Largo do Ma­chado, numa re­gião cen­tral ou sul da ci­dade, com uma par­cela da so­ci­e­dade a dispor de um nú­mero maior de vi­a­turas, ha­verá uma de­ter­mi­nada sen­sação de se­gu­rança. As mesmas vi­a­turas em certas áreas passam a sen­sação oposta, de in­se­gu­rança. 

A au­sência do di­reito à ci­dade para tantos se­tores da po­pu­lação também faz parte do pro­cesso de acir­ra­mento da crise so­cial que nos levou ao ponto em que che­gamos.

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey