Gilson Caroni Filho
Quem analisa os movimentos sociais a partir de uma perspectiva que leva em conta a contingência e a subjetividade dos atores, sem esquecer os aspectos históricos e institucionais, não ignorou o objetivo do enquadramento da cobertura que a grande imprensa fez tanto do 51º Congresso da UNE ( União Nacional dos Estudantes) quanto da participação do presidente Lula em sua abertura.
O tom sarcástico dos títulos ("Patrocinada pela Petrobrás, UNE faz manifestação contra CPI"- Folha de São Paulo,16/7) e o coro unificado de articulistas, relacionando o patrocínio público a entidades estudantis com aparelhamento de sua pauta de reivindicações, não deixam margem para dúvidas: o Estado-Maior das redações não mediu esforços para projetar o movimento como setor social cooptado politicamente pelo governo.
Não foi gratuito o destaque dado ao cândido" senador Cristovam Buarque (PDT-DF) que, contrapondo ingenuidade e oportunismo, afirmou que o " problema da UNE não é que tenha se vendido, mas sem dúvida se acomodou. Há um silêncio reverencial dos jovens que deveriam apoiar qualquer CPI". Perdeu uma ótima oportunidade de ficar calado.
Finge não saber que os movimentos sociais aprenderam a dialogar com o governo sem perder a autonomia, sua identidade específica. Ignora uma trajetória de lutas que sempre conjugou funcionamento democrático das instituições com a universalização do ensino superior público, a regulamentação do ensino privado e a garantia de métodos de avaliação socialmente referenciados. Graças a isso não caiu na armadilha neoliberal da ideologia antiestal da liberdade" e, apesar do refluxo dos anos 1990, foi capaz de articular suas demandas específicas com a de outros setores.
O que o senador brasiliense e a imprensa parecem desconhecer é que no 47ª Congresso, realizado em 2001, o PSDB surgiu, como relata Clóvis Wonder para o jornal A Classe Operária", pedindo " uma CPI para a UNE, com o objetivo claro de confundir os estudantes e abrir uma cortina de fumaça para proteger o governo FHC, saiu amplamente derrotado no congresso. Os estudantes majoritariamente rechaçaram suas intervenções no evento e derrotaram suas propostas". É estranho que Cristovam Buarque, então quadro político do PT, não soubesse que os jovens não apóiam qualquer CPI.
A UNE nasceu em 11 de agosto de 1937, coincidindo com a instauração do Estado Novo. Combater regimes autocráticos foi, desde sempre, sua marca constitutiva. Em 1947, no 10ª Congresso, os estudantes lançaram manifestos nacionalistas que dariam origem a uma das maiores campanhas popular do país: a do O petróleo é nosso". Como conseqüência dessa mobilização, em 1953, seria criada a Petrobrás, empresa estatal que, até o governo tucano, detinha o monopólio da exploração do petróleo no Brasil. Há algum desvio quando a atual gestão se opõe a uma CPI que trará imensos danos à estatal? É a isso que a grande imprensa chama de direção chapa-branca? Esse é motivo da estupefação do sempre ético Cristovam?
Seus principais documentos sempre afirmavam que era necessário apoiar as empresas nacionais, dando-lhes privilégios em termos de crédito, legislação e recursos técnicos; reclamavam a realização de uma reforma agrária e o desenvolvimento do mercado interno como forma de estimular a economia brasileira. Uma questão fundamental para os interesses do país, segundo os estudantes, era a adoção de uma política externa independente.
Excetuando a questão agrária, onde ainda há muito que avançar, qual o motivo para a UNE se opor ao governo Lula? Projetos como o Reuni e o Prouni que, respectivamente, ampliam as universidades públicas e concedem bolsas em instituições de ensino privado a estudantes carentes não contemplam reivindicações antigas da entidade? Por que o diálogo desrespeita a autonomia que o movimento estudantil deve guardar em relação aos poderes instituídos?
Não deixa de ser engraçado como é articulada a crítica na grande imprensa. A base de comparação é sempre com uma antiga UNE, aquela que "orgulhava a cidadania". Seria o caso de perguntar quando surgiu essa admiração dos senhores da mídia pela organização ? Em 1964, estavam em lados opostos. Após sua reconstrução em 1979, ao contrário da grande mídia, a UNE marcou presença nos movimentos de oposição ao Regime Militar, lutando na campanha pela anistia. Em 1981, comandou uma greve nacional diante da recusa do Ministério da Educação em atender a uma pauta de reivindicações. Em 1984, enquanto as corporações midiáticas sabotavam a campanha das diretas-já, os estudantes engrossaram a mobilização popular. A grandeza da UNE se fez na contramão da pequenez de uma imprensa que teima em reescrever a história. E esse dado não é irrelevante para a apreensão da atual conjuntura.
O movimento estudantil não perdeu sua identidade. Como analisou a estudante de jornalismo, Débora Pereira, para a revista Carta Capital a UNE deixou de fazer resistência ao projeto neoliberal para passar a fazer proposições. Mudou a relação do movimento social com o estado Com isso ela não disse que cessaram agendas e temas de luta.
Estão presentes, como imperativos para a consolidação da democracia, a extinção do monopólio dos meios de comunicação, o fim da Desvinculação dos Recursos da União, a abertura imediata de todos os arquivos da ditadura militar e punição de todos os crimes cometidos pelo regime, entre outros. Essa agenda coincide com os editoriais de qual jornal? Quem define a cor da chapa? Qual a tonalidade de cada um?
Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil
http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4406
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