Nas semanas recentes houve muitos e importantes desenvolvimentos nas negociações da dívidaentre Grécia e as 'instituições' europeias: o lado grego apresentou propostas, vazaram supostas contrapropostas dos credores, o primeiro-ministro Alexis Tsipras rejeitou-as, houve debate pré-agenda no Parlamento - onde Tsipras repetiu total rejeição das contrapropostas - e depois sua recusa a pagar a prestação que vencia dia 5/6 ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Estamos claramente num momento crítico de virada.
O único partido capaz de fazer a Grécia andar para frente agora é o Syriza. O [partido] Nova Democracia está minado por disputas pela liderança e eleitoralmente despenca ladeira abaixo. O Potami não tem nenhuma, nem qualquer mínima, credibilidade. O Pasol está moribundo. O que os três propõem, na essência, é uma volta ao regime dos Memorandos. O Partido Comunista da Grécia afundou, por conta própria, num pântano de esquerdismo o mais turvo. E a via escolhida pelo Aurora Dourada, para completar o quadro, é de total descarrilamento do país, social e nacionalmente.
O povo grego portanto continua a investir todas as suas esperanças no Syriza. É o que se vê pelas pesquisas. Por tudo isso, é imensamente importante que o experimento do Syriza seja bem-sucedido. Pela mesma razão, as discussões que estão sendo conduzidas dentro do Partido ganham automaticamente dimensão nacional.
Nesse crucial momento histórico, é preciso analisar cuidadosamente as propostas do governo grego e as contrapropostas dos credores, para extrair conclusões sobre o rumo das negociações.
As propostas dos gregos
O texto que o governo grego apresentou para acordo com os parceiros pode ser resumido em torno dos seguintes pontos chaves.
1. O governo projeta superávit primário de 0,6% em 2015; 1,5% em 2016; 2,5% em 2017 e 3,5% para os cinco anos seguintes. São projeções indiscutivelmente mais baixas que os quiméricos 3% para 2015 e 4,5% para 2016 que aparecem nos Memorandos. Mas não há afrouxamento real das políticas fiscais. Ao contrário, o tipo de gestão proposto pelo governo é muito apertado, como se vê na desistência de tentar orçamentos equilibrados. Em termos práticos, haverá arrocho [ver (*)] em 2015-16 e, com certeza, depois de 2017.
2. Para alcançar os superávits em 2015-2016, que são os únicos anos para os quais pode haver qualquer previsão realista, o governo está propondo elevar impostos. A medida mais importante são três aumentos de Imposto sobre Valor Agregado (IVA) [orig. Value Added Tax (VAT)] (6,5%, 11% e 23%), com medicamentos recebendo o menor imposto, e alimentos comuns, energia e água, um imposto médio.
Esses são os maiores aumentos de impostos indiretos, mas estão sendo feitas tentativas para buscar políticas redistributivas, com os impostos mantidos mais baixos para itens de consumo popular (por exemplo, eletricidade, que recebe redução de imposto, de 13% para 11%). Mas inescapavelmente, se o VAT aumentar em escala adequada para gerar o necessário superávit, haverá nível significativo de ajuste fiscal.
3. O governo também está propondo aumento na contribuição solidária (com peso maior sobre os mais ricos), taxação especial sobre os lucros de grandes empresas, um imposto sobre anúncios por televisão, cobrança de licença para funcionamento de estações de TV, uma taxa 'sobre o luxo' e outras medidas. O governo grego também está propondo uma série de medidas administrativas e legislativas para facilitar o processo de pôr fim à evasão fiscal, reduzir as isenções fiscais e melhorar a arrecadação.
4. Além das medidas fiscais, o governo propõe privatização de cerca de €3,2 bilhões para 2015-16; €2,1 bilhão para 2017-19; e €10,8 para depois de 2020. Haverá provisão para investimentos e para proteção de direitos trabalhistas nas empresas privatizadas, e o que for obtido dessas privatizações será usado para seguridade social e para reforçar o banco de investimentos a ser constituído.
5. No que tenha a ver com a seguridade social, as propostas incluem abolir a cláusula de déficit-zero para 2015-16 e gradualmente adiar as aposentadorias para depois dos 62 anos. São propostas também várias medidas específicas para limitar o trabalho precarizado e a sonegação de contribuições para a seguridade.
6. Na área das relações trabalhistas, o governo deseja reintroduzir os acordos coletivos e, depois do final de 2016, restaurar o salário mínimo para os níveis de 2010.
7. Quanto a "empréstimos no vermelho", há uma proposta para que se constitua um grupo de trabalho que delineará medidas que possam, gradualmente, mitigar a atual situação. Além disso, será temporariamente suspenso o leilão de imóveis que sejam primeira residência familiar.
8. O governo também está introduzindo várias reformas no sistema judiciário, sobre insolvências, turismo, comércio, telecomunicações, trabalhadores autônomos, registro de propriedade agrária, administração pública e setor de energia.
9. Por fim, o governo propõe duas medidas para reestruturar a dívida em 2015-16.
Primeiro, em 2015 haverá repagamento dos papéis gregos pertencentes ao Banco Central Europeu, usando-se fundos disponibilizados pelo Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE).
Segundo, em 2015-16 serão pagos as dívidas com o Fundo Monetário Internacional (FMI), mais uma vez com fundos disponibilizados pelo MEE. Não há qualquer referência ao total de novos impostos, mas logicamente terão de estar em torno de €50 bilhões. Nessa base, estima-se que a Grécia poderá estar de volta aos mercados em março de 2016. O governo também requer que "as instituições" considerem um programa para financiar o desenvolvimento do país no período 2016-2021. Mas não se especificam o tipo e as dimensões do programa.
As propostas do governo grego são concessão extremamente dolorosa, e tem de haver discussão interna no Partido sobre as consequências delas em relação à implementação da plataforma eleitoral do Syriza, o "Programa de Thessaloniki". Por exemplo, não há menção ao cancelamento da dívida, nem a isenção de impostos, mas, ao contrário, fala-se de novos IVA e outros impostos, do adiamento do alívio creditício (seisachteia), nem uma palavra sobre nacionalização de bancos e daí por diante.
É preciso ter em mente que o Thessaloniki Program não é alguma modalidade de bolchevismo. É só keynesianismo moderado. A concessão que o governo faz às "instituições" também levanta realmente a questão de o quanto será implementável.
Claramente, a estratégia de negociação do governo é pôr fim ao processo de avaliação, garantir uma retomada na liquidez enquanto, simultaneamente, busca arrancar dos credores alguma redução no endividamento e nos patamares de crescimento exigidos. O Syriza está bem visivelmente se afastando do Programa de Thessaloniki, mas ainda tenta manter viva a esperança de que, no futuro, poderá seguir outra via.
As propostas dos credores
E qual a reação dos "parceiros"? A julgar pelo texto que vazou, a resposta foi brutal.
1. As "instituições" estão exigindo superávits primários de 1% em 2015, 2% em 2016, 3% em 2017, 3,5% em 2018, e 3,5% em cada ano subsequente. Esses objetivos não são muito diferentes dos do lado grego, o que implica que há reconhecimento implícito de que as metas anteriores eram inatingíveis. Os credores fizeram uma concessão. Mas a gestão fiscal continua extremamente apertada. Haverá "regime de austeridade" [na verdade é "regime de arrocho"] por muitos anos no futuro.
2. O problema é que as "instituições" entendem que, segundo as projeções atuais, a economia grega terá esse ano déficit primário de 0,66%. Também é óbvio que as "instituições" não acreditam na renda estimada pelo lado grego a ser gerada pelas medidas que os gregos propõem. As "instituições" portanto estão dizendo que medidas "específicas e de alta qualidade" devem ser tomadas para que os superávits sejam alcançados para 2015-16 e de modo compatível com o Programa de Médio Prazo para 2016-19. Logo...
3. Em primeiro lugar e sobretudo, um aumento no IVA que gere aumento de aproximadamente mais €2 bilhões. Haverá duas taxas, 23% e 11%, a mais baixa aplicada a alimentos de consumo diário, medicamentos, hospedagem em hotéis (e a energia recebendo a taxa máxima de imposto). Serão abolidos os descontos que antes se aplicavam às ilhas.
4. As "instituições" exigem muitas outras medidas draconianas de taxação, como a eliminação de subsídios - inclusive o subsídio para o combustível - para agricultores, e fim do subsídio para óleo para calefação. Também exigem um ajuste na avaliação objetiva da propriedade, de modo que o imposto sobre a propriedade gere renda idêntica à de 2015 e 2016, i.e. €2,65 bilhões anuais. Além disso, as "instituições" insistem na eliminação de acordos favoráveis sobre contribuições que tenham repercussão na dívida acumulada.
5. Além das medidas tributárias, as "instituições" estão exigindo reforma no sistema de aposentadorias com cortes de gastos da ordem de 0,25-0,5% do PIB em 2015 e 1% em 2016. Significa introduzir uma série de mudanças, inclusive eliminar a Contribuição Social de Solidariedade aos Aposentados [orig. Pensioners' Social Solidarity Grant] e adiar a aposentadoria para 67 anos, para quem começou a receber pensão depois de 30 de janeiro.
6. As "instituições" estão propondo uma série de outras medidas para reforma da administração pública e do Judiciário, e tornando independentes os mecanismos de arrecadação, além de proporem gestão privada para o sistema fiscal.
7. No que tenha a ver com questões trabalhistas, propõem um processo de consultas para: salário mínimo, negociação coletiva, demissões em massa e greves, semelhante à "melhor prática" europeia.
8. Querem também desregulamentação geral de vários mercados, o mais importante dos quais é o mercado de geração e distribuição de energia elétrica.
9. Querem também continuação sistemática das privatizações extensivas, incluindo a rede ferroviária, os aeroportos regionais, Εgnatia Odos, o porto de Pireus, e o porto de Thessaloniki.
10. E as "instituições" não fazem qualquer referência a alguma reestruturação da dívida ou a algum programa de investimento e desenvolvimento.
Do texto vazado, o que se tem é que os credores estão insistindo em impostos duros e de "alta qualidade" com o objetivo de garantir superávits primários "baixos". Ao mesmo tempo, exigem duras medidas de restrição a aposentadorias e pensões, terríveis reformas no trabalho, e uma coorte de políticas de desregulação.
O pressuposto é que, assim, se completará a avaliação pelos credores e o país poderá receber injeção de alguma liquidez em futuro imediato. Mas não há qualquer solução para o problema da dívida nem qualquer programa de investimento. A conclusão necessária é que essas 'medidas' virão depois, talvez depois de "ampla" negociação sobre o limbo fiscal em que o país está.
Para onde leva essa estrada?
Algumas conclusões autoevidentes já estão aí, sobre para onde estamos andando.
Não há qualquer base para a ideia de que haveria sérias diferenças entre os credores, que poderiam ser usadas a favor dos gregos. A elite europeia tem bons modos e fala com polidez, mas ali não há ninguém que possamos considerar amigo dos gregos. Quando chega a hora de puxar o nó no pescoço do enforcado, aqueles polidos negociadores viram duros, intransigentes e cínicos. Assim se construíram todos os impérios passados.
Não há "política de negociação" no sentido em que se diz na Grécia - quer dizer, com acorde pessoal entre os líderes. No contexto político europeu as posições são mediadas por instituições e mecanismos - num sentido mais amplo, aplica-se também ao setor público - que têm lógica própria. E a mediação tem quase sempre caráter tecnocrático.
Por exemplo, não há muita diferença entre as metas do governo grego e as metas dos credores no que tenha a ver com superávit primário, mas as posições sobre as medidas a serem tomadas são muito diferentes. A mediação tecnocrática das posições políticas dos credores é rígida. Daí brota a lógica do FMI e, igualmente, as demandas por medidas draconianas.
Não haverá proposta dos credores que não implique alto custo político para o Syriza e suas lideranças, porque o partido ameaça o status quo na Europa. Os credores querem demonstrar que o Syriza foi derrotado.
Não haverá proposta dos credores que permita ao Syriza implementar o Thessaloniki Program. O terreno para o qual os credores estão gradualmente arrastando o Syriza é cada vez mais distanciado de suas posições pré-eleições.
Algumas conclusões impõem-se quase automaticamente:
Se algum acordo chegar a ser assinado nos termos impostos pelos credores, a Grécia estará de volta, na essência, ao regime dos Memorandos, o que significa que não haverá desenvolvimento sistemático, o desemprego continuará algo, a desigualdade aumentará, o país envelhecerá e a Grécia será transformada em insignificante pária no palco internacional. Se tal acordo for assinado, o tempo trabalhará contra o Syriza. Não haverá via que leve a algum "fim interno" aplicado à corrupção e à intriga, e nenhuma possibilidade de mudança social. Só haverá desgraça e desastre, para o país e para a Esquerda.
O desideratum nesse momento não é que se alcance algum espaço partilhado, entre as propostas dos credores e as do governo grego, pela óbvia razão de que tal acordo nos levaria para ainda mais longe do Programa de Thessaloniki. Se acontecer, os credores terão essencialmente vencido.
Há pouco espaço de manobra na sequência das negociações. A prolongada falta de liquidez e de fundos foi arquitetada pelos credores e levou a economia a uma recessão. O estado está suspendendo pagamentos e já não consegue funcionar como o esperado.
O saque de recursos já assumiu proporções elefantinas: o sistema bancário está à beira do colapso. Dívidas não saldadas acumulam-se. O crédito comercial está congelado. Nos últimos quatro meses, o governo do Syriza administrou a economia melhor do que governos anteriores do Nova Democracia ou do Pasok, mas a torquês viciosa aplicada pelos credores só faz aprofundar as rachaduras.
A estratégia de mudança radical na Grécia, sem afastar-se do contexto da União Europeia já deu o que tivesse para dar. Essa é a mensagem mais básica e mais importante que se pode extrair das táticas de rolo compressor aplicadas pelos credores.
Se o Syriza quer realmente mudar a sociedade, evitar a ruína da nação, pôr a economia de volta a uma rota de desenvolvimento, garantir uma nova posição dinâmica para a Grécia no esquema internacional de coisas, é absolutamente necessário que se examinem outras vias à frente, para avançar.
Análises e o conhecimento estão aí. Vontade política e decisão são os itens ainda a serem trazidos para a equação. *****
Em resposta - de fato, como enriquecimento e complementação - à já famosa 'nota sobre "não é austeridade', é ARROCHO", recebemos a seguinte msg, com indicação do artigo do qual o trecho citado foi extraído, que muito agradecemos:
"Austeridade não é um conceito económico e o seu conteúdo substantivo é escasso. Na verdade, é uma noção moralista e, sobretudo, um instrumento de reorganização autoritária e assimétrica das relações sociais. (...) Na verdade, a noção de austeridade é demasiado tortuosa para que seja um conceito económico relevante e coerente, e demasiado destruidora para que não tentemos interpretá-la nos seus eventuais fundamentos. Mas é muito difícil escapar à convicção de que estamos perante uma ideia essencialmente instrumental, socialmente regressiva e ao serviço de finalidades mais encobertas do que reveladas" ("Moralismo, ortodoxia e economia: a tortuosa noção de austeridade", José Reis [Prof. da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Investigador do Centro de Estudos Sociais]).
Tá provado: "Tudo vale a pena, quando a alma tem antena" [apud Laerte] (NTs).
Ver: Costas Lapavitsas: "Grécia Fase 2" (parte 1, parte 2 e parte 3) [NTs].
12/6/2015, Costas Lapavitsas, Jacobin Magazine (trad. gr. ao ing., de Wayne Hall) https://www.jacobinmag.com/2015/06/syriza-troika-lapavitsas-austerity-tsipras/
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