Leilão de Humor: ironia em alta, a preço de sarcasmo

Os colunistas dos órgãos (eretos) das mídias empresariais não enfocam o caso Charlie Hebdo por outro ângulo que não seja o de "atentado à liberdade de expressão". A ladainha é uma só, parece que estão rezando uma jaculatória como sacerdotes exorcistas, quando os fatos estão montados em complexa engrenagem, trata-se de múltiplas realidades dos fatos.

Fernando Soares Campos

Vale tudo, só não vale botar a mãe no meio; menos ainda, no meio da mãe

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Os colunistas dos órgãos (eretos) das mídias empresariais não enfocam o caso Charlie Hebdo por outro ângulo que não seja o de "atentado à liberdade de expressão". A ladainha é uma só, parece que estão rezando uma jaculatória como sacerdotes exorcistas, quando os fatos estão montados em complexa engrenagem, trata-se de múltiplas realidades dos fatos. As pessoas assistem a fatos verdadeiros, mas desconhecem a verdade dos fatos.

Conheço inúmeros católicos que se indignam contra os profanos, mas acabam se cansando deles e passam a ignorá-los. Em casos assim, observo que os achincalhadores, aqueles que não respeitam a profissão de fé dos seus iguais, ficam urrando sozinhos até se cansarem. No caso do CH, quem se cansou mesmo foram seus próprios leitores, pois estes não viam mais graça alguma naquilo, visto que a comunidade muçulmana em Paris, depois de recorrer à Justiça e perder a questão, já nem dava bola para aquelas coisas de caráter pretensamente humorístico. O CH, vez ou outra, anunciava que a próxima edição seria a última. Aí, os colecionadores corriam às bancas e compravam a "edição histórica". Em artigo publicado no Correio do Brasil, a autora, Marilza de Melo Foucher , insinua que isso era uma forma de o povo francês incentivá-los a não encerrar a publicação. Entretanto, creio que eram, na verdade, apenas colecionadores, ou pessoas que queriam ter um exemplar daquela última edição. Davam adeus, e eles fingiam que acreditavam ser um incentivo a que permanecessem no "mercado".


Hoje, do Deutsche Welle, no MSN notícias:

 

- Usuários de site de leilão tentam lucrar com caso "Charlie Hebdo"

 

Exemplares da última edição do semanário satírico Charlie Hebdo, que se esgotou em poucas horas em toda a França na quarta-feira, estão sendo oferecidos no eBay por milhares de euros. O autor da frase "Je suis Charlie" também afirmou na quinta-feira (16/01) que vai patentear a expressão, para evitar que ela seja usada comercialmente.

O site de vendas e leilões teve um vendedor oferecendo a nova edição do Charlie Hebdo por 15 mil euros para compra imediata, em comparação com o preço de capa de apenas 3 euros.

Não se sabe se a oferta é séria, e se o vendedor realmente possui o jornal. Muitos vendedores no eBay estão oferecendo a edição pós-atentado do semanário a preços de cerca de 100 euros. A edição do dia do atentado, 7 de janeiro, pode ser encontrada no Ebay por preço em torno de 800 euros.

 

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Quanto a alguém criticar ou mesmo ironizar religiões, eu até admito que o faça de forma cáustica, mas enfocando apenas o comportamento contraditório "de religiosos", indivíduos, principalmente se esses o atacam e criticam sua heresia ou ateísmo, tentando convencer os seus pares, fiéis religiosos, de que aquele lá é, por exemplo, um demônio, ou um anticristo, meramente por ser ateu ou herege. Nesse caso, o humorista ou escritor tem o direito de ridicularizar "o religioso", carola, papa-hóstia, beata... mas, não, a religião em si e suas divindades ou seus ícones. Pode caricaturar o indivíduo diante das supostas divindades que ele reverencia, ou em vista dos seus rituais, mas nunca tendo como alvo a própria divindade, aquilo que é considerado "sagrado"; pois, nesse caso, ele não estará criticando ou ridicularizando um único ou alguns seguidores da religião; mas, sim, todos, sem exceção.

Padres, freiras, bispos, pastores, babalorixás, rabinos, enfim, qualquer dessas pessoas consideradas lideranças espirituais, assim como seus liderados, estão sujeitos a críticas, ironias e até sarcasmos. Nunca, a divindade, o "sagrado", pois assim estaremos incorrendo no erro da generalização, que é mãe do preconceito. 


Se alguém caricatura Jesus na Santa Ceia, em que foi servido pão e vinho, chama aquilo de "Golgota Picnic" e atribui a fala "À Table" ao personagem Jesus, isso implica responsabilizar Jesus pelo comportamento dos maus cristãos, os exploradores da boa-fé dos seguidores do cristianismo, os caça-níqueis. Mas, se no lugar de Jesus ele retrata o Papa, um cardeal, bispo, padre ou pastores, sentados à mesa servida fartamente, à maneira dos banquetes das cortes do império romano, assim o autor estará satirizando a ostentação dos clérigos. Politicamente correto, sem precisar apelar para o ataque à religião.

Porém, quando coloco a divindade como personagem, uso suas falas para ironizar o comportamento contraditório do religioso. Tento fazer os "túmulos caiados por fora" vomitar os ossos que abarrotam seus estômagos podres.

Quanto à crítica de comportamento social, acredito que esta pode ser feita mirando-se os ídolos e/ou os idólatras.

Essa coisa de dizer que "nem todos entendem o Humor francês!", com maiúscula, como escreveu a articulista publicada no Correio do Brasil, eu até que aceito, pois nem todos os franceses entendem o Humor brasileiro. Já contei várias piadas em rodas que tinha francês que falava bem o português, e ele voou, não entendeu patavina, foi preciso explicá-la. Certamente isso ocorre em função dos valores culturais de cada povo. Porém, se a gente trata de humor com qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo, referindo-se à figura de linguagem predominante no humor, a ironia, há que se considerar o grau de causticação empregado. Em geral, quando a ironia extrapola para o mais grosseiro sarcasmo, o humorista está subestimando a inteligência do leitor. Ironia precisa ser tão sutil que o ironizado só se dá conta de que está sendo gozado (zoado) tempos depois. Há casos em que ele até acredita que está sendo elogiado.

Fausto Wolff, jornalista, romancista, contista e humorista nas horas vagas de grana, não era dado a elogiar à toa, mas certa ocasião me falou que gostava do meu humor porque observava que eu não costumava extrapolar para o sarcasmo. Disse ele que, no seu entender, meus escritos limitavam-se ao ponto exato da ironia. Mas acho que outras pessoas são mais realistas quando dizem que às vezes pego pesado. Até concordo, mas só parto para cima de pesos-pesados, nunca contra os oprimidos, mesmo reconhecendo neles alguns arremedos de comportamentos dos opressores. Bater nos mais fracos é covardia.

Lembrei-me de um caso no velho Pasquim, o original. O jurista Sobral Pinto concedeu entrevista ao Pasquim e, na semana seguinte, estava indignado com o nosso hebdo, por causa de uma charge cujo personagem era Jesus. Ele chegou a "amaldiçoar" o jornal, disse que, se soubesse que viriam a cometer tão infame profanação, não teria concedido a entrevista. Foi preciso Jaguar escrever uma nota explicando a ele qual o viés da charge, a quem se destinava e o objetivo do humor em geral. Sobral Pinto aceitou as explicações, como quem entendeu a piada atrasado, à base do "Ah, sim, sendo assim, tudo bem".


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Se o leitor aqui acredita em coincidência, eu não acredito. Releia aquele trecho em que falo sobre caricaturar personagens à maneira da Santa Ceia, ou Última Ceia. Releu? Bom, então, tá. Agora veja. Depois de escrever tudo isso aí em cima, acabo de ler sobre o mural que o Ziraldo pintou em 1967, com a colaboração de alguns amigos, numa das paredes do Canecão, antiga casa de espetáculos aqui do Rio. O trabalho ficou conhecido como "Santa Ceia", mas "Ziraldo desmente a polêmica de que o mural retrate uma versão carioca da Santa Ceia, que rendeu críticas na época da ditadura militar de que a obra seria muito transgressora."

E ele conclui:

"Um pedaço do mural, que não é nem um quinto dele, tem um monte de gente em uma mesa grande comemorando. Mas eu nunca falei que era ceia. Eu apenas arrumei os convivas da mesma maneira que Leonardo da Vinci arrumou os apóstolos na mesa. Mas como era uma coisa muito impactante, ficaram chamando o mural de 'Última ceia'. Mas não é. É o mural do Canecão", explica o artista, complementando que a pintura nada mais é do que uma homenagem ao estilo carioca.

"Tem a Arca de Noé com os bichos, tem os Arcos da Lapa, tem a vista do Papa ao Rio de Janeiro. Tem as cariocas chegando para a festa, animadíssimas. Tem o cara celebrando na mesa de bar. Tem o sujeito de porre, tem o cara dando cachacinha para o santo. Tem toda uma visão brasileira sobre o ato de beber. Não tem ninguém comendo. Estão todos comemorando. Tem muitos brindes", explica Ziraldo, que não mede palavras para falar como a notícia de que a obra será restaurada o deixou feliz.

"Para mim, foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. É mais emocionante do que pintar o mural". ("Ziraldo celebra restauração de mural conhecido como 'Santa Ceia', G1, 16/01/2015.)

Mesmo que Ziraldo assumisse a intenção de relacionar o mural a uma sátira da Santa Ceia, ele não estaria profanando a "cena sagrada" dos cristãos, especialmente dos católicos, que são apontados pelos protestantes como adoradores de imagens. Ziraldo poderia até ter colocado no centro da mesa a imagem do Cristo Redentor de braços abertos no alto do morro do Corcovado, ainda assim sua arte não poderia ser considerado profana; pois, nesse caso, representaria a própria fé dos festeiros ou convivas, como a imagem de São Jorge em muitos botequins cariocas.

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey