Todos os golpes são o mesmo golpe... Reflexões sobre a tentativa de golpe na Turquia
Ainda há muita coisa sinistra e sombria sobre o golpe na Turquia - a mais sinistra e sombria é o conhecimento prévio e o envolvimento dos EUA, mas acho que algumas conclusões já podem ser extraídas e propostas.
1. Houve, sim, real tentativa de golpe, construída em casa, para derrubar Erdoğan. Provavelmente reuniu elementos Gülenistas e Kemalistas. Apesar de esses dois parecerem aliados improváveis, alianças pró-golpes - especialmente as que planejam assassinar o líder - são infladas mais pelos fatores aos quais se opõem, do que pelos fatores que elas promovem e apoiam. Raramente os conspiradores vão além do suspense de The Deed: Brutus e Cassius contavam com que, morto Cesar, a "república" ressurgiria; os assassinos de Sadat imaginavam que, sem o "Faraó", tudo estaria resolvido. Mas só conseguiram outro Cesar e outro Faraó. Por tudo isso, uma composição temporária de Gülenistas e Kemalistas para derrubar o "Sultão" não é impossível.
2. Esse golpe exigiu algum tempo para ser preparado, e a segurança turca recebeu lufadas dele ("recebeu informação", que é a frase mais usada) a tempo de alertar Erdoğan para cair fora antes que chegassem os assassinos. A história de que a inteligência russa reuniu as pistas e alertou Erdoğan é muito crível. A inteligência de sinais dos russos sempre foi muito boa, e Moscou já monitorava as comunicações na Turquia por causa do jato de combate russo que os turcos derrubaram. Muito plausível - especialmente se, como Ankara diz, a derrubada do jato teria sido orquestrada pelos mesmos conspiradores de agora - que a inteligência russa tenha, sim, descoberto tudo. Se descobriu, com certeza conjecturou imediatamente - e o mesmo deve estar sendo conjecturado no local que muito provavelmente teremos de novamente nos habituar a chamar de Porta Sublime - se teria acontecido de a inteligência dos EUA ter recebido as mesmas lufadas... mas nada fez para alertar Erdoğan.
3. Apesar da especulação inicial, esse golpe foi muito mais sério e chegou muito mais perto de ser bem-sucedido do que se pensou no momento. Se Erdoğan tivesse sido morto e o povo não tomasse as ruas, hoje estaríamos contemplando realidade muito diferente. (É mais que hora de abandonar a especulação segundo a qual Erdoğan teria, ele mesmo, orquestrado a coisa.)
4. Washington e o golpe. Já disse que essa questão é sombria e sinistra e me parece que assim continuará. E a razão disso é simplesmente que não se sabe "qual Washington"? A CIA? Uma facção dentro da CIA? A gangue neoconservadora que infesta o Departamento de Estado? Os bombardeadores humanitários que compõem a comitiva de Obama? Alguma facção das forças armadas dos EUA? Alguém do pessoal dos EUA na base aérea İncirlik? O embaixador dos EUA? Esses/alguns desses/outro/outros funcionários dos EUA teriam encorajado os conspiradores golpistas ou dito/feito alguma frase/comentário (desmentível) que teria soado como se fosse encorajamento? A inteligência dos EUA ouviu falar e não passou adiante a mensagem? Ou passaram para o nível político, o qual não passou adiante (a mensagem)? Suspeito fortemente que nem o presidente Obama nem o secretário de Estado Kerry tampouco poderiam responder essa pergunta: parece não haver ninguém às rédeas do poder hoje nos EUA. Assim sendo, a extensão do envolvimento dos EUA num ou noutro nível, ou alguma atividade de encorajamento, se houve, não se saberá ainda por provavelmente décadas. Mas continuem lendo.
5. Seja qual for a realidade, Erdoğan e o pessoal dele estão culpando Washington. Não há dúvidas. Já houve declarações diretas e indiretas em quantidade suficiente para que não caibam dúvidas. A exigência - e é, sim, exigência - para que os EUA entreguem Gülen está sendo feita como teste. Acho que Washington 'não passará' no teste, se não por outra razão, porque o processo decisório está fraturado demais. Procurar-se-ão provas do envolvimento dos EUA e serão encontradas ou inventadas. O apoio que Washington dá às Unidades de Proteção do Povo Curdo só reforça a hostilidade de Ankara.
6. Erdoğan usou o golpe como uma oportunidade para acelerar e ampliar o expurgo que já estava fazendo. Tantos dos conspiradores e potenciais simpatizantes deles já foram neutralizados, que Erdoğan já se tornou à prova de golpes por décadas à frente. Está plenamente no comando e já demonstrou que tem substancial poder nas ruas. E agora já pode pôr a culpa de qualquer decisão passada estúpida (como o ataque que derrubou o jato russo), nos conspiradores. Assim sendo, está livre para re-narrar o passado, já provou que tem poder e pode agora fazer o que quiser.
7. Atatürk fez uma espécie de 'promessa' à população: adotem modos e hábitos europeus e, com o tempo, a Europa acabará por aceitá-los como "europeus". Passei anos cogitando sobre o que aconteceria quando Ankara finalmente compreendesse que nunca aconteceria, fizessem os turcos o que fizessem. Agora, vamos descobrir. A Turquia Kamalista é passado. Meu palpite é que será substituído por algo que se pode chamar de "neo-otomanismo" - autoritário, mas com certo grau de apoio popular; predominantemente islâmico, mas com certo grau de tolerância, olhando mais para o sul e o oriente. Mas a estrutura futura levará tempo para se constituir e, no frigir dos ovos, pode acontecer de cobrir território menor e pode ficar bastante violenta.
8. As Forças Armadas Turcas foram severamente atingidas, e com a ênfase em segurança interna agora predominante, para nem falar dos vastos expurgos no alto comando, o tempo de aventuras militares na Síria acabou. A guerra contra os curdos também terá de amainar.
9. Creio que Erdoğan e seu pessoal começaram recentemente uma análise de custo-benefício e pouco antes do golpe vimos os primeiros movimentos das aberturas na direção de Israel e Rússia. Primeiro, a coluna dos custos. A Turquia jamais será admitida à União Europeia (não que seja admissão assim tão atraente nos dias que correm); seguir o que Washington mandava no Oriente Médio só trouxe derrota e desastre; certa ou errada, Ankara crê que Washington a traiu. A orientação ocidental está praticamente toda na coluna "custos". Na coluna "benefícios", Ankara aprendeu o quanto pode custar ser inimiga da Rússia (e, se é verdade que Moscou informou Erdoğan sobre o golpe e o salvou, também o quanto pode render a amizade da Rússia). E há também os benefícios futuros: tangíveis, na forma de entreposto de passagem para o gás russo rumo ao sul da Europa, e os potencialmente enormes lucros a auferir da estratégia chinesa de "Um Cinturão, Uma Estrada". Vê-se que um rápido cálculo de custo/benefício já mostra que a virada eurasiana tem muitos benefícios para a Turquia, ao mesmo tempo em que o status quoexauriu-se.
10. Cálculo mais brutal teria levado Erdoğan & Co. a considerar a correlação de forças. Quem está vencendo? Em que lado pôr as fichas? Em 2000 os EUA eram, de longe, o país mais poderoso da Terra; mais poderoso por todos os modos mensuráveis. Mas de lá até hoje os EUA estiveram em guerra e foram derrotados em todas as guerras que inventaram ou nas quais se meteram; despacharam para longe do próprio território o poder manufatureiro que fora a base fundacional do poder que tinha no século passado; as atividades dos EUA no campo das relações exteriores são trapalhadas incoerentes. E quanto ao outro bastião que leva a bandeira do 'ocidente', ninguém em sã consciência preverá futuro brilhante para a União Europeia. O poder do 'ocidente' vai-se fanando, e o que resta dele é gerido sem qualquer talento ou competência.
Mas desde 2000, por outro lado - embora os consumidores de absurdos 'noticiados' pela mídia 'ocidental' não tenham ideia disso - sob governo de alta competência e capacidade, a Rússia só fez crescer em riqueza e poder. Vale o mesmo para a China - crescimento econômico continuado e aumento na capacidade militar, combinados com liderança lúcida e inteligente.
Se você governasse a Turquia, a quem você atrelaria o próprio destino? Especialmente quando seus 'aliados' 'ocidentais' tem-no traído tão consistentemente, tão frequentemente (e é possível até que tenham tentado assassinar você, há bem pouco tempo?)
11. Moscou aceitará o movimento dos turcos, mas exigirá mudança de comportamento. Fim do apoio ao Daech pela porta dos fundos, mediante contrabando de petróleo; fim dos paraísos seguros para combatentes do Daech; nada de interferência na Síria. Mas os russos darão prosseguimento à sua abordagem paciente e admitirão de Ancara certa dose de dissimulação. Moscou fingirá que acredita (e talvez realmente acredite, não faz diferença) que o jato Su foi derrubado por conspiradores reaparecidos no golpe de 2016, e em outras declarações que Ancara fará, para criar saída-honrosa, enquanto Erdoğan reescreve o passado.
12. A Turquia sairá da OTAN. Ainda não se vê claramente o cronograma e a ótica. Imagino que será saída gradual, que não chegará a ser saída formal. Mas, se a virada eurasiana já está em curso, a OTAN é passado. Já não traz qualquer vantagem a Ankara e pode-se até falar de grave prejuízo, com o aparente uso da base İncirlik como locação para alguns dos conspiradores golpistas. Washington começa a perceber que İncirlik está-se convertendo, de fato, de fator vantajoso em fator de risco, e será interessante observar o que os EUA farão: com certeza é hora de tirar de lá as armas nucleares. (Ver, em New Yorker, "How secure are the American hydrogen bombs stored at a Turkish airbase?".)
13. As coisas podem ficar muito violentas. Ainda é cedo para ter certeza. A convocação que Erdoğan fez, para que os cidadãos tomassem as ruas e contivessem o golpe, foi valentemente respondida, o que talvez seja suficiente. O expurgo é vastíssimo e pode eliminar toda a quinta coluna (assim como muitos inocentes). Tudo depende da força de coesão interna que unifica o país, e não se pode saber se será suficiente - a distância entre estabilidade e o caos mais sangrento em qualquer sociedade é muito menor do que as pessoas gostam de supor que seja. E os norte-americanos mudadores de regime, que já trouxeram aos vizinhos da Turquia tanta destruição em tão pouco tempo, tem novo alvo, embora com acesso limitado e alavancas com as quais operar muito mais restritas.
14. (Daqui em diante, o que escrevo é descarada especulação. O Império Otomano foi empreitada extremamente multiétnica e multiconfessional. Mediante o sistema de millet [tur."Comunidade religiosa" ou "povo"], os sultões admitiram e administraram essas diferenças. Atatürk tentou criar um país de estilo europeu habitado por uma 'etnia' que ele próprio inventou chamada "turcos". Descendentes do povo de Göbekli Tepe, troianos, bithynianos e miletianos, caucasianos, gregos e armênios sobreviventes, seljuques e curdos passaram a ser oficialmente "turcos", assim como bretões, burgundianos e falantes do ocitano eram oficialmente "franceses". Essa ficção foi bem-sucedida em grau considerável (como também França, Espanha, Itália, Espanha, Alemanha e outras ficções também foram bem-sucedidas). Mas os curdos nunca aceitaram ser chamados de "turcos" ou "turcos das montanhas". Numa Turquia neo-otomana, contudo, poderão voltar novamente a ser "curdos" (embora não separatistas. Mas, se os curdos realmente querem a independência, essa, hoje, é a melhor chance que jamais tiveram para alcançá-la.)*****
25/7/2016, Patrick Armstrong, Rússia Observer
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