Quase é possível visualizar o sorriso felino de John McCain ao seus estrategistas sussurrarem em seu ouvido: "Os eleitores são basicamente estúpidos. Não é a substância que importa; é o estilo. Não se trata de conhecer os assuntos; trata-se de apelar para o que há de pior em a natureza humana, enquanto finge estar apelando para o que há de melhor nela."
"Pense nisto, John! Os eleitores já elegeram artistas de cinema e de televisão para governos estaduais, para o Congresso, e até para a presidência. Frequentemente, se esses artistas morrem enquanto ainda exercendo o cargo, os eleitores elegem seus cônjuges, como se a osmose desse às esposas e maridos das autoridades eleitas falecidas alguma forma inusitada de perspicácia política. Até pessoas que ajudaram outros a roubar eleições ganharam eleições elas próprias!"
"Como os 'compadres' da Virgínia Ocidental mostraram, você já garantiu determinado número de votos simplesmente pelo fato de seu opositor ser africano-estadunidense. E o voto de uma pessoa intolerante vale tanto quanto o voto de uma pessoa não preconceituosa. O que você precisa fazer é persuadir aqueles eleitores que estão desconsolados com a derrota de Hillary Clinton. Você pode fazer isso escolhendo uma mulher para sua companheira de chapa. Ela pode ser tão diametralmente oposta aos pontos de vista políticos de Hillary Clinton quanto George W. Bush é oposto à sanidade, isso não terá a menor importância."
Embora o autor deste artigo não possa afirmar taxativamente que o discurso acima teve lugar, quando li pela primeira vez que John McCain havia selecionado a governadora do Alasca Sarah Palin como companheira de chapa, perguntei-me imediatamente "Será que ele é realmente tão cínico, ou tão ingênuo, que não imagina que os eleitores perceberão sua clara tentativa de explorar essa tática relativa a sexo?"
Poucos dias depois, descobri que meus pensamentos encontravam eco no comentador vencedor do Prêmio Pulitzer Leonard Pitts, do Miami Herald. Em sua coluna, Pitts também observou a "ironia" de McCain escolher Palin, visto que o partido político que McCain representa "passou anos investindo contra a assim chamada 'política de identidade.'"
Na verdade, durante suas campanhas, George W. Bush incessantemente alcovitou os males gêmeos do racismo e do sexismo ao denunciar as políticas de ação afirmativa voltadas para minorar a discriminação contra as minorias e as mulheres como "tratamento preferencial."
Obviamente demasiados eleitores ignoravam o fato de que Bush, por meio da riqueza e da influência de sua família, beneficou-se de "tratamento preferencial" a vida inteira. Como a miúdo enunciei em artigos anteriores de Pravda.Ru, Bush não é adverso a "tratamento preferencial," desde que ele, e seus ricos partidários brancos, sejam os preferidos.
Poucos dias depois do anúncio de McCain, as pesquisas de opinião pareciam indicar que sua estratégia estava funcionando. Subitamente uma superabundância de eleitores "indecisos," em particular mulheres brancas, emprestou seu apoio à chapa McCain/Palin.
Uma preeminente feminista chegou a afirmar que as mulheres têm sofrido discriminação pior do que os africanos-estadunidenses, porque os homens africanos-estadunidenses gozaram do direito de voto décadas antes das mulheres.
Embora isso seja cronologicamente correto, trata-se todavia de um argumento especioso. É verdade que os homens africanos-estadunidenses ganharam o direito de voto, constitucionalmente concedido, em 1870, enquanto que as mulheres só receberam permissão para votar em 1920.
Na realidade, entretanto, os direitos de voto de todos os africanos-estadunidenses, dos sexos masculino e feminino, especialmente no Sul posterior à Guerra Civil, foram invalidados em 1877 depois que Rutherford B. Hayes, para vencer uma disputada eleição para a presidência, concordou em retirar tropas nortistas dos antigos Estados Confederados, condenando os africanos-estadunidenses que neles residiam a um sistema de segregação e de subtração do direito de voto que o cartunista Thomas Nast descreveu como "pior do que a escravidão."
Essa subtração do direito de voto durou quase um século, e evidência de seu poder, e do racismo que engendrou, pode ainda ser vista ao se considerar a história e a atual composição do Senado dos Estados Unidos. Dezenove mulheres já serviram no Senado, das quais dezesseis estão servindo hoje. Em contraste, apenas três africanos-estadunidenses foram até hoje eleitos para o Senado, e apenas um, Barack Obama, está atualmente servindo.
Indubitavelmente muitas pessoas argumentarão que não há nada de errado em apoiar Palin unicamente devido ao sexo dela, visto que africanos-estadunidenses há que estão apoiando Barack Obama unicamente devido à raça dele.
Esse argumento, entretanto, deixa de lado o fato de que muitos africanos-estadunidenses não apóiam políticos africanos-estadunidenses quando esses políticos atuam adversamente em relação aos interesses daqueles.
Isso ficou evidente na competição para o governo de Ohio em 2006, quando os africanos-estadunidenses peremptoriamente rejeitaram John Kenneth Blackwell. Blackwell, africano-estadunidense e partidário de George W.Bush durante a eleição de 2004, era suspeito de, na qualidade de Secretário de Estado, ilicitamente subtrair direitos de voto de eleitores minoritários de tal maneira que pudesse destinar os votos eleitorais de Ohio (e, como se veio a saber, a eleição) a Bush.
Obviamente, muitos eleitores estão afirmando que não é o sexo de Palin que os persuadiu a apoiar a chapa McCain/Palin, e sim os outros atributos dela: Foi o discurso dela na Convenção Republicana; são os "valores de família" dela; é a "fé" dela.
Uma mulher chegou a dizer que, como mulher, Palin poderiá mais facilmente identificar-se com a dor de perder um filho em combate no Iraque, enquanto que um idiota do Canal Faux "News" tentou argumentar, com a maior desfaçatez, que Palin tem "experiência política internacional" devido à proximidade do Alasca da Rússia, o que aparentemente significa que todo mundo que reside em Washington D.C. tem experiência presidencial, por morar perto da Casa Branca.
No entanto, os programas de televisão e os filmes já mostraram que qualquer pessoa moderadamente hábil pode, eficazmente, apresentar uma fala decorada. Atores de séries médicas como House e ER rotineiramente repetem de memória terminologia médica com impecável proficiência. Isso, porém, não os torna médicos, nem o dicurso bem-decorado de Palin a torna qualificada para potencialmente administrar um país que, plausivelmente, é o mais poderoso da Terra.
Os "valores familiares" de Palin são também questionáveis. Embora a direita destine vociferantes condenações à mídia, por esta haver revelado a gravidez da filha de dezessete anos de Palin, Britney, muitos repórteres corretamente destacaram que as ambições políticas interesseiras de Palin foram as principais responsáveis pela catapultagem da situação da filha rumo à berlinda internacional.
Recentemente, Jon Stewart, do The Daily Show, expôs a hipocrisia dos apologistas de Palin que contendem que a gravidez de Britney é assunto "privado". Um desses apologistas é o sexualmente assediador contador de vantagens do Canal Faux "News" Bill O'Reilly. Agora subitamente preocupado com preservar a "privacidade" da família de Palin, O'Reilly não hesitou, há poucos meses, em chamar os pais de Jamie Lynn Spears de "palermas" depois de revelado que a atriz e cantora de dezesseis anos de idade estava grávida.
Eleitores que até agora ainda não conseguiram estabelecer nenhuma distinção entre Hillary Clinton e Sarah Palin deveriam perguntar-se: O que teriam esses apologistas direitistas de Palin dito se uma Chelsea Clinton solteira tivesse ficado grávida durante os últimos anos da presidência de Bill Clinton?
É aposta segura que todo o atual "respeito" pela privacidade não existiria. Em seu lugar, haveria imagens, vinte e quatro horas por dia, de Monica Lewinsky e Paula Jones lampejando nas telas de televisão, enquanto o hipócrita grupo dos "valores da família" pontificaria acerca de como "a imoralidade produz imoralidade."
Quanto à alegada "fé" de Palin, e quanto aos discursos que ela já pronunciou a respeito do assunto, suponho que se Deus for algum guerreiro vingativo, e as guerras no Iraque e no Afeganistão forem a cruzada "santa" de Deus, então é possível cognominar Palin de "crente." No entanto, deve-se lembrar que aqueles que se opõem à presença dos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão atribuem a Deus exatamente as mesmas características que Palin atribui.
Dado quão facilmente muitos eleitores tiveram sua opinião mudada por Palin, comecei a pensar no que precipuamente os motiva. Levando em conta as nuanças de sexo e raça da eleição vindoura, minha hipótese é que a maioria dos eleitores escolhe candidatos que despertam seus mais ignóbeis instintos, e em seguida procuram maneiras de racionalizar suas escolhas.
Por exemplo, lembro-me do caso de uma mulher que anunciou que não votaria em Obama porque "Ela não gostava daquilo em que ele acreditava". Quando lhe perguntaram, entretanto, no que ele acreditava, ela não conseguiu responder.
Por quê?
Porque a resposta honesta dela teria sido "Não voto em Obama porque ele é preto."
Um problema inerente ao voto visceral é que ele degenera o processo democrático em algo ludicramente hipócrita. O mantra do dia se torna "Embora seja errado para meu oponente, não é errado para mim."
É por isso que as alegações de que a força impulsionadora das críticas a Sarah Palin é o "sexismo" soam insinceras. Afinal de contas, muitas das pessoas que fazem essa afirmação atacaram incansavelmente Hillary Clinton anos a fio, e depois justificaram seus ataques afirmando que uma mulher na política não deveria esperar tratamento especial só pelo fato de ser mulher.
Outro problema do voto visceral é que ele cria e eleva "pessoas sem princípios," que fazem e dizem qualquer coisa para conseguir o cargo político. Isso, por sua vez, elimina qualquer possibilidade de ser algum dia eleito um líder honesto e idealista.
Em 1968, por exemplo, o Dr. Martin Luther King Jr. estava sendo encorajado a candidatar-se para presidente numa chapa de terceiro partido. Ele, porém, nunca teria vencido. Alémda aversão que os eleitores, em sua maioria, nutrem por candidatos fora do sistema de dois partidos, a devoção de King à não violência, sua defesa dos pobres e sua tendência de falar a verdade teriam sido fatais para ele.
Contraste-se isso com John McCain, que votou contra a criação do Feriado Federal de Martin Luther King Jr. em 1983. Não surpreendentemente, o Arizona, o estado que McCain então representava (e atualmente representa), foi também um dos últimos a reconhecer o feriado de King, e mesmo assim, muitos críticos contendem, esse reconhecimento visava mais a estimular a Liga Nacional de Futebol - National Football League (NFL) a jogar no Arizona seu preeminente jogo, o Super Bowl, do que a homenagear o Dr. King.
Agora que McCain tem ambições presidenciais, ele, previsivelmente, reconheceu que seu voto contra o Feriado King foi um "equívoco." Se, porém, não existisse o Feriado King nos Estados Unidos, ele ainda assim consideraria seu voto como um "equívoco?"
Independentemente de quem vencer a eleição presidencial de 2008, o perdedor é evidente. Os Estados Unidos, uma nação ainda profundamente dividida ao longo de linhas de raça e sexo, uma nação onde a cor da pele de alguém, ou a forma da genitália, é aparentemente mais relevante para os eleitores do que qualidades como honestidade, integridade, altruísmo ou a esperança de um mundo melhor.
David R. Hoffman
Editor Jurídico de Pravda.Ru
Tradução da versão inglesa Murilo Otávio Rodrigues Paes Leme [email protected] [email protected]
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