A Prisão de Monsatã: haverá torturas boas?
Quando o primeiro-ministro português referiu, em Moscovo, não querer dar lições de Direitos Humanos a ninguém, tinha em mente a autorização para Monsanto funcionar em regime penitenciário falhado faz cem anos? Que mais se prepara sem anúncio ou debate público? Terá algo a dizer a comissão parlamentar fiscalizadora dos direitos, liberdades e garantias em Portugal?
António Pedro Dores
2007-06-22
A multiplicação de intervenções judiciais, quer na área da administração pública quer no domínio da sociedade civil, por questões de ordem financeira e económica, e ainda o agravamento da perigosidade e gravidade das violações da lei penal, não apenas económicas mas sobretudo contra os valores da vida e dignidade humanas, apontam para reconhecer que a sociedade europeia de confiança tende a não ser o modelo em vigor: ( ) [vive-se uma] deriva das sociedades de confiança para a instabilidade crescente,
Adriano Moreira, A Sociedade de Confiança em Diário de Notícias 2007-06-19:10.
Da tortura quer-se distância suficiente, de modo a ser visível o esforço público para a sua erradicação, conforme é obrigação internacional do Estado português por via da ratificação da Convenção contra a Tortura da ONU. Não deve haver nenhuma ambiguidade, controvérsia ou ténue demarcação entre o que seja ou não tortura. Porém, a recente abertura da cadeia de Monsanto traz para a actualidade portuguesa a discussão miserável e decadente das fronteiras legais da tortura. Em vez de se estimularem as instituições e os funcionários a manterem distâncias suficientemente claras e inequívocas de situações que possam aparentar tortura, é-nos imposta a questão sobre os tipos de torturas toleráveis.
Será tortura impor a sujidade como regra? A lavandaria em Monsanto só trabalha de quinze em quinze dias. Será tortura impor um regime de permanência em cela durante 23 horas? Esse é o tempo máximo de fecho, segundo os padrões internacionais. Será tortura impedir o contacto físico entre os detidos e as visitas? Nos países mediterrânicos as pessoas cumprimentam-se tocando-se, com apertos de mão, abraços e beijos. Será tortura impor algemas sempre que o detido sai da cela, por exemplo para telefonar com uma mão atrás da outra a segurar o auscultador? Será tortura impor a solidão radical, incluindo na hora do magro recreio? O mórbido definhamento físico e moral por insuficiência de exercício incluindo a impossibilidade de trabalhar é um crime contra a integridade física?
A solidão foi regra primeira utilizada no tempo de Alexis de Tocqueville para assegurar a penosidade das penas de prisão: concorriam com as penas de degredo e de estigmatização física, ao uso na época. A doutrina da solidão foi abandonada posteriormente, uma vez assegurada a hegemonia da prisão como pena de referência e quando se tornaram evidentes os resultados monstruosos da sua aplicação na saúde dos detidos. Facto é que se considerou, mais recentemente, o uniforme prisional uma forma de humilhação desnecessária, a evitar. Será tortura fazer abrir sistematicamente a boca dos reclusos para supostamente assegurar não se esconder aí nada de ilícito, na hora das visitas, separadas dos reclusos por vidros inquebráveis? Desconfiarão de que a oportunidade possa ser usada pelos próprios guardas vigilantes dos reclusos nessas audiências? Será tortura vasculhar o interior do corpo do recluso quando a uma autoridade administrativa qualquer lhe apeteça? É isso feito nas alas livre de droga?
Porque se chamará de alta segurança uma cadeia para onde se levam detidos para serem sujeitos à experimentação dos limites da tortura? Percebe-se a segregação dos presos mais odiados pelos serviços. Para organizar a retaliação covarde contra quem dá mais trabalho, por incapacidade de adaptação ou problemas mentais, segundo o critério arbitral de quem seja encarregue de encher a nova cadeia, em tempo de sobrelotação. Tais castigos, na prática atenção também afectam guardas e outros funcionários, cujo equilíbrio emocional como seres humanos fica afectado por situações de terror, ainda que nelas colaborem impunemente. Na realidade, como mostram as experiências dos campos de concentração alemães, todo um povo fica afectado quando admite às instituições a aplicação de políticas imorais, mesmo quando não são assumidas publicamente.
A arbitrariedade dos castigos informais (sem registo) passou a estar (ilegalmente) institucionalizada em alas de (in)segurança em diversas cadeias pelo país fora, desde o ano 2000. Foi um prelúdio do que se passa agora em Monsanto. A lei permite castigos de isolamento com um máximo de 30 dias. Nas alas de segurança pode ficar-se anos, sem nunca se saber quando dali se sai porque, malvadamente, não são informados os reclusos de quando lhes acaba a pena. É um castigo diário de expectativas frustradas: será tortura?
As alas de (in)segurança não impediram os homicídios nem os suicídios. Pelo contrário: há registo de denúncias de tortura em alas de segurança que valeram ao denunciante ameaças de morte: só não foram concretizadas como aconteceu noutros casos porque as autoridades foram informadas da situação a tempo e decidiram proteger a pessoa dos denunciados. Encontrámo-la, entretanto, mentalmente fragilizada e doente no Hospital Prisional. Pudera!
Vale de Judeus era, até agora, a única cadeia de alta segurança portuguesa. (A criminalidade e as condenações são baixas, como as penas previstas por lei, limitadas ao máximo de 25 anos. Da inexplicavelmente longa duração média efectiva das permanências na prisão 3 vezes a média europeia resulta uma das mais altas taxas de encarceramento da Europa Ocidental). Monsanto inaugura fora da lei uma época de terror ameaçador para os presos contestatários das ordens e arbitrariedades da administração. Tal estratégia jamais funcionou em pacificação nem das prisões nem da sociedade.
Foi precisamente em Vale de Judeus que ocorreram uma séria de homicídios no Outono de 2001. Quiçá por causa da segurança ser alta, o julgamento dos casos ainda não foi feito, mais de cinco anos depois. Porque a PJ nunca descobre nada nas prisões, como explicou um antigo alto responsável dos serviços prisionais. Também na China não é por se condenarem à morte pessoas acusadas de corrupção que a corrupção vai acabar, como é evidente a esta distância. É portanto certo: além do terror, mais nada restará desta triste iniciativa do Estado português, a não ser a nossa vergonha colectiva por termos aceite os dedos pelo corpo a dentro. Segurança resultará, antes de mais, de transparência, da assunção de responsabilidades e da viabilização da confiança nas instituições.
Quando o primeiro-ministro português referiu, em Moscovo, não querer dar lições de Direitos Humanos a ninguém, tinha em mente a autorização para Monsanto funcionar em regime penitenciário falhado faz cem anos? Que mais se prepara sem anúncio ou debate público? Terá algo a dizer a comissão parlamentar fiscalizadora dos direitos, liberdades e garantias em Portugal?
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