Nota sobre uma busca inglória
Iraci del Nero da Costa*
A nosso ver, alguns pensadores marxistas ainda se prendem ferrenhamente à idéia de que uma eventual mudança socioeconômica radical dependerá, necessariamente, da liderança ideológica e da condução política de uma determinada classe social revolucionária.
Dadas as transformações ocorridas no seio do velho proletariado, alguns buscam um novo "sujeito revolucionário" no seio de segmentos mais bem preparados do ponto de vista intelectual e profissional; integrantes de tais segmentos, aptos a chegarem a um refinamento ideológico mais sofisticado, aglutinar-se-iam numa elite politicamente atuante a qual viria a comandar as esperadas mudanças radicais. Já outros, procuram esse "indivíduo universal" nos estratos menos abonados da sociedade, entre os que "não têm nada a perder, a não ser as correntes que os agrilhoam".
De toda sorte, estejam onde estiverem, tais elementos terão de estar em algum lugar de nossa complexa sociedade de inícios do século XXI. Tudo se passa como se o momento tido como "objetivo" tivesse preeminência absoluta sobre o elemento considerado de ordem "subjetiva". A nosso juízo, a permanência de tal visão cediça, que já se mostrava limitada e ultrapassada no passado, é muito perniciosa e impede que se "limpe o terreno do pensamento marxista" a fim de que possamos formular novas formas de encarar a realidade atual e de atuar sobre ela; realidade essa fundamente marcada e alterada, tanto objetiva como subjetivamente, pela derrocada do assim chamado "socialismo real".
Uma das mudanças significativas decorrentes da experiência histórica acumulada no correr dos últimos cento e cinqüenta anos talvez tenha sido a de liberar uma eventual revolução social futura das amarras que, como se supunha, a prendiam a uma dada classe social.
Segundo pensamos, o papel ativo e historicamente significativo do proletariado culmina e se esgota com a formulação da crítica do capital efetuada por Marx. Pode-se dizer que a classe operária desempenhou papel fundamental para indicar à humanidade (aqui personalizada em Marx), de uma parte, a possibilidade de se subverter a sociedade burguesa, e, de outra, a de evidenciar a direção básica dessa mudança: a supressão da propriedade privada sobre os meios de produção.
A contar da obra de Marx, a revolução deixa de ser uma tarefa desta ou daquela classe e se torna um programa de mudanças que se impõe a toda a humanidade. Tal alteração no caráter de uma eventual revolução futura não é aleatório, pois resulta tanto de causas de ordem objetiva como de razões de ordem subjetiva. Vejamos, ainda que superficialmente, alguns desses condicionantes.
A concepção de um descolamento da mudança revolucionária de corte socialista com respeito à classe operária, ou a uma dada classe social, parece-nos muito incipiente e está a demandar uma sistematização teórica de largo fôlego; embora saibamos que não estamos pessoalmente preparados para efetuá-la, sentimos que podemos intuir sua necessidade e cremos que elementos teóricos embrionários de tal descolamento já se encontram presentes no pensamento de Marx, Engels e Lukács. Assim, lê-se no Manifesto Comunista: "Todas as classes dominantes anteriores procuraram garantir sua posição submetendo a sociedade às suas condições de apropriação. Os proletários só podem se apoderar das forças produtivas sociais se abolirem o modo de apropriação típico destas e, por conseguinte, todo o modo de apropriação em vigor até hoje. Os proletários nada têm de seu para salvaguardar; eles têm que destruir todas as seguranças e todas as garantias da propriedade privada até aqui existentes." (MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. O Manifesto Comunista. In: Daniel Aarão Reis Filho (organizador). O Manifesto Comunista 150 anos depois. Rio de Janeiro: Contraponto/São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 18-19).
Coube a Georg Lukács lançar luz sobre essa observação de Marx e Engels, destarte, em Historia y consciencia de clase, encontramos, calcada na citação acima posta, uma longa explanação sobre as tarefas de novo tipo que se imporiam ao proletariado: "Pues las clases que en anteriores sociedades se vieron llamadas al dominio y, por lo tanto, fueron capaces de realizar revoluciones victoriosas, se encontraron subjetivamente ante una tarea mucho más fácil, a causa precisamente de la inadecuación de su consciencia de clase respecto de la estructura económica objetiva, o sea, a causa de su inconsciencia respecto de su propia función en el proceso del desarrollo social. Les bastó con imponer sus intereses inmediatos mediante la fuerza de que disponían, y el sentido social de sus acciones les quedó siempre oculto, entregado a la 'astucia de la razón' en el proceso social determinado. Pero como el proletariado se encuentra en la historia con la tarea de una transformación consciente de la sociedad, tiene que producirse en su consciencia de clase la contradicción dialéctica entre el interés inmediato y la meta última, entre el momento singular y el todo. Pues el momento singular del proceso, la situación concreta con sus concretas exigencias, es por su naturaleza inmanente a la actual sociedad, a la sociedad capitalista, se encuentra sometida a sus leyes y a su estructura económica. Y no se hace revolucionaria más que se inserta en la concepción total del proceso, cuando se introduce con referencia al objetivo último, remitiendo concreta y conscientemente más allá de la sociedad capitalista. Pero eso significa, subjetivamente considerado, para la consciencia de clase del proletariado, que la relación dialéctica entre él interés inmediato y la acción objetiva orientada al todo de la sociedad queda situada en la consciencia del proletariado mismo, en vez de desarrollarse, como ocurrió con todas las clases anteriores, más allá de la consciencia (atribuible), como proceso puramente objetivo. La victoria revolucionaria del proletariado no es pues, como para las demás clases anteriores, la realización inmediata del ser socialmente dado de la clase, sino - como ya lo vio y formuló agudamente el joven Marx - la autosuperación de la clase. El Manifiesto Comunista formula esa diferencia del siguiente modo: 'Todas las clases anteriores que conquistaron para sí el dominio intentaron asegurar la posición que ja havian logrado en la vida sometiendo la sociedad entera a las condiciones de su logro. Los proletarios no pueden conquistar para sí las fuerzas sociales de producción más que suprimiendo su propio anterior modo de apropiación y, con ello, todo modo de apropiación existido hasta ahora.'" (LUKÁCS, Georg. Historia y consciencia de clase. Barcelona: Editorial Grijalbo, 1975, p. 77-78).
Como se vê imediatamente, o cerne da questão repousa no caráter totalmente original das transformações a serem implementadas. Não se trata mais da subordinação de uma ou mais classes sociais aos interesses imediatos de um segmento social dominante, mas da própria superação das classes sociais; não se trata de impor uma nova forma de expropriação, mas de eliminar a possibilidade de que a exploração possa ocorrer. Este elemento de ordem objetiva empresta um conteúdo novo à própria idéia de revolução, tornando-a uma tarefa aberta à participação de todas as classes e segmentos sociais, enfim de toda a parcela da Humanidade favorável à emergência de uma sociedade mais equânime, ademais, confere um novo status ao momento subjetivo.
Encontramo-nos, de fato, em face de uma situação limite na qual o elemento de ordem objetiva deixa de ter um caráter transformador per se e o elemento subjetivo assume papel determinante, pois o passo transformador definitivo depende agora, necessariamente, da ação consciente dos homens.
Para nós, como apontado em trabalhos anteriores realizados juntamente com José Flávio Motta, o desenvolvimento das formas mercadoria, dinheiro e capital conhece seu ponto culminante com a emergência da mercadoria força de trabalho, ou seja, com o estabelecimento do capitalismo, no âmbito do qual se dá o pleno amadurecimento de tais formas. Estabelecido em espaço geográfico considerável passou ele a operar de maneira a subordinar e recriar, à sua feição, todo o espaço social, econômico e físico com o qual entrava em contato. Observa-se, assim, não só a emergência da história universal, mas, também, de uma mudança qualitativa na própria história da humanidade; a partir de então só persiste o modo de produção capitalista - que a tudo ilumina, como se diria em termos clássicos - tudo subordinando, condicionando e determinando.
De outra parte, justamente por ter ocorrido o desenvolvimento superior daquelas formas, chega-se à derradeira forma de sociabilidade natural da humanidade; a partir de então - e na medida em que o capital industrial traz implícitas as condições de sua reprodução, de sua reposição - apenas um movimento dirigido conscientemente, poderá conduzir à superação das condições dadas, vale dizer, do capitalismo, o qual, caso contrário, repor-se-á indefinidamente. O primeiro passo necessário à sua superação estará, pois, no estabelecimento da crítica teórica das condições dadas, estudo este que deverá fundamentar a ação consciente no sentido da negação do status quo; assim, a crítica da lógica de funcionamento do capital industrial e do capitalismo define-se como pressuposto imprescindível à aludida superação.
A nosso ver, as análises cujo apogeu atingiu-se com a elaboração e a publicação de O Capital representaram o primeiro momento do referido movimento da consciência indispensável à criação das condições subjetivas para que a humanidade pudesse propor-se a negação do capitalismo e, portanto, passar a empenhar-se nessa tarefa.
Do exposto, infere-se a existência de dois elementos que estão a condicionar a possibilidade de se superar o modo de produção capitalista. Um primeiro, óbvio, de ordem objetiva: a constituição e a universalização do próprio capitalismo. Outro de ordem subjetiva: a crítica do sistema (da lógica de funcionamento do capital industrial) e a formulação, ainda que num mero bosquejo, de uma nova forma de sociabilidade, a primeira a se assentar inteiramente na consciência e que, portanto, terá de ser por ela sustentada (isto é, terá como suporte a ação consciente de homens livremente associados).
Como afirmado, a história natural do homem esgotou-se, chegou à sua forma superior com a existência do modo de produção capitalista; impõe-se, agora, sua história "cultural", uma história propriamente humana uma vez que posta pela consciência e não uma simples decorrência da acomodação do homem à situação objetiva que, embora sendo fruto de sua ação, lhe aparece como algo dado, como uma criação que lhe é exterior; não como um fato social, mas como um fato natural.
Já não basta aos homens perseguirem seus interesses imediatos para dar-se a transformação revolucionária, é preciso que eles transcendam seus eventuais interesses "egoísticos", para usar uma linguagem própria de Antonio Gramsci; o "político" sobrepõe-se ao "econômico", o "subjetivo" sobrepuja o "objetivo". Quais elementos deveriam, afinal, estar presentes no bosquejo acima referido? Sem pretendermos sequer arranhar a resposta definitiva a esta questão, não nos furtamos a tecer os breves comentários que se seguem com o intuito de encaminhar a discussão. Em primeiro lugar, considerando que terá de haver livre assentimento com respeito à nova forma de sociabilidade, é indispensável uma ambiência democrática, vale dizer, a democracia e os direitos que expressam a cidadania têm de prevalecer, absoluta e irrestritamente, e a ambos, obviamente, há de estar aliado o maior grau possível de liberdade pessoal e coletiva. Em segundo, tal sociedade terá de se erigir com base na negação da propriedade privada sobre os meios de produção, uma vez que não pode haver, por hipótese, qualquer mediação entre a produção de bens e serviços e sua distribuição consoante as necessidades dos indivíduos. Em terceiro, para a gestão da vida econômica dessa sociedade "pós-capitalista" precisar-se-á de uma engenharia econômica que não se confunde com a(s) engenharia(s) de hoje, nem com a administração como a conhecemos, nem com a economia como a praticamos nos dias correntes; a essa nova engenharia cumprirá estabelecer as relações que vincularão a produção física com os recursos e as técnicas disponíveis e com as demandas de caráter individual e social.
Em suma, temos, no capitalismo, um sistema "natural" integrado, auto-regulado, no qual até mesmo as formas de pensar (a seu favor) encontram-se "naturalmente" delineadas. De outra parte, deparamo-nos com o embrionário pensamento da esquerda, ainda incapaz de compor um quadro coerente e articulado do que deverá vir a ser, em idéia, o sistema pelo qual almejam os críticos radicais do capitalismo. Pensamento este que nos parecerá muito mais rudimentar se tivermos presente o quanto lhe resta por avançar, pois, por se tratar de algo "antinatural", tudo, ou quase tudo, ainda está por ser elaborado. Pensamento que, por esta mesma causa, defronta-se com o fato de que não há nenhuma razão de ordem natural conducente ao estabelecimento e à persistência no tempo de uma nova forma de sociabilidade humana. (As questões aqui sumariadas são tratadas mais detidamente em: COSTA, I. & MOTTA, J. F. Hegel e o fim da história: algumas especulações sobre o futuro da sociabilidade humana. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política. Rio de Janeiro: Ed. 7 Letras, n. 7, dez. 2000, p. 33-54 e COSTA, I. & MOTTA, J. F. A mercadoria força de trabalho, o capitalismo e a emergência de uma nova forma de sociabilidade humana. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política. Rio de Janeiro: Ed. 7 Letras, n. 14, jun. 2004, p. 32-47).
Talvez seja oportuno lembrar a esta altura que o empuxo transformador de caráter objetivo devido à ação da classe operária e do campesinato é bastante para colocar o capitalismo em xeque, mas, na ausência do elemento subjetivo aqui referido, o movimento revolucionário passa a "patinar" e sua direção pode ser empolgada por grupos políticos que conduzem o corpo social a situações em que domina o elemento repressivo ou totalitário e nas quais podem vir a predominar aparelhos burocráticos corruptos e/ou em que a ineficiência se mostra generalizada. Exemplos de casos como tais encontramos na URSS, nos países do leste Europeu, na China e em nossa tão desventurada Cuba.
Se as opiniões acima reportadas estiverem corretas é forçoso reconhecer que a tarefa colocada ao pensamento de esquerda não é a de encontrar uma "nova classe redentora", mas a de mobilizar consciências para a execução de um projeto político-ideológico consistente e abrangente, projeto este que nos cabe formular, pois ele ainda nem sequer foi esboçado em todas as suas dimensões.
* Professor Livre-docente aposentado da Universidade de São Paulo.
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