Brasil: Afinal, o que diz o dossiê?

Por Gustavo Barreto, da Redação Consciência.Net, 20 / 9 / 2006


Neste “escândalo do dossiê”, é possível que a opinião pública não veja a pergunta acima respondida. Com certeza, não pela Rede Globo e seu principal jornal. A obviedade está na primeira página do jornal O Globo do dia 19 de setembro. Os redatores da publicação decidiram chamar de “falso” o dossiê: “O escândalo da compra de um falso dossiê para tentar incriminar o candidato tucano José Serra (...)” (primeiras linhas, primeira página).

Por que falso? Como chegaram a esta informação? Nem uma linha sobre isso em todas as completas 30 páginas de matérias, dos dias 19 e 20 de setembro. Pelo contrário.

Uma reportagem na página 17 da edição do dia 19, escondida no canto da página, após uma enxurrada de matérias valorizando a compra do dossiê, mostra que seis empresas ligadas a operadores da máfia das sanguessugas doaram R$ 60 mil à campanha em 2004 do atual prefeito de Piracicaba (SP), Barjas Negri, ex-ministro da Saúde. Negri é do PSDB.

Diz a matéria d’ O Globo : “Cerca de R$ 16 milhões, de um total de R$ 40 milhões que a prefeitura de Piracicaba gastou com obras em 2005, foram recebidos por empresas ligadas direta ou indiretamente ao empresário Abel Pereira, apontado como o operador que negociava a compra de ambulâncias das empresas de Darci e Luiz Antônio Vendoin, na época em que Barjas Negri (PSDB) (...)”. (em 19/9/2006, pág. 17)

Inútil dizer, a esta altura, que é abominável o mercado de dossiês que é novidade somente para o público que recebe informações exclusivamente pela imprensa empresarial.

A prática dos dossiês é comum e conta necessariamente com a corrupção instaurada também entre jornalistas e veículos de comunicação. Basta ler reportagem de Marina Amaral publicada na edição especial “Corrupção” (out/2005) da revista Caros Amigos , em que Amaral conversa com um “gerenciador de crises, assessor de imprensa, lobista”, profissão que “na prática significa produzir notícias do interesse de seus clientes, políticos e empresários (às vezes representados por escritórios de advocacia ou agências de publicidade) que buscam projeção ou reversão de prejuízos causados por denúncias na mídia”. A reportagem é esclarecedora e mostra, de maneira objetiva e cruel, de que forma são fabricadas as notícias.

Deve-se questionar, no entanto, quais critérios são utilizados para noticiar reportagens sobre o tema corrupção. Por que um escândalo federal envolvendo uma cidade paulista e R$ 16 milhões é menos importante que uma compra de um dossiê político envolvendo R$ 1,7 milhão? E, afinal, o que diz o suposto dossiê contra Alckmin, Serra e Barjas Negri e por que O Globo o classificou na primeira página como “falso”?

Ao lado da matéria sobre Piracicaba – ressalto, escondida no canto da página e que não cita na chamada “PSDB”, tal como todas as matérias contra o PT – aparece o seguinte título: “Alckmin passa Lula no Rio Grande do Sul”...

Pistas sobre interpretações


A livre “interpretação” do jornal O Globo tem várias pistas importantes. Primeira: no mesmo dia, 19 de setembro, o Jornal Nacional , da TV Globo, deu o “direito de resposta” ao candidato José Serra, do PSDB, sem no entanto apresentar o mais importante: ele estava sendo acusado de quê?

Neste caso, não é dito explicitamente – tal como fez O Globo – que o dossiê seria falso. Apenas supõe-se, já que Serra se defende, portanto, não do conteúdo do dossiê, mas sim da tentativa de petistas de divulgá-lo. Seria louvável tal interpretação, caso o Jornal Nacional tivesse respondido a importante e irrespondível pergunta: com que indícios pode-se dizer que o dossiê é falso?

As informações estão centralizadas no Departamento da Polícia Federal em Mato Grosso, segundo a assessoria de imprensa da PF em Brasília (ouvida pela Revista Consciência.Net ), e apenas com uma consulta técnica – que levaria mais tempo do que cinco dias – poderíamos saber sobre a veracidade do dossiê. Até lá, é chute.

Na página 9 da edição de 20 de setembro do jornal, por exemplo, O Globo enumera 16 “perguntas sem respostas”, e nenhuma delas contém “o que diz o dossiê?”

Mais do que julgar de forma apressada o comportamento das Organizações Globo no caso – o que de certa forma é válido, já que identificamos uma manipulação básica, com base em dados não checados pelo grupo e mesmo assim divulgados –, é útil refletir sobre o comportamento tendencioso da empresa, em momento tão importante para a vida pública nacional.

Bruxaria midiática


No editorial de 19 de setembro (“Bruxaria eleitoral”), O Globo expressa preocupação com a “degradação ética da vida política e, especificamente, do partido [PT] que se lançou há mais de 20 anos com a proposta de refundar a maneira de se exercer funções públicas no país”. Em mini-editorial do dia seguinte (20/9), o jornal volta a falar em “bruxaria eleitoral”, mas dessa vez de forma transparente: “(...) se a PF tem alcançado êxitos, alguns, como o exorcismo da bruxaria eleitoral contra Serra e Alckmin, não existiriam sem a Justiça e o Ministério Público”.

A Justiça, bem como as bruxas, são livres para exorcizar quem elas quiserem, desde que de acordo com os princípios políticos da Globo. A perseguição política a legendas específicas deve ser acompanhada – tira-se a lição – de “denúncia” constante da “perseguição política” a amigos políticos, esteja ou não acontecendo.

Cabe ressaltar, por sinal, que durante pelo menos os primeiros dez anos de existência do PT, a Rede Globo não achava que “refundar a maneira de se exercer funções públicas” era a intenção do partido. Entre outras insinuações largamente observadas pela imprensa alternativa e por especialistas em mídia, o PT buscava confiscar propriedades privadas e instalar o socialismo soviético no Brasil.

Segundo O Globo , atualmente, nesta legenda [PT] os “mensaleiros têm boa acolhida”. Há ainda a reclamação do PSDB – como cita o editorial, “até com alguma razão” – de uso político da Polícia Federal: “(...) enquanto o material do dossiê foi liberado (sic), não se pôde registrar o dinheiro apreendido”.

No PSDB, retiro como conclusão ingênua, não existiriam “mensaleiros”. Um deles, o senador Eduardo Azeredo, mensaleiro e ex-presidente do PSDB (em sua época de mensaleiro), aparece sorrindo em foto da edição do jornal O Globo de 20 de setembro, ao lado de outros tucanos, como um dos “líderes da oposição”.

Além disso, a lógica de uma investigação séria e responsável foi completamente invertida. Vale mais mostrar o “material do dossiê” que nada diz de concreto – o que se sabe sobre seu conteúdo e sobre as informações contidas nele? Nada – do que o dinheiro que seria usado para a compra do dossiê. Este, ao contrário do conteúdo do dossiê, apesar de não ter sido mostrado, teve enorme repercussão. Detalhadas interpretações, com gráficos, tabelas e imagens – tudo largamente documentado. Sobre o dossiê em si, insisto, nenhuma linha.

O que vale, para O Globo e o PSDB, é a imagem mostrada. É o puro e simples uso político o que queriam. Danem-se as investigações sérias e isentas.

“Baluartes da democracia”


No mesmo Jornal Nacional , novamente a voz da ética e das boas práticas é, entre outros, Antônio Carlos Magalhães, o campeão de não-citações em casos de corrupção na mesma Rede Globo. Um relatório do Tribunal de Contas do Estado (TCE) da Bahia, por exemplo, apontou uma movimentação, entre 2003 e abril de 2005, de R$ 101 milhões em uma conta bancária não registrada no sistema de controle do Erário baiano. O TCE – o conselheiro Pedro Lino, indicado pelo próprio governo do Estado, à frente – possui em mãos um relatório de 200 páginas sobre estranhas relações contratuais entre o governo baiano, a agência de publicidade Rede Interamericana/Propeg, do publicitário Fernando Barros, e organizações não-governamentais formadas por servidores públicos.


Conforme assinala a revista Carta Capital (edição 366 – 2/11/2005), que teve acesso ao documento, está no centro da investigação a Bahiatursa, estatal de turismo local subordinada à Secretaria de Cultura e Turismo estadual. Fernando de Barros é intimamente ligado ao clã dos Magalhães e ao PFL baiano, além de ser um campeão local de licitações. O relatório do TCE cita como exemplo de gasto não-discriminado os R$ 2,25 milhões da estatal de turismo em apoio à campanha da Rede Globo “Amigos da Escola”. Carta Capital relembra que a família do senador Antonio Carlos Magalhães é proprietária da TV Bahia, retransmissora da TV Globo no estado. Mantém, ainda, o jornal Correio da Bahia , panfleto político cujo objetivo é propagar os interesses do clã de ACM no estado.

Foi este mesmo Antônio Carlos Magalhães que disse – com repercussão no Jornal Nacional –, na tribuna do Senado no dia 19 de setembro: “É meu dever dizer sem subterfúgio que o Palácio do Planalto é antro de crime e de roubo e que o chefe do governo é o responsável principal pelos crimes e pela roubalheira desenfreada deste governo”. Para completar a dobradinha eleitoral, a edição do dia 20 de setembro de O Globo , dando continuidade à campanha, dá parte da página 17 a Alckmin: “Candidato diz que vive momento especial e acha que novo escândalo pode prejudicar petistas”.

Alckmin, o preferido


Eduardo Scolese e Leonencio Nossa, no recém-lançado livro “Viagens com o Presidente – Dois repórteres no encalço de Lula do Planalto ao exterior”, relatam conversa entre “líderes pefelistas e um dos donos da mais poderosa rede de TV da América Latina [João Roberto Marinho]”, destaca o pesquisador sênior da UnB Venício Lima . Scolese e Nossa, que acompanharam de perto o dia-a-dia de Lula e os bastidores da política nestes últimos anos, escrevem: “O dirigente da poderosa TV Globo afirma aos líderes do PFL que um segundo mandato de Lula poderá levar o país a uma situação caótica. E admite que prefere Geraldo Alckmin a José Serra na cabeça de chapa da oposição” (páginas 214 e 215). Os líderes do PFL citados são Jorge Bornhausen e José Agripino Maia, campeões de aparições na Rede Globo.

A pressão da imprensa e da oposição não é pura chantagem eleitoral. A Polícia Federal também investigará as informações que constam no dossiê. Resta saber se, na hora de investigar a “oposição” (apenas formal, detentora de muitos bens materiais e de instrumentos de poder simbólico), as “instituições democráticas” serão respeitadas e a Globo, na sua ânsia ética de mudar o Brasil, dará o mesmo destaque aos seus amigos mensaleiros e sanguessugas.


Gustavo Barreto é pesquisador da UFRJ e editor de imprensa alternativa. Contato com a redação: [email protected]

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