Exclusivo: Paulo Fidalgo sobre Europa

Foi a partir do momento em que Rosa de Luxemburgo e os espartaquistas de Berlim foram passados pelas armas da polícia e das tropas governamentais em 1919, e se deu o consequente refluxo na revolução alemã, que a ideia internacional construída ao longo do século XIX entrou em crise.

A Revolução deixou de ser encarada como processo comum às nações dominantes, sobretudo europeias, e deslizou lentamente para a ideia de que países periféricos poderiam encetar a gesta revolucionária pelos seus próprios meios, se tivessem força, e condições demográficas e geográficas suficientes. Foi o caso da Rússia e da China.

Porém, a passagem de um paradigma internacional para um paradigma nacional no campo revolucionário, conteve alguns deslizes tácitos nos objectivos da revolução. Que não foram inteiramente assumidos ou discutidos.

A revolução podia e continuava a ser chamada de socialista, um conceito fundamentalmente ligado originalmente a relações de produção específicas entre mulheres e homens na organização da economia, e menos centrado nas questões de Estado-nação, de poder ou de propriedade, apenas. Na realidade, porém, à semântica revolucionária passou a corresponder um ideal modernizador e desenvolvimentista sem uma ligação explícita a um formato concreto de relações de produção, naquilo que pode ser olhado como ênfase no crescimento da chamada base material da economia, máquinas e capital fixo, com consequente desvalorização do lado socialista das relações de produção. Com o evidente propósito aliás de capturar e de imitar o patamar do capitalismo desenvolvido do que de o superar verdadeiramente. Passou-se da ênfase na mudança das relações de produção para a ênfase na maquinaria e tecnocracia.

Um segundo deslize consequente à quebra da perspectiva internacionalista, é o de que a busca de modernização teria obrigatoriamente de ser alcançada pelo Estado motor da economia, algo de muitíssimo desviado do ideal libertário profundamente presente em Marx, Engels e Lenine e que aponta à extinção do Estado, a favor da sociedade civil de produtores auto-organizados. Substituiu-se a ideia de emancipação dos assalariados a favor de uma economia de produtores livremente associados, conforme consta do manifesto do partido comunista, por troca com uma economia composta ainda e sempre de assalariados, mas empregados do Estado, a trabalhar sob sua tutela, e a produzir excedentes para seu controlo e usufruto.

Um terceiro deslize foi a recuperação e até o encarniçamento da perspectiva nacional. A revolução no século XIX estava ligada à própria caducidade da moldura nacional de organização do capitalismo e dos povos, proclamando enfaticamente a ideia de se construir uma humanidade verdadeiramente universal, sem nações (e até contra as nações). Sem “nada porque se morra ou porque se mate”, segundo os versos da canção “Imagine” de John Lennon. Com a crise de Berlim, a moldura nacional passou a ser lida como plataforma motriz do próprio processo revolucionário.

Estaline como o seu “A Questão Nacional” contribuiu para o generalizado deslize nacional do movimento revolucionário, ao proclamar que o nacionalismo é revolucionário, mesmo que orientado apenas para a imitação dos preconceitos do Estado-nação presentes na metrópole colonial. O internacionalismo deixou portanto de representar a superação da forma Estado-nação, fenótipo e vestimenta indeclináveis do capitalismo, antes foi substituído por um ideal de nações iguais em direitos e porventura solidárias, mas ainda assim e sempre nações como tal. Em resumo, da ideia internacionalista enquanto conceito de superação da própria noção nacional, passou-se a uma ideia internacionalista como fenómeno de perpetuação do Estado-nação com contratação entre nações mais ou menos iguais.

O caminho nacional para a revolução socialista, que acabei de desenhar, entrou em crise com o colapso da perspectiva socialista na Rússia e ao que indicam muitos observadores, também na China. E entrou em crise também com o refluxo da revolução portuguesa, que se posicionou sempre como caminho nacional para o socialismo, embora ancorado na solidariedade dos países socialistas e dos governos progressistas do terceiro mundo. Na perspectiva portuguesa, seria sempre o socialismo de construção nacional sem que a supranacionalidade europeia, nela jogasse o que quer que seja. Essa linha foi manifestamente posta em causa pela evolução da revolução portuguesa na guinada que aconteceu no 25 de Novembro de 1975 e com a posterior adesão à CEE.

A reflexão que acabei de enunciar sobre as características do caminho que entretanto se tornou obsoleto, não foi manifestamente feita, embora o militante prático sinta que é preciso agarrar o momento político actual de outra maneira e tenda por isso a deslizar empiricamente do anterior nacionalismo de esquerda para um apoio a uma ideia supranacional, considerada mais ou menos incontornável. O empirismo não é contudo um método aceitável para a definição de uma orientação política.

Constata-se que a forma de organização capitalista supranacional na Europa apresenta vantagens de desenvolvimento produtivo e de modernização, condições a que sempre se associaram, no marxismo ortodoxo, com a ideia de base material indispensável à edificação socialista. Por isso, a ideia supranacional na Europa, e noutros lugares, tem força deatracção por conter uma promessa de desenvolvimento económico, o que quer que isso queira dizer, e de melhoria das condições de vida.

Embora no concreto, o progresso material tenha coincidido com o crescimento das desigualdades. Por isso, um programa renovado da esquerda não pode, diz o militante atento, não pode direi ainda, ignorar a força de atracção que a supranacionalidade tem para os trabalhadores enquanto esperança de mais progresso. Essa força é uma vantagem na maturação da consciência internacional dos trabalhadores e não pode ser encarada como desvantagem ou rendição à ideologia burguesa. Força de atracção essa que é claro, está muito para além das ideias nacionalistas que perduram numa grande parte da esquerda, e que sobretudo está muito para além daquilo que o capitalismo institucionalizado na União Europeia, pretende admitir como limitada evolução supranacional.

Finalmente, emerge na esquerda a ideia que a supranacionalidade tem mais a ver com o socialismo, do que propriamente com algo que os capitalistas queiram construir, para além de uma retórica que fica muito bem dizer em certos fora, sobretudo nas reuniões de líderes dos países quando trocam flutes de champanhe. Neste sentido, a supranacionalidade pode ser um projecto que retoma o velho sonho internacional dos trabalhadores, e que apenas se encontra aprisionado nos meandros e nos sistemas de controlo do nacionalismo burguês e do seu sucedâneo de sistema de Estados coligados e hierarquizados em torno do directório europeu.

Deste conjunto de pressupostos podemos dizer que a retoma da iniciativa nos pólos desenvolvidos do capitalismo passa por encarar os limites e a caducidade histórica da forma Estado–nação a favor de uma organização autónoma e cooperativa em rede, de índole supranacional, que deveria suceder ao longo período da vigência da forma nacional, enquanto invólucro e vestimenta insubstituível do capitalismo ou dos seus métodos de cartel inter-governamental.

A esquerda está pois confrontada com a retoma da tradição avançada internacionalista, antes aprisionada numa camisa-de-forças de base nacional ao longo do século XX. Neste sentido, passam os trabalhadores a querer um mundo novo a sério, e as burguesias a temer o demasiado pendor internacional que a multidão de explorados exibe cada vez mais num mundo global. A burguesia torna-se progressivamente em travão ao desenvolvimento e emerge a ideia de humanidade universal necessária a esse mesmo desenvolvimento.

Em boa medida é essa a evolução recente da «drole de union europeéne» em que vivemos. Em que o cretinismo eurocrata vocifera união num espaço cada vez mais imerso em rivalidades nacionais burguesas. Em que se constrói a megalomania de um tratado constitucional sem ter em conta a dinâmica burguesa centrífuga e euro-céptica. Um cretinismo enfim que torna os organismos europeus, supranacionais, em meros gestores correntes de uma agenda sem rumo, ao sabor das quezílias que perpassam entre a Inglaterra a Alemanha e a França. Face à bancarrota da hegemonia burguesa do processo europeu, cresce o espaço para uma iniciativa autónoma da esquerda na Europa. Que capture e se funda com a ideia progressista de construir uma supranacionalidade para além da mesquinhez nacional.

Nesse domínio, é preciso uma força europeia comunista e de esquerda que erga a construção política e jurídica da supranacionalidade. Que erga a construção de um espaço de coesão e redistribuição da riqueza e das oportunidades de desenvolvimento através de uma nova ética fiscal orientada para a construção de um Europa democrática. E que finalmente erga obstáculos supranacionais à navegação selvagem do capital, que trave as deslocalizações sem regras, que trave os fluxos predadores de capital e dê espaço às formações económicas alternativas ao capitalismo que germinam na economia pública e cooperativa. Queremos ainda uma força europeia comunista, que saiba animar as convergências com as forças socialistas, social-democratas, ecologistas e liberais, que na Alemanha, na França, na Espanha e na Itália, dão mostras de caminhar para uma ideia supranacional na Europa.

É claro que uma viragem supranacional do programa da esquerda, significa fazer incidir e estender a luta de classes ao espaço supranacional, local de onde tem estado manifestamente arredada, deixando à vontade os eurocratas para manobrarem. Não pode significar abandonar, num passo de dança pusilânime, o espaço nacional e abdicar das trincheiras nacionais que se mantenham para conquistar posições para os trabalhadores. O que se procura com a renovação comunista é preencher a lacuna da falta de uma linha internacional para o movimento comunista e ajudar a vencer as resistências para uma mais rápida edificação do Partido da Esquerda Europeia.

Luís de CARVALHO

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey