Não surpreende que a Vila Olímpica esteja sendo considerada praticamente inabitável por diversas delegações estrangeiras, depois de ter custado cinco vezes mais que o previsto. Mas os equívocos de execução da obra, embora vergonhosos para a imagem do Brasil no exterior, são secundários.
O principal, o problema que realmente importa discutir - e que arriscamos perder de vista em meio ao fogo cruzado entre a crítica ferrenha à nossa incapacidade crônica de "fazer bem feito" e o ingênuo apelo ufanista de "torcer pelo sucesso do Brasil" -, o principal, eu vinha dizendo, está no modelo de política que orientou a concepção do projeto olímpico como um todo.
ANTONIO ENGELKE
28/07/2016
Após os Jogos, a Vila Olímpica se transformará num empreendimento imobiliário batizado comercialmente de "Condomínio Ilha Pura". Em entrevista publicada no site da ESPN em julho de 2015, o porta-voz do Ilha Pura, Maurício Cruz, afirmou: "A grande surpresa para os atletas será o fato de ser um conceito diferente das Olimpíadas anteriores. A proposta usual sempre foi fazer a Vila como um alojamento, uma coisa simples, como se fosse uma habitação popular, que depois vira um legado para o Estado vender de forma subsidiada para pessoas que necessitam de moradia. Aqui no Rio, foi dada a sugestão de oferecer uma Vila em uma localização melhor, perto do Parque Olímpico, com apartamentos mais confortáveis, condomínio estruturado, perto da praia e da lagoa, para as delegações verem aquilo que é o Rio. Não fazia sentido colocar a Vila na periferia".
A fala é reveladora em vários aspectos. É sintomático que Cruz tenha assumido que a Vila Olímpica foi construída para que estrangeiros pudessem ver "aquilo que é o Rio". O pressuposto aqui é que a periferia não é o Rio, mas uma espécie de apêndice incômodo e irrelevante da cidade. Quando afirma que "não fazia sentido colocar a Vila na periferia", a pergunta que deve ser feita é: não fazia sentido para quem? Para o poder público? Para a maioria da população? Ou para os "parceiros" da iniciativa privada?
Construídos por um consórcio (Carvalho Hosken e Odebrecht), ao custo de R$ 2,9 bilhões financiados pela Caixa Econômica Federal, os apartamentos, que agora ganham as manchetes dos jornais por sua precariedade, já estão sendo comercializados. Serão entregues aos futuros proprietários, pessoas que poderão desfrutar do prazer de viver num "condomínio estruturado, perto da praia e da lagoa", a partir de janeiro de 2017. Como empreendimento imobiliário para a classe média ascendente da Zona Oeste, que quer conforto, mas não pode pagar o exorbitante metro quadrado da Zona Sul, a Vila Olímpica faz, de fato, todo o sentido.
Em outras cidades que sediaram os Jogos, a construção da Vila Olímpica foi pensada como uma forma de recuperar áreas urbanas carentes, de modo a deixar algum legado substantivo para a população. No Rio, ao contrário, o projeto olímpico foi desde o início concebido como um enorme saco de oportunidades de negócios a serem realizados por meio de Parcerias Público-Privadas. O interesse público, quando cogitado, esteve sempre em segundo plano, e a Vila Olímpica não é o único exemplo disso. Para levar o metrô até a Barra, que tem 300 mil habitantes, foram gastos quase R$ 10 bilhões numa obra que não atende ao principal gargalo de mobilidade urbana do Rio (Zona Norte e Baixada). Segundo o Instituto Pereira Passos, o total diário de passageiros em transportes públicos no município é de cerca de 1,4 milhão de pessoas, sendo 1,3 milhão em ônibus. O metrô poderá levar 300 mil pessoas até o início da Barra - e só. Não chega a 25% das viagens em transportes públicos. Mas, provavelmente, "não fazia sentido" aproveitar a Olimpíada para implementar uma política que atendesse à maior demanda de mobilidade da cidade.
E assim se produz um Rio cada vez mais excludente. Não basta a indignação que acompanha as muitas denúncias de superfaturamento em obras de grande porte ou a ironia que acusa as trapalhadas de sua execução. É preciso avaliar criticamente o quão pouco de interesse público há por trás de sua concepção. Sem esse exercício crítico, qualquer debate sobre o legado da Olimpíada simplesmente não faz sentido.
Antonio Engelke é sociólogo
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