Em discurso no sábado à noite, em jantar na Fundação Caucus Negro do Congresso [ing. Congressional Black Caucus Foundation], o presidente Barack Obama 'avisou', no tom imperial-ameaçador que se tornou nele uma segunda natureza: "Tomarei como insulto pessoa, insulto ao meu legado, se essa comunidade [afro-norte-americana] baixar a guarda e não se autoestimular para se manifestar nessa eleição." Esperou os aplausos e depois Obama acrescentou: "Querem me dar uma boa despedida? Vão e votem."
Por mais que seja ótimo chamar as pessoas para que votem, há algo muito esquisito no modo como o presidente formulou a coisa: disse que a decisão de as pessoas votarem em Hillary Clinton estaria condicionada à necessidade de proteger o legado de Obama. E, no contexto do jantar de afro-norte-americanos, Obama disse a eles que a negritude de todos, inclusive do próprio Obama, tornaria necessário eleger Clinton.
Semelhante recurso a uma política identitária também me incomodou quando Hillary Clinton insistiu em jogar a carta do gênero (feminino). Teria ficado igualmente ofendido se, quanto alcancei a maioridade eleitoral, meus parentes irlandês-norte-americanos me dissessem que fosse e votasse num católico irlandês de nome John F. Kennedy por causa de nossos ancestrais ou religião partilhada. Pareceria desonesto - até infantilismo - se alguém me dissesse que ficaria 'pessoalmente ofendido', se eu não votasse em Kennedy.
O Dr. Martin Luther King, Jr., disse: "Espero pelo dia em que as pessoas não sejam mais julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo do caráter." Mas muitos de nos conhecem aquele artigo básico da igualdade social - ou deveríamos conhecer. Nem raça nem gênero devem ser O critério decisivo para votar em 2016 ou em qualquer ano. Nem os machos brancos devem votar em Donald Trump por ser um deles.
Fato é que, considerada a raça, Obama aproximou-se perigosamente do comentário que fez em fevereiro a ex-secretária de Estado Madeleine Albright. Desafiando mulheres jovens que mostravam preferência por Bernie Sanders, Albright disse: "Vocês têm de ajudar. Hillary Clinton sempre as defenderá. E lembrem: há lugar reservado no inferno para mulher que não ajude mulher."
Au contraire: fosse eu, diria que há lugar reservado no inferno para diplomata norte-americano - homem ou mulher e, no caso, a própria Albright - que entenda que as sanções contra o Iraque, que a ONU calcula que tenham provocado a morte de meio milhão de crianças iraquianas com menos de cinco anos, teriam "valido a pena".
Clinton - que teve comportamento violento autoritário na Líbia, no Iraque e no Afeganistão e mostra o mesmo descaso pelo custo humano de suas ações (por mais que jamais pare de repetir que se preocupa muito com civis inocentes) - parece partilhar a opinião de Albright sobre se servir do poder geopolítico, ainda que assim se assassinem 500 mil crianças. Até os bispos católicos, geralmente tão contidos, declararam "inadmissível" a declaração de Albright.
O caráter de Obama
Quanto ao presidente e a atitude imperial autoritária, meus amigos e eu temos debatido se Obama sempre foi completa fraude ou se sucumbiu ao adágio de Lord Acton: "O poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente".
Ou seria um outsider talentoso que -por causa da cor da pele e da origem humilde - desesperadamente ansiava por ser aceito pelo Establishment e temia que, mesmo na presidência, sempre seria julgado com arrogância por gente importante com credenciais e pedigree de sangue azul? No início de seu governo, às vezes me perguntava se Obama estaria fisicamente intimidado, sem coragem para pisar diretamente demais no Establishment, por medo de acabar como Kennedy e King.
Sempre se pode argumentar que Obama, na presidência, teve comportamentos que atendem a todos esses critérios e possibilidades. Não dá sinais de algum dia ter realmente acreditado em tudo que disse no início do governo, como o valor da transparência para bons governos e a importância dos sentinelas 'tocadores de apito' que alertam os cidadãos contra perigo iminente de serem enganados. Rapidamente Obama converteu-se no mais cheio de segredos e sigilos dentre todos os presidentes dos EUA e partir à caça daqueles abençoadas sentinelas, como Snowden e Manning e Assange, com fúria de demônio vingador.
A violência da caçada que moveu àqueles sentinelas divulgadores de verdades também pode ser vista como caso de poderes presidenciais que lhe subiram à cabeça. Ou talvez estivesse tentando provar aoEstablishment que ele, filho de um estudante queniano e de uma mãe branca, nascido no Hawaii, saberia proteger os segredos ainda mais agressivamente que qualquer cão de guarda branco do Establishment, feito George W. Bush.
Vez ou outra Obama reclamou de sentir-se preso na armadilha das expectativas do Establishment de Washington. Em entrevista em 2016 aoThe Atlantic disse que desafiara o "manual" de Washington, que prescrevia responder a crises internacionais com força militar, quando resistir às demandas para que atacasse militarmente a Síria em 2013.
Que o presidente ainda se agarrasse àquela única decisão, como seu "dia da libertação" - depois de quase três anos - diz muito sobre o fracasso do esforço para sempre fazer frente às pressões vindas do Establishment de Washington. Até nas ocasiões em que mostrou alguma firmeza, como quando pressionou a favor do acordo nuclear com o Irã em 2014, sempre, na sequência, fez concessões gigantes a Israel e Arábia Saudita, dois governos do Oriente Médio que têm muito poder sobre Washington.
Talvez até algum medo físico andasse junto ao medo pessoal de ser rejeitado. Afinal, como negro norte-americano que alcançou extraordinária altitude política, com certeza sabia da violência de que o país é capaz contra outros negros que se atreveram a intrusões muito mais modestas, no âmago da estrutura do poder branco.
Assim, o que o moveu para expandir a guerra no Afeganistão (em 2009) acompanhando o desejo de seus "subordinados" mais linha-dura dentro da hierarquia oficial de Washington, como o secretário da Defesa Robert Gates, o general David Petraeus e a secretária de Estado Hillary Clinton?
O desastre líbio
Obama cedeu ao que lhe diziam outros, novamente em 2011 quando Hillary Clinton e outros linhas-duras exigiram outra "mudança de regime", dessa vez na Líbia. Obama deixou que Clinton se impusesse sobre conselheiros mais sensíveis e ordenou uma invasão (sob a fachada de "missão humanitária") que dizimou o exército líbio; permitiu que extremistas capturassem, torturassem e assassinassem Gaddafi; e deixou lá um país em escombros, garantindo ao Estado Islâmico um pé de apoio no norte da África.
Ironicamente, depois de exagerar e mentir muito sobre a crise "humanitária" que afligiria a Líbia em 2011, o governo Obama afinal deixou que o país afundasse numa real catástrofe humanitária, com o Estado Islâmico a decepar cabeças de Cristãos Cooptas e multidões em desespero tentando salvar a vida em barcos frágeis pelo Mediterrâneo, processo que condenou à morte número impossível de determinar de seres humanos.
Segundo a regra "da loja de porcelana" do ex-secretário de Estado Colin Powell, se você quebra, você é dono. Assim, dado que a secretária Clinton foi muito significativamente responsável por ter quebrado a Líbia, ela seria a dona da catástrofe. Mas ela não só se recusa a ser proprietária: ela se recusa até a ver a catástrofe.
Em abril passado, Obama disse a Chris Wallace, âncora do canal Fox, que seu pior erro teria sido "provavelmente, não ter plano pronto para o dia seguinte... na intervenção na Líbia". Mas o verdadeiro "erro" foi ter invadido a Líbia sob falsos pretextos, como uma nova investigação conduzida pelo parlamento britânico acaba de confirmar. É mentira de proporções gigantescas, comparável às mentiras de Bush sobre o Iraque.
No mesmo prato da balança para aferir algum medo que o Establishmentinspirasse a Obama deve-se pôr a aceitação das ações clandestinas daCIA. Obama parece ter feito tudo que pôde para não se interpor no caminho daquele pessoal que - há gerações - são os principais fazedores e derrubadores de reis pelo mundo.
Graças a Spencer Ackerman do Guardian, hoje já sabemos como Obama acionou todos os freios à mão para impedir a publicação de uma investigação exaustiva da Comissão de Inteligência do Senado, baseada em telegramas da CIA que são a mais completa versão assinada da banalização do mal de que se tem notícia, na qual se descrevem as mais sórdidas e as mais grotescas formas de tortura em que o torturador era aCIA comandada pelo presidente George W. Bush.
Minimizando aqueles crimes, pelos quais ninguém jamais foi julgado, Obama escolheu "olhar à frente, não para trás" e admitiu, como se falasse de compras no supermercado, que "torturamos alguns caras". Isso, vindo de um político que nos fizera crer que seria realmente, realmente contra tortura.
Mas com cobertura frouxa e mais para desorientar na mídia, sobre como a tortura "funciona" - e sem ninguém ter sido sequer processado pelos crimes - a reação popular foi confusa, com muitos norte-americanos que hoje aplaudem as promessas de Donald Trump de que retomará as simulações de afogamento e, mesmo, outros tipos mais extremos de tortura.
Tampouco depõe a favor do "conteúdo de seu caráter" que Obama tenha-se posto a reverenciar os responsáveis por torturas e descartou qualquer bem merecida punição. Felizmente, Obama encontrou adversário à altura na pessoa da senadora Dianne Feinstein, Democrata da Califórnia, que publicou um sumário executivo cuidadosamente redigido, mas nem por isso menos repugnante, do relatório do Senado, em dezembro de 2014, pouco antes de o Senado passar a ter maioria Republicana.
Hamlet na Síria
Mesmo agora, com seu governo chegando ao fim, Obama parece continuar paralisado de medo de se atravessar no caminho de quaisquer poderosos, sobretudo porque pode ser pintado como "mole" contra algum dos "inimigos" dos EUA, como Síria ou Rússia.
Obama deixou que eclodisse uma guerra de bastidores entre o secretário de Estado John Kerry e o secretário de Defesa Ashton Carter sobre o que fazer na Síria. Kerry foi pressionado com sucesso, com ajuda da Rússia, a pôr fim à carnificina; mas Carter e os militares jamais colaborariam com a Rússia - e pouco lhes importa o que a Casa Branca prefira.
Assim, com Obama tatibitate - e a guerra aérea que os EUA fazem contra os sírios a massacrar dezenas de soldados do Exército Árabe Sírio no sábado passado - colapsaram todas as esperanças, até de um cessar-fogo limitado. Ainda que Obama arranjasse coragem para ordenar que sua inepta conselheira de segurança nacional Susan Rice fosse lá e mandasse o secretário Carter e o Pentágono sossegarem o facho, nem isso, agora, produziria qualquer efeito positivo.
Um dos maiores medos de Obama parece ser que os líderes israelenses o denunciem ou desencadeiem contra ele outra tempestade político-midiática. Obama já foi alvo da animosidade do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, como quando Netanyahu deu sinais de apoiar o candidato Republicano à presidência, Mitt Romney, na campanha eleitoral de 2012.
Depois da vitória de Obama, que foi reeleito, seria de supor que o presidente - pressuposto então no auge do poder político - teria dado as costas a Netanyahu. Não. Em vez disso, Obama correu para Israel, visita de três dias, agindo como miserável que suplica perdão, não como o presidente da mais poderosa nação da terra.
Já sabendo que Obama não significaria qualquer tipo de ameaça, Netanyahu atreveu-se a se opor aos movimentos do presidente dos EUA na negociação do acordo nuclear com o Irã. Chegou até a discursar numa sessão conjunta do Congresso, para convocar os representantes do povo dos EUA a se posicionarem a favor dele e contra o presidente dos EUA.
A resposta de Obama foi dar a Israel um pacote de $38 bilhões em armas, o maior da história. Não importa que afronta sofra, Obama nunca deixou de olhar com medo para Israel e seu poderoso lobby nos EUA. Na verdade, pode-se até argumentar que a política ineficaz de Obama para a Síria muito ajudou Netanyahu e seus interesses, ao destruir e desestabilizar mais uma nação árabe próxima às fronteiras de Israel.
Embora Obama tenha resistido contra a pressão de Clinton e outros belicistas para iniciar operação militar mais agressiva contra a Síria, ele, em segredo, concordou com armar e treinar terroristas antigoverno e rebeldes que na sequência se uniram à sucursal local da Al Qaeda. Porém, quando o grupo afiliado da Al Qaeda, os terroristas do "Estado Islâmico", puseram-se a decapitar reféns ocidentais em 2014, Obama autorizou bombardeios aéreos e Forças Especiais dentro da Síria contra o "Estado Islâmico".
O motivo dos israelenses
Por mais que os líderes israelenses e seus amigos em Washington insistissem freneticamente em que o governo sírio teria de ser derrubado, as vacilações de Obama garantiram que fosse atendido o principal objetivo de Israel, de enfraquecer um vizinho às vezes hostil e aliado do Irã e do Hezbollah libanês. E isso, por sua vez, garantiu mais tempo para que Netanyahu expandisse a instalação de colônias ilegais para israelenses, em terras palestinas.
Em momentos de sinceridade, alguns altos funcionários israelenses já admitiram que o resultado preferível para eles, na Síria, seria "resultado nenhum", como noticiou há três anos a então diretora de redação do New York Times em Jerusalém, Jodi Rudoren.
"Em conversas mais reservadas, os israelenses cada vez mais frequentemente dizem que o melhor resultado para os dois anos e meio de guerra civil na Síria, pelo menos por hora, é resultado nenhum. (...) É situação de vida ou morte [entre sunitas e xiitas, conforme a versão 'ocidental' do conflito (NTs)], na qual você precisa que os dois lados percam, ou, pelo menos, que nenhum dos dois lados vença -, e daremos por empatada" - disse Alon Pinkas, ex-cônsul geral de Israel em New York. "Que os dois lados sangrem até morrer, eis o melhor pensamento estratégico nesse caso. Enquanto essa situação se mantiver, a Síria não será ameaça real."
Outro alto funcionário de Israel, então embaixador nos EUA, Michael Oren, manifestou preferência ligeiramente diferente; para ele, o governo Assad, com a aliança com Irã e o Hezbollah libanês, seria derrubado em todos os casos, ainda que a Al-Qaeda passasse a governar a Síria.
"O maior perigo que ameaça Israel vem do arco estratégico que se estende de Teerã a Damasco e a Beirute. E vimos o regime Assad como pedra basilar desse arco," disse Oren ao Jerusalem Post. "Sempre quisemos que Bashar Assad deixasse o governo, sempre preferimos bandidos que não fossem apoiados pelo Irã, aos bandidos apoiados pelo Irã."
Mas essa franqueza dos israelenses não repercutiu na mídia-empresa nos EUA, e o investimento de Israel para generalizar o caos na Síria foi rapidamente esquecido.
Hoje, alguns partidários dos Democratas dizem que compreensão clara da desgraça da Síria e da Líbia - e discussões sobre a desgraça do Iraque - poderiam acabar com as chances de eleição de Hillary Clinton e, por isso, contribuiria para eleger Donald Trump.
Mas e se Clinton for eleita sem ter sido pressionada a falar com honestidade sobre o papel dela naquelas catástrofes e sem ter dito e comprovado que aprendeu a lição? Para ser eleita e, na presidência dos EUA, aprofundar ou repetir esses erros?
Durante a campanha, Clinton continuou a defender sua posição favorável à invasão da Líbia, usando o que a investigação britânica já demonstrou que não passava de exagero dos riscos que Gaddafi representaria para os civis. Clinton só faz repetir que Gaddafi era "genocida", quando já se sabe que absolutamente não é verdade. E continua a clamar por ação militar norte-americana mais agressiva na Síria, embora mascarada em expressões como "criar zonas seguras". E jurou levar a relação EUA-Israel a um "patamar acima".
Na verdade, não há qualquer sinal de que Clinton tenha modificado seu modo de abordar o Oriente Médio de qualquer modo significativo desde 2002, quando votou a favor de os EUA invadirem o Iraque. Hoje, ela diz que aquela decisão foi "errada", mas há muitas dúvidas sobre se essa não seria uma espécie de "últimas palavras" de quem estava à beira da morte política, porque não havia alternativa, fora confessar o erro, se ela quisesse chegar à indicação dos Democratas à presidência em 2008.
Como secretária de Estado no primeiro governo de Obama, Clinton deslizou novamente para o grupo dos Democratas linha-dura, unindo-se aos conservadores para defender uma "avançada" no Afeganistão, liderando o ataque a favor de outra "mudança de regime" na Líbia, pressionando Obama para ordenar mais uma intervenção para "mudança de regime" na Síria e adotando posição agressiva contra a Rússia.
Tudo isso considerado, parece razoável ignorar as opiniões de Clinton em questões de guerra e paz, especialmente se, como presidenta, não haverá ninguém acima dela para detê-la e impedir de iniciar mais outra guerra? Será que os norte-americanos deveriam calar, porque haveria o risco de Donald Trump, apalhaçado, ser eleito? Será que o perigo de alguém "insultar" o legado de Obama seria justificativa suficiente para calar sobre essas questões de vida ou morte para tantos homens, mulheres e crianças em todo o mundo?
Para mim, nada, se não a verdade, nos libertará. Isso significa que os norte-americanos temos de avaliar o "conteúdo do caráter" não só de Obama mas também de sua sucessora coroada, Hillary Clinton.
Como o Dr. King reconheceu, é expor ao ar as feridas purulentas. Ou, como escreveu em sua Carta da Prisão de Birmingham City (1963):
"Como furúnculo que jamais terá cura se não for lancetado, que tem de ser exposto, deixar à vista toda a feiura purulenta de que é feito, para que remédios naturais como sol e ar possam agir, assim também a injustiça tem de ser exposta, com toda a tensão que a exposição crie, à luz da consciência humana e ao ar da opinião pública, para que ser curada."*****
19/9/2016, Ray McGovern, Consortium News
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