Crianças morrem por falta de atendimento na Resex do Riozinho do Anfrísio (PA)
No domingo, 17 de junho, Reginaldo Pereira do Nascimento e Maria Maura da Silva saíram de casa para procurar atendimento médico para a filha caçula Jamara, de dois anos.
Apesar de morarem numa localidade com o sugestivo nome de Boa Saúde, tiveram de remar por um dia inteiro até chegar ao único profissional capaz de dar algum tipo de assistência num raio de centenas de quilômetros: um microscopista, que poderia pelo menos identificar a causa da febre alta e dos caroços apresentados pela menina há três dias, entre outros sintomas de malária. Mas o técnico estava fora, em treinamento.
Reginaldo pediu socorro por rádio ao escritório do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) de Altamira (PA), município mais próximo, a quatro dias de barco.
A vida de minha filha está entregue a Deus, disse ao funcionário que o atendeu. A equipe do órgão estava indo para a área por outros motivos. Quando chegou, não havia mais o que fazer. A menina morreu na sexta-feira, 22 de junho. Os pais têm outros cinco filhos. A família é toda analfabeta. Maria Maura está grávida mais uma vez.
Jamara é a segunda criança que morre por falta de atendimento na Reserva Extrativista (Resex) do Riozinho do Anfrísio em pouco mais de um mês. Em maio, um bebê de 1 ano faleceu com os mesmos sintomas. Em janeiro de 2006, outro, de um ano e oito meses, morreu em decorrência de vômito e diarréia às margens do Rio Iriri, onde há outra Resex.
Assistência zero
Muita gente tem morrido. A assistência ali é zero, denuncia Patrícia Greco, chefe da Resex do Riozinho do Anfrísio. Ela afirma que a prefeitura tem sido omissa para resolver o problema e que o Ibama é praticamente o único órgão público que está atuando no local. O transporte de doentes tem sido feito em caronas nas poucas operações de fiscalização. Por apenas duas vezes uma equipe de saúde esteve na área, em 2005 e 2006. Da primeira, por iniciativa da Fundação Viver, Produzir e Preservar (FVPP) e da segunda, do Ibama, que trouxe um médico de Brasília. O município ajudou com técnicos e remédios.
São comuns casos de doentes em estado grave, sobretudo crianças que morrem por falta de transporte ou chegam na cidade já sem chance de sobreviver. Além da malária, também têm sido frequentes sintomas de diarréia, anemia, verminoses, hepatite, doenças de pele e até hanseníase. Sem técnicos, não é possível nem mesmo fazer diagnósticos precisos e dizer se já há alguma epidemia. O microscopista só identifica malária. A Resex do Riozinho do Anfrísio também conta com dois agentes comunitários de saúde. Os três são pagos pela prefeitura, mas não podem fazer muito em casos mais graves. Os 257 moradores estão indignados com a situação.
A lei estabelece que a maior responsabilidade pela assistência à saúde é dos municípios. Os governos federal e estadual devem formular as políticas do setor, transferir e fiscalizar recursos.
O mesmo está acontecendo com cerca de 150 famílias que vivem na Resex do Iriri, na Estação Ecológica da Terra do Meio, no Parque Nacional da Serra do Pardo e na área destinada à Resex do Médio Xingu, todos localizados na Terra do Meio, no centro do Pará. A criação das Unidades de Conservação (UCs), nos últimos dois anos, foi um passo fundamental na luta contra a ação de fazendeiros, grileiros e pistoleiros que tentam invadir as terras dos moradores. A região é considerada de alta importância para a conservação pelo governo federal.
Patrícia informa que o Ibama fez apenas uma expedição à Resex do Riozinho do Anfrísio este ano, em março, para continuar os trabalhos de implantação do conselho deliberativo e do plano de manejo, fundamentais para a consolidação da UC. Em novembro do ano passado, ocorreu outra expedição com o mesmo objetivo. Esta semana, os moradores estão em Altamira para discutir a formação do conselho. As ações de campo estão paralisadas por causa da greve do Ibama. Em 2006, o órgão realizou quatro operações e alguns sobrevôos de fiscalização.
Parceria com CR Almeida
Dois dias antes da morte de Jamara, expirou o prazo definido em uma liminar concedida pela Justiça Federal para que a prefeitura preste atendimento pelo menos uma vez por mês aos habitantes da Terra do Meio. A decisão impede que a administração de Altamira gaste recursos com propaganda enquanto a situação continuar a mesma. Como nada foi feito, o Ministério Público Federal (MPF), autor da ação, pediu um novo prazo, que termina amanhã, para que a prefeita Odileida Sampaio (PSDB) e o secretário de Saúde, Francisco Armando Alvino Aragão, provem que estão dando assistência aos ribeirinhos. Eles estão sujeitos a pagar R$ 5 mil cada um caso não cumpram a determinação.
Aragão garante que tenta firmar acordos há mais de oito meses com o Ibama, o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e o Exército para prestar o serviço, mas sem sucesso. Apenas a Funai (Fundação Nacional do Índio) teria disponibilizado um barco. O secretário acabou encontrando uma outra alternativa. "Vamos fazer uma parceria com a CR Almeida, partir de julho", conta. A empresa é apontada pelo MPF como responsável pela maior grilagem de terras da história do País. Ela se diz dona de um império de quase 6 milhões de hectares e vem agindo para impedir a criação de UCs na região. Tem inclusive transportado doentes e distribuído remédios para cooptar a população.
Alvino Aragão assegura que a gestão local patrocinou a primeira equipe médica enviada ao Riozinho do Anfrísio e que sempre oferece ao Ibama profissionais e medicamentos, que seriam os itens mais caros da assistência de acordo com o secretário. Ele argumenta que os cerca de R$ 15 milhões destinados por ano à Saúde de Altamira não são suficientes porque são gastos também para atender a população de outros dez municípios.
As distâncias envolvidas e a seca dos rios da região dificultariam e encareceriam as ações de campo. É muito fácil dar uma canetada e dizer que temos de realizar atendimentos mensais. Só quem não conhece nossa região acha que isso pode ser exigido. Sobre a morte da menina Jamara, afirma que não é só lá [na Resex] morrem pessoas. Em outras localidades, isso também está acontecendo.
Considerado o homem forte da prefeitura, o secretário chegou a ser preso no final de março pela Polícia Federal na Operação Antídoto, suspeito de participar de um esquema de fraudes em licitações na compra de medicamentos. Só não foi encarcerado porque conseguiu um habeas corpus. Aragão é acusado de desvio de recursos públicos para financiamento de campanha eleitoral e formação de quadrilha, entre outros. Dono de um hospital, é citado em outros processos conduzidos pelo MPF. Apesar disso, está sendo mantido no cargo.
A Operação Antídoto prendeu 27 pessoas incluindo dois ex-secretários de Saúde do Amapá, funcionários públicos e de empresas em Macapá, Belém, Fortaleza, Altamira e Tartarugalzinho (AP). Pesam sobre o grupo acusações de corrupções ativa e passiva, fraudes em licitação, tráfico de influência, inserção de dados falsos em sistema de informação público e lavagem de dinheiro. Teriam sido desviado mais de R$ 20 milhões de verbas públicas da compra de remédios, entre 2003 e 2006.
Recursos para propaganda
Patrícia Greco, do Ibama, explica que, além dos medicamentos e servidores oferecidos pela Secretária de Saúde, as ações em campo também exigem uma embarcação e o pagamento de diárias, alimentação, combustível, equipamentos e insumos. Daí a dificuldade de aceitar a parceria proposta pela prefeitura. A funcionária do Ibama informa que somente de agosto a outubro o acesso às comunidades torna-se um obstáculo ao trabalho, mas nos outros meses do ano, não.
Segundo o procurador federal em Altamira, Marco Antônio Delfino, existem recursos no orçamento municipal para realizar os atendimentos. Ele aponta que a prefeitura teria gasto R$ 561,4 mil em propaganda, em 2005 e 2006. Outros R$ 680 mil teriam sido gastos no parque municipal de exposições, em 2006. Delfino avalia que, além da falta de atendimento, a ausência de vacinação, condições precárias de higiene e quase 100% de analfabetismo estão transformando doenças facilmente controláveis em ameaças às comunidades da Terra do Meio. Disponibilizar um barco e combustível em alguns pontos estratégicos da Resex já faria grande diferença. Mesmo a retirada de doentes por via aérea não seria tão cara comparativamente. A viagem por barco sai por R$ 1,8 mil e por avião, R$ 2,5 mil.
A Resex do Riozinho do Anfrísio foi decretada em novembro de 2004 com 736 mil hectares. Mas não basta só decretar. Se não existirem políticas de implementação, não adianta, critica Antônia Melo, integrante da FVPP e coordenadora do Grupo de Trabalho Amazônico (GTA). Ela cobra uma ação conjunta do Ibama, prefeitura e outros órgãos responsáveis pela saúde das populações ribeirinhas.
A prefeita Odileida Sampaio e o secretário Francisco Armando Alvino Aragão também são acusados pelo movimento social de dificultarem o controle social da gestão da Saúde. Na semana passada, a prefeitura aprovou na Câmara de Vereadores uma lei que restringe a participação de organizações da sociedade civil no Conselho Municipal de Saúde de Altamira. A norma retirou do colegiado associações que tinham uma posição independente em relação à administração. Elas prometem pedir ajuda ao MPF para reverter a situação.
Mais informações:
Oswaldo Braga de Souza - (61) 3035-5104 / 8428-6192 / [email protected]
Fonte: www.socioambiental.org
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