Quem nos representa?

"Talvez, no futuro, alguém observe também que os mitos não são tanto objetos de crença ou descrença; eles são, sobretudo e sempre, a expressão de uma necessidade. E, aparentemente, desde a Grécia antiga até hoje, a gente está sempre precisando de heróis". 

A frase é do psicanalista Contardo Calligaris, na sua coluna na Folha, e poderia ser levada também para a política, onde os heróis são muitos, embora depois a gente descubra que alguns têm os pés de barro.

Na recente viagem que fiz a Rússia, me chamou a atenção o renascimento do culto à personalidade de um líder, no caso Vladimir Putin. Seu rosto está presente na capa de revistas e, o mais interessante, em calendários que são vendidos como registro das múltiplas facetas da sua personalidade

Assim, temos um Putin, sempre jovem e atlético, nas figuras de um piloto de avião a jato, de jogador de hóquei sobre patins, de campeão de judô e de um diplomata.

Ele é o herói que representa a retomada da Rússia como grande potência mundial, fazendo os russos esquecerem os tristes dias que se sucederam à queda do regime comunista.

Stalin foi o mito do grande pai provedor, inacessível em seu palácio, mas capaz de resolver qualquer problema dos russos. Nikita Khrushchev, que o sucedeu, representava o russo (embora fosse ucraniano e não russo) camponês, rústico, mas também astuto e capaz de iludir os mais sábios. Era o regime se abrindo para o mundo, sem qualquer espécie de vergonha em ser representado por um líder capaz de tirar o sapato e bater com ele em cima da mesa, como fez Krushchev numa sessão da Assembléia da ONU. 

O mundo mudou e os russos precisaram de um líder mais pragmático e preocupado em organizar burocraticamente a vida do paí. Então, Leonid Brezhnev tomou o lugar de Krushchev.

Quando os novos tempos fizeram os russos - protegidos por um sistema que lhes garantia saúde, educação e pleno emprego - idealizar uma outra sociedade, onde o consumo seria igual aos modelos da Europa Ocidental e dos Estados, os russo imaginaram que poderiam ser representados por Mikhail Gorbachev e suas fantasias da Perestroika e da Glasnot.

O mito era falso e logo os russos perderam tudo, da segurança anterior, ao sonho do consumo ocidental, que agora com Putin, começam a retomar.
Não precisaríamos ir à Rússia para identificar a presença desses heróis mitológicos que surgem em determinados momentos para representar algum tipo de necessidade dos seus povos.

Na Bolívia, com a maior parte da população de origem indígena, foi preciso surgir um presidente originário da etnia uru-aimara, Evo Morales, para que se compatibilizasse o povo e sua real representação, no poder.

No Uruguai, branco, educado e com uma longa tradição de enfrentamentos da esquerda com as oligarquias rurais, quem encarnou melhor o espírito revolucionário e popular foi Pepe Mujica, saído do cárcere de Punta Carretas para a Presidência do País.
Conhecido e respeitado no mundo inteiro pela frugalidade dos seus hábitos e seu comportamento anti-convencional, me surpreendi no Uruguai com o depoimento de uma pessoa, aparentemente da classe média., sobre ele.

Ela dizia que como presidente de um país com altos níveis de educação, Mujica deveria assumir uma postura mais adequada ao seu cargo e que ela se sentia de alguma maneira envergonhada pelas suas atitudes públicas.

E, como ficamos nós, com os nossos heróis políticos.
Olívio Dutra, com seus trajes gauchescos, sua bicicleta e seu falar pitoresco, representa o pensamento de todos nós da esquerda?
E o mais carismático de todos, Lula

O líder sindical, que fundou um partido e chegou a Presidente, sem perder a linguagem que o povo fala é o melhor representante possível para o pensamento de esquerda do Brasil?

Por que, a maioria dos porto-alegrenses e dos gaúchos, teve a necessidade de um Olívio, primeiro prefeito da Cidade e depois governador do Estado?
Por que, a maioria dos brasileiros, elegeu Lula duas vezes Presidente e se deixaram, vai o eleger pela terceira vez?

Todos esses heróis são autênticos ou são personas criadas para atender nossas necessidades, como pergunta Calligaris

Marino Boeira é jornalista, formado em História pela UFRGS

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey