Se Bassem Tamimi fosse meu pai
Tinha 14 anos quando descobri minha identidade palestina, ou seja, tão adolescente quanto a ativista Ahed Tamimi, encarcerada em Israel por esbofetear um soldado israelense.
Não sabia que era de origem palestina. Minha mãe brasileira se separou de meu pai palestino quando eu tinha apenas 5 anos e afastou-nos da comunidade árabe por medo de represálias contra os estereótipos terroristas.
Por Amyra El Khalili, no Correio da Cidadania
Ela dizia que meu pai era beduíno da Jordânia. Na minha cabeça infantil éramos, eu e meus irmãos, das arábias, dos contos infantis com Aladim, lâmpadas mágicas e tapetes voadores sobre castelos e desertos. Era a imagem que guardava na memória.
Do meu pai herdei discos da cantora egípcia Om Khalthoum, aclamada como Mãe do Egito, com uma voz estonteante e vibrante e as vagas lembranças dele tocando derbake (atabaque árabe) e ensinando-me os primeiros "passinhos de danças".
Foi quando participava no Movimento Cineclubista Brasileiro, ao projetar na periferia de São Paulo o filme Sanaúd (Voltaremos), quando um jovem palestino da OLP (Organização para Libertação da Palestina) debateu a questão árabe-israelense, que me deparei com a minha verdadeira identidade palestina.
Durante o debate disse que meu pai era das arábias e o jovem descontraído perguntou-me de onde "das arábias" percebendo que eu não sabia exatamente de onde vim e nem para onde estava indo. Ao que respondi que meu pai era beduíno da Jordânia. Ele logo desconfiou de que alguma coisa me fora omitida e perguntou meu nome completo. Disse: meu nome é Amyra El Khalili.
Ele sorriu e decifrou-me: você sabe o que significa seu nome? Significa Amyra, a princesa das princesas. El Khalili é de Hebron. Amyra El Khalili é nome forte, tens uma missão com nosso povo. Seu nome é beduíno palestino e seu pai é um refugiado palestino que provavelmente entrou ilegalmente no Brasil saindo da região pelas fronteiras da Jordânia. Você, menina, é palestina e vou mostrar o que os sionistas fizeram com nosso povo, com sua família e com a sua vida!
Ele carregava consigo uma revista com a história do massacre de Sabra e Chatila, com as fotografias das mulheres, crianças e idosos violentados, mortos, massacrados e humilhados, bem como as histórias e imagens da diáspora de milhares e milhares de palestinos fugindo com os pés descalços, sem seus pertences, arrastando-se com seus filhos pelos desertos, atravessando fronteiras. Fiquei em estado de choque por meses.
Desde esse dia nunca mais voltei a ser a mesma pessoa. Não tinha politização e nem estrutura emocional para o debate político ou para militar junto aos jovens da OLP, mas tinha a arte da dança, da música e do cinema como atitude. Tinha a letra, a palavra e a emoção!
Meu pai desapareceu em 1970 e nunca mais tive notícias dele. A história da minha família é o resultado de uma tragédia com feridas abertas que não cicatrizaram. Senti revolta, tristeza e insegurança por meu pai ter nos abandonado sem compreender a nossa história porque simplesmente desconhecia a identidade que forjou meu caráter e determinação.
Nunca mais o encontrei e talvez ainda tenha receio de encontrá-lo, porém, ao acompanhar a história de Ahed Tamimi e a luta de sua família, da dor e da resistência de seu pai Bassem Tamimi, me senti parte dessa história e apreendi o estímulo da referência de uma comunidade em luta contra a opressão de um sistema colonizador. Sinto-me parte deste apoio por amor incondicional à liberdade.
Em entrevista para a rádio Del Sur da Venezuela, Bassem Tamimi fala do sofrimento de sua filha sob tortura, submetida a 30 horas de inquérito sob pressão, sem comida e sem dormir, para que entregue informações ao opressor sionista contra a sua família e comunidade.
Ahed Tamimi foi forjada no sofrimento, na dureza da luta e na certeza de que a liberdade somente poderá ser alcançada se tivermos coragem para enfrentar um mundo de desafios na cultura da resistência e, sem dúvida, nenhum passo atrás!
Se Bassem Tamimi fosse meu pai teria muito orgulho dele e me sentiria acolhida e amada profundamente por encorajar-me a seguir a vida combatendo os que temem a liberdade.
Tenho certeza que Ahed Tamimi também concorda comigo, até porque ao invés de cortar os pulsos, ela optou por melhor usá-los!
Notas:
1. Dediquei a vitória na justiça contra o provedor Google em homenagem às mulheres árabes, especialmente as palestinas e as mulheres muçulmanas contra as acusações levianas em classificá-las como terroristas. Processo: Amyra El Khalili x Google Brasil Internet Limitada. Jornal Rosa Choque. Disponível 07 abr. 2011. Acesso em 11 de janeiro de 2018.
2. Assine as petições pela libertação de Ahed Tamimi: CODEPINK e AVAAZ
3. Ouça a entrevista de Bassem Tamimi: rádio Del Sur Venezuela
Referências:
LEVINE, Mark. Palestina: Ahed Tamimi: ¿la Mandela de Palestina? . Prensa Indigena em espanhol: Disponível em 11 jan 2018. Acesso em 12 jan. 2018. Magazine. Original em inglês. Disponível em 05 jan. 2018 . Acesso em 12 jan. 2018.
LEVY. Gydeon. E se Ahed Tamimi fosse sua filha? Disponível em 01 jan. 2018. Acesso em 11 jan. 2018.
MILÍCIO, Gláucia. A palestina Amyra El Khalili venceu na Justiça o gigante Google. Disponível 31 mar 2011. Acesso em 11 jan. 2018.
Google é condenada por não retirar perfil falso. Disponível em 17 mai 2009. Acesso em 11 jan 2018.
OLIVEIRA, Samir. Ahed Tamimi: o símbolo de uma palestina livre da opressão israelense. Disponível em 03 jan. 2018. Acesso em 11 jan. 2018.
TAMIMI, Bassem. Carta do pai de Ahed Tamimi - Minha filha, estas são lágrimas de luta.
Esquerda On Line. Disponível em 29 dez. 2017. Acesso em 11 jan. 2018.
Amyra El Khalili é beduína palestino-brasileira, da linhagem do Shayk Muhammad al-Khalili*. É professora de economia socioambiental e editora das redes Movimento Mulheres pela P@Z! e Aliança RECOs - Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras.
Shayk Muhammd al-Khalili - Nascido no primeiro mês muçulmano de Shaban do Hijra do ano 1139, que corresponde ao ano A.D. 1724, era o líder da Irmandade Qadiri Sufi e talvez o "homem santo" mais famoso do seu tempo na Palestina.
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