por Fidel Castro
entrevistado por Ignacio Ramonet [*]
Ramonet - Você acredita que a globalização está destruindo até o próprio capitalismo?
Fidel -
A publicidade praticamente determina o que se vende e o que não se vende, quem não tem muito dinheiro não pode fazer nenhum tipo de publicidade para seus produtos, ainda que sejam excelentes. Depois da última chacina mundial na década de 1940, prometeram-nos um mundo de paz, a diminuição da distância entre ricos e pobres e que os mais desenvolvidos ajudariam os menos desenvolvidos. Tudo não passou de uma enorme falsidade. Impuseram-nos uma ordem mundial que não se pode sustentar nem suportar. O mundo está sendo conduzido para um beco sem saída. Nenhuma daquelas categorias em que acreditávamos que se baseava o capitalismo existe mais; não existe, portanto, a teoria que os Chicago Boys ensinam às pessoas. E, por outro lado, a teoria e a prática do socialismo ainda estão por ser desenvolvidas e escritas.
Ramonet - Você me disse em outra ocasião que já não havia "modelo" em matéria política e que, atualmente, ninguém sabia muito bem o que o conceito de socialismo significava. Você me contou que, em uma reunião do Fórum de São Paulo que se realizou em Havana, e que reuniu todas as esquerdas da América Latina, foi necessário ter cautela para não pronunciar a palavra "socialismo" porque é uma palavra que "divide".
Fidel -
Na União Soviética se empregava outro método: o autofinanciamento, e ele tinha fortes convicções sobre isso. Marx fez apenas uma breve tentativa na Crítica do programa de Gotha de definir como seria o socialismo, porque era um homem muito sábio, muito inteligente e realista para imaginar que se poderia escrever uma utopia sobre como seria o socialismo. O problema foi a interpretação das doutrinas, e foram feitas muitas. Por isso os progressistas permaneceram tanto tempo divididos, e as polêmicas entre anarquistas e socialistas, os problemas depois da Revolução Bolchevique de 1917 entre trotskistas e stalinistas ou, digamos, para os partidários daquelas grandes polêmicas que foram geradas, a divisão ideológica entre os dois grandes dirigentes. O mais intelectual dos dois era, sem dúvida, Trotski. Stalin foi um dirigente mais de ordem prática, como conspirador, não foi um teórico e, uma vez ou outra, depois, quis agir como teórico... Lembro-me de uns livretos que eram distribuídos em que Stalin explicava o que queria dizer o materialismo dialético, e usava o exemplo da água... Quiseram transformar Stalin em um teórico.
Ele era um organizador, de grande capacidade, penso que era um revolucionário, não acredito que alguma vez tenha estado a serviço do czar. Depois cometeu os erros que todos conhecemos, a repressão, as "limpezas" e tudo aquilo. Lênin era o gênio, morreu relativamente jovem, mas teria podido... Nem sempre a teoria ajuda. Na época da construção do Estado socialista, Lênin aplicou desesperadamente, a partir de 1921, a NEP [Nóvaya Economícheskaya Polítika], a nova política econômica Já falamos disso, e eu disse que o próprio Che não simpatizava com a NEP. Mas Lênin teve uma idéia verdadeiramente engenhosa: construir o capitalismo sob a ditadura do proletariado. Lembre-se de que as grandes potências queriam destruir a Revolução Bolchevique, o mundo todo a atacou.
Não se pode esquecer da história da destruição que fizeram naquele país subdesenvolvido; a Rússia era o país menos industrializado da Europa, e Lênin, além disso, acreditava, seguindo a linha de Marx, que não podia haver revolução apenas em um país e que a revolução tinha de ser simultânea em muitos lugares, a partir de um grande desenvolvimento das forças produtivas. Por isso o grande dilema, depois que se estabeleceu essa primeira revolução, foi seguir ou não em frente. Quando o movimento revolucionário fracassou no resto da Europa, não restou a Lênin mais que uma opção: construir o socialismo em um só país, a Rússia. Imagine a construção do socialismo em um país com 80 por cento de analfabetos e em uma situação na qual teriam de combater todos os que os atacassem, e na qual os principais intelectuais, todos os que tinham mais conhecimentos, se retiraram ou foram fuzilados. Percebe?
Ramonet - Foi uma época terrível, com intensos debates.
Fidel -
NÃO HÁ SOLUÇÕES LOCAIS PORQUE A DOMINAÇÃO É GLOBAL
Ramonet - Você considera que estamos atualmente em um momento de grande confusão ideológica?
Fidel -
A OMC [Organização Mundial do Comércio], o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional estabelecem as regras de uma situação de dominação e exploração de fato, que pode ser escravista, feudal. E muita gente está procurando maneiras de se livrar dessa dominação. Você é testemunha de quantas pessoas foram ao Fórum Social Mundial de Porto Alegre ou de quantas foram a Bombaim em 2004. E nem sei quantos artigos sobre a globalização liberal já li na sua revista [Le Monde Diplomatique].
Também li artigos das publicações norte-americanas, das inglesas, leio todas. Durante muitos anos nossos companheiros selecionavam, de revistas como a sua, derevistas de centro, de revistas de direita também, durante toda a semana, os artigos fundamentais sobre os problemas econômicos. De forma que, sim, podemos dizer que é muito difícil para as pessoas entender os problemas, porque, na maioria dos países, não recebem uma educação econômica, não recebem uma educação histórica, não recebem uma educação política.
Ramonet - Contudo, você não tem a impressão de que a globalização liberal recebeu golpes duros e já é menos arrogante que há alguns anos?
Fidel -
Porque sempre será preciso melhorá-lo. Eu acredito nas idéias e acredito na consciência, nos conhecimentos, na cultura e especialmente na cultura política, tenho uma fé cega nisso. Nós dedicamos muitos anos à formação de uma consciência, e temos uma grande fé, digamos, na educação e na cultura, sobretudo na cultura política. Vivemos em um mundo carente de cultura política. Você deve saber melhor que ninguém, porque lutou para semear uma cultura política em meio a problemas tão complicados como a nova ordem econômica, a globalização neoliberal. O que se ensina, em quase todas as escolas do mundo, são dogmas; até aqui se ensinaram dogmas.
Ramonet - Você é sensível ao problema da proteção do meio ambiente?
Fidel -
Ramonet - Você acredita que não se sabia, ou não se queria saber, porque havia uma confiança cega na ciência e na técnica?
Fidel -
Hoje, sem que no entanto tenham cessado ameaças desse tipo, um perigo adicional, aterrador e dantesco a ronda. Você mesmo só deve ter ouvido falar da camada de ozônio e das mudanças climáticas [1] vários anos depois de se ter formado na universidade. São muitos os problemas novos. Hoje se sabe que o petróleo, que foi uma maravilha da natureza, e que levou 300 milhões de anos para se formar, terá liquidadas as suas reservas comprovadas e prováveis em apenas 150 anos... [2] Esse desastre é tão grande como o maior dos desastres ecológicos, porque, se de repente faltar energia, todos os automóveis do mundo vão parar. E ainda não existe um substituto para o petróleo; já se chegou a acreditar que seria a energia nuclear.
Aquelas mesmas pessoas do Clube de Roma diziam que seriam necessários não sei quantos milhares de centrais nucleares, e os territórios contaminados já aterrorizavam, mas ainda incentivavam a energia nuclear.
Ramonet - A França pôde desenvolver sua indústria nuclear, mas o Irã, por exemplo, hoje quer produzir combustível nuclear, e os Estados Unidos não permitem, originando uma crise mundial. Qual a sua opinião sobre essa situação que se criou com o Irã?
Fidel -
Combustível nuclear não são armas nucleares, não são bombas nucleares. Proibir um país de produzir o combustível do futuro é como proibir alguém de explorar petróleo, o combustível do presente e que está destinado a se esgotar. Que país do mundo é proibido de produzir combustível, carbono, gás, petróleo? Com mais de 70 milhões de habitantes, o Irã está-se dedicando ao desenvolvimento industrial e considera com toda a razão que é um grande crime comprometer suas reservas de gás ou de petróleo para alimentar o potencial de milhares de milhões de quilowatts-hora que requer, com a urgência de um país de Terceiro Mundo, seu desenvolvimento industrial. O império quer proibi-lo e o está ameaçando com bombardeios.
Hoje [dezembro de 2005] já se discute na esfera internacional o dia e a hora, ou se será o império ou se utilizará o satélite israelense, do bombardeio preventivo e de surpresa, como no Iraque, de centros de investigação que procuram obter a tecnologia de produção do combustível nuclear. E veremos o que vai acontecer se resolverem bombardear o Irã.
Ramonet - Vocês estão sendo acusados de ajudar o Irã com tecnologia.
Fidel -
Mesmo sendo tecnicamente acessíveis, quanto custaria produzi-las? E de que adianta produzir uma arma nuclear diante de um inimigo que tem milhares de armas nucleares? Ninguém deve ter direito a produzir armas nucleares. E menos ainda o privilégio que o imperialismo assumiu de impor seu domínio hegemônico aos países do Terceiro Mundo e de arrebatar seus recursos naturais e suas matérias-primas.
Já os denunciamos várias vezes. E defenderemos a todo custo, em todos os palanques do mundo, sem nenhum temor ou medo, o direito dos povos de produzir combustível nuclear. Têm de acabar no mundo a estupidez, os abusos, o império da força e do terror, cada vez são mais povos que se rebelam e o império não poderá sustentar o sistema infame que sustenta. Um dia Salvador Allende falou de "mais cedo ou mais tarde", pois acredito que mais cedo ou mais tarde esse império se desintegrará.
Ramonet - De certa forma, essa crise é uma primeira conseqüência do esgotamento atual do petróleo e das mudanças que isso está produzindo.
Fidel -
Essa fonte energética, no entanto, como já vimos, está-se esgotando, e daqui uns 25 ou 30 anos só restará, para a produção em massa de eletricidade além da solar, da eólica, da biomassa etc. , uma fonte de energia fundamental: a nuclear. Porque ainda estamos longe do dia em que o hidrogênio, mediante processos tecnológicos muito incipientes, vai ser a fonte mais adequada de combustível [4] , sem a qual a humanidade não poderá viver. Uma humanidade que adquiriu determinado nível de desenvolvimento técnico. Esse é um sério problema do presente. Assim anda este mundo. Há uma série de problemas ecológicos que nem sequer são conhecidos, as catástrofes avançam uma a uma, e há desastres maiores, como o câncer.
Ramonet - Ou a SIDA.
Fidel -
E agora também apareceu o vírus da pneumonia atípica, a SARS [Síndrome Respiratória Aguda Grave], quando ninguém esperava; ou o da febre do Nilo, que veio do noroeste dos Estados Unidos, evidentemente trazido de algum lugar do mundo; ou a famosa dengue, tão mencionada, que tem quatro formas diferentes de vírus, e a combinação entre eles dá lugar a complicadas doenças como a dengue hemorrágica; e pode se alastrar o vírus da gripe aviária e provocar uma epidemia terrível, inédita... Todos esses problemas não eram conhecidos; hoje se tem consciência de que há uma forte relação entre todos esses temas: economia, indústria, demografia, desenvolvimento, ecologia
Ramonet - Você estabelece alguma relação entre a globalização liberal e a aceleração da destruição do meio ambiente?
Fidel -
Em síntese, acredito que preservar o meio ambiente é incompatível com a política da OMC, concebida para que os países ricos possam invadir o mundo com suas mercadorias sem restrição alguma, e para liquidar o desenvolvimento industrial e agrícola dos países pobres, sem outro futuro senão o de fornecer matérias-primas e mão-de-obra barata; com a ALCA [Área de Livre Comércio das Américas] e outros acordos de livre comércio entre os tubarões e as sardinhas; com a monstruosa dívida externa, que algumas vezes consome até 50 por cento dos orçamentos nacionais, absolutamente impagável nas atuais circunstâncias; com o roubo de cérebros, o monopólio quase total da propriedade intelectual e o uso abusivo e desproporcional dos recursos naturais e energéticos do planeta. A lista de injustiças seria interminável. O abismo se aprofunda, o saque é maior
Ramonet - Devemos desacreditar do ser humano? Ou ainda podemos conservar um pouco de esperança na sua capacidade de deter a corrida para o abismo?
Fidel -
Tudo está associado: analfabetismo, desemprego, pobreza, fome, doenças, falta de água potável, de moradias, de eletricidade; desertificação, mudanças climáticas, desaparecimento de áreas verdes, inundações, ciclones, secas, erosão dos solos, biodegradação, pragas e demais tragédias que você conhece bem. Que resultados conseguimos desde a Cúpula do Rio em 1992? Quase nenhum. Ao contrário. Enquanto o Protocolo de Quioto é vítima de um arrogante boicote, as emissões de dióxido de carbono, longe de diminuir, aumentaram 9 por cento; e as do país mais poluidor, os Estados Unidos, em 18 por cento! Os mares e os rios estão hoje mais envenenados do que em 1992; 15 milhões de hectares de florestas são devastados a cada ano, quase quatro vezes a superfície da Suíça. A sociedade humana cometeu erros colossais e continua cometendo, mas estou profundamente convencido de que o ser humano é capaz de conceber as mais nobres idéias, conservar os mais generosos sentimentos e, superando os poderosos instintos que a natureza lhe impôs, é capaz de dar a vida pelo que sente e pelo que pensa. Assim demonstraram muitas vezes ao longo da história.
Ramonet - Quantos estudantes há em Cuba?
Fidel -
Existem também 169 universidades de saúde pública, 1352 unidades de clínica geral, unidades de saúde e bancos de sangue, nos quais se estudam diferentes licenciaturas associadas à saúde pública. E há quase 100 mil professores entre titulares e assistentes. Muitas pessoas que faziam parte da máquina burocrática das centrais açucareiras e de outros lugares hoje estão dando aula, são professores-assistentes. Entre ambos, estudantes e professores sem mencionar os funcionários das universidades há em torno de 600 mil.
Notas
1- Resistir.info abordou o mito das supostas mudanças climáticas em A fabricação do pânico climático e em Aquecimento global: uma impostura científica
2- O Comandante é excessivamente optimista. O prazo mencionado deve ser reduzido em pelo menos dois terços.
3- O pico da produção petrolífera nos Estados Unidos verificou-se em 1971.
4- Trata-se de um equívoco pois o hidrogénio não é uma fonte de energia e sim um vector. É discutível que na produção do hidrogénio o rácio da Energia Retornada sobre a Energia Investida possa ser superior a um.
[*] Fragmentos da entrevista de Fidel Castro a Ignacio Ramonet, publicada em Fidel. biografia a duas vozes, Boitempo Editorial , S. Paulo, 2006, 636 pgs., ISBN 85-7559-047-2. Tradução de Emir Sader.
Esta entrevista encontra-se em http://resistir.info/ .
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