"É hora de debater sobre o modelo de produção dos alimentos", defende pesquisadora

É hora de debater sobre o modelo de produção dos alimentos", defende pesquisadora

Para Maureen Santos, momento deve suscitar debates sobre toda a cadeia de produção de carne e de outros alimentos

Mariana Pitasse,  Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ)

Maureen Santos coordenou "Atlas da carne - fatos e números sobre os animais que comemos", da Fundação Heinrich Böll / Divulgação

Desde a última semana não se fala de outra coisa que não seja a operação Carne Fraca da Polícia Federal. A investigação encontrou irregularidades sanitárias em frigoríficos de Goiás, Paraná e Santa Catarina. Entre elas, carne estragada, aditivos acima do liberado e substâncias cancerígenas. Depois que veio a público, países como a China, Japão, Suíça e Chile impuseram embargos à carne brasileira. Para contribuir no debate sobre o assunto, o Brasil de Fato conversou com Maureen Santos, coordenadora de justiça socioambiental da Fundação Heinrich Böll no Brasil. Maureen organizou o Atlas da carne - fatos e números sobre os animais que comemos, uma publicação elaborada por pesquisadores do Brasil, Chile, México e da Alemanha, que mapeia a produção industrial de carne no mundo e como ela atinge recursos hídricos e solos, influencia as mudanças climáticas e aumenta a desigualdade. Na entrevista, Maureen fala sobre os impactos sócio ambientais da produção da carne e a necessidade de repensar a maneira como nos alimentamos.

Brasil de Fato: A que atribui toda a repercussão em torno da operação Carne Fraca na última semana?

Maureen Santos: A operação está trazendo bastante polêmica por conta das denúncias, que algumas pessoas acreditam ter um motivador político forte por trás, mas principalmente porque é um assunto que toca muito individualmente para quem come carne e também para quem não come. A partir da repercussão, vários temas ficam em evidência. Do ponto de vista do que a gente vem trabalhando, o principal deles é o modelo de produção e desenvolvimento que precisa ser revisto.

Quanto de carne é consumida hoje no Brasil?

No Brasil, se consome de 75 a 90 quilos de carne por pessoa em um ano. É uma média alta, que ultrapassa a média mundial dos países emergentes, que é de 30 quilos por pessoa em um ano. Nos últimos anos houve um aumento considerável do consumo porque a produtividade aumentou e o preço baixou.

Uma das críticas que circulou pelas redes sociais falava que enquanto a classe média discutia sobre a carne intoxicada, entre as camadas mais pobres, o clima era de comemoração porque o preço da carne havia baixado nos mercados. Você acredita que essa repercussão vai impactar, de fato, o consumo da carne no país?

Como você disse, muita gente não está tão preocupada assim com o que consome e esse é um ponto que acaba esbarrando em questões sociais, de renda e estilo de vida. Mas de imediato tem um impacto sim no consumo e a mídia tem um papel muito importante nesse processo. O noticiário só fala sobre intoxicação da carne. No entanto, a médio e longo prazo o consumo voltará a ser o que era. Agora estamos em período de alerta e aguardando a explicação das empresas, mas daqui a pouco a propaganda vai voltar com tudo e as pessoas vão retornar para sua dieta de costume. Por isso, estamos em um momento importante de reflexão. Temos que aproveitar que esse assunto está sendo muito comentado para debater o que a gente come e o modelo em que a gente está inserido. Não é só uma questão de carne estragada. Faz parte do sistema em que a carne é produzida com bastante uso de fármacos e hormônios e que percorre distâncias imensas para chegar ao nosso prato. É um modelo de produção insustentável para o planeta. Todas essas questões estão sendo invisibilizadas pela mídia para tratar apenas da carne estragada.

Além de só falar na carne estragada, o noticiário tratou como uma questão generalizada. Isso está prejudicando as vendas, alguns países já barraram a importação da carne brasileira. Qual sua avaliação sobre essa questão? A detecção de um problema em alguns frigoríficos expressaria uma tendência da produção nacional?

Vimos um número importante de frigoríficos envolvidos e grande parte deles são bem famosos, mas não acredito que seja algo disseminado na cadeia. Para exportar a carne há procedimentos extremamente rigorosos, então, não pode ser generalizado. Isso não só para a carne, mas se vermos as frutas, os legumes e os outros produtos que são exportados, têm outro padrão, de melhor qualidade do que os que permanecem no mercado nacional. Temos que lembrar que a gente vive em um sistema capitalista que tem como base a competição. Outros países estão enxergando essa falha da produção brasileira como uma oportunidade de desenvolverem seus comércios. No cenário internacional é a carne do Brasil recuando e outros mercados tentando ocupar seu espaço, isso faz parte da guerra comercial. Então, não fico surpresa que países estrangeiros estejam barrando a carne brasileira por uma questão de disputa.

Caso se comprovem as acusações de venda de produtos contaminados ou corrupção de agentes públicos e privados, quais devem ser e contra quem devem incidir as sanções legais?

Deve haver uma investigação muito profunda do que está acontecendo para punir quem for necessário. Mas a questão que mais importa nesse contexto é que as pessoas comecem a se preocupar com o que estão comendo. O tema da investigação não trata os problemas da cadeia. O debate político é importante, mas está invisibilizando o cerne da questão que não é só corrupção, mas o sistema de produção de carne que está todo errado. Esse é o assunto mais urgente, no entanto, o foco do debate está sendo desviado.

Quais as questões mais gritantes da produção da carne no Brasil?

Hoje, a produção de carne se utiliza água de forma absurda, contribui para desmatamento dos biomas, concentra renda, entre tantas outras questões. São 200 milhões de hectares destinados à produção, correspondente a nove vezes o tamanho do estado de São Paulo. Além disso, a população brasileira é de 207 milhões de pessoas, enquanto as cabeças de gado superam 210 milhões. A carne estragada vai ser corrigida por eles em pouco tempo, mas ainda sim temos que exigir um novo padrão de desenvolvimento para o nosso país, em que a produção da carne dentro dos moldes de hoje não caiba.

O Atlas da Carne aponta que a criação animal em escala industrial traz consequências como a fome. Por quê?

A produção em cadeia não é feita para atender quem está com necessidade de alimentação e sim a uma camada pequena da população. Aqui no Brasil, o consumo é mais disseminado, mas em outros países em desenvolvimento e de pobreza extrema, a nutrição que a carne traz também não é acessada. A narrativa de que é preciso aumentar a produtividade é mentirosa, porque a carne só atende às disputa do mercado. O objetivo não é o combate à fome e à pobreza, se não, o foco seria a produção camponesa. Ainda que a produção familiar e camponesa tenha aumentado nos últimos anos, com crédito e assistência técnica, definitivamente não foi prioridade.

Qual o caminho que o consumidor deve seguir a partir desse polêmica em torno da carne?

Deve servir como momento de reflexão, não só em relação a carne mas a tudo que a gente come. Voltar as atenções para a produção local é um movimento muito importante. É preciso valorizar o espaço de feiras locais, produções locais, formas de cooperação entre o consumidor e o produtor. Assim as duas demandas serão atendidas: comida de qualidade para o consumidor e renda para o produtor. É preciso pensar na agroecologia como uma alternativa. Temos que buscar novas formas. É fundamental pensarmos diferente e exigirmos a qualidade dos nossos alimentos. Temos que debater o modelo de produção dos alimentos.

Edição: Vivian Virissimo

 

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