Este é o objetivo oculto do conceito de Economia Verde, aparentemente uma nova arma em defesa do ambiente. É este o espírito da Lei nº. 2.308, de 22 de outubro de 2010, do Estado do Acre, que cria o Sistema Estadual de Incentivos a Serviços Ambientais (SISA), que alguns pretensos ambientalistas defendem como iniciativa pioneira para proteger a natureza.
POR ARTHUR SOFFIATI*
Em todas as civilizações, existiram a atividade comercial e os comerciantes. Estes viviam da sobra de bens de uso para comerciar, transformando assim bem de uso em bem de troca. Contudo, o mercado, nessas condições, estava restrito a se apropriar da produção de excedentes. Se eles se ampliavam, o mercado crescia. Se eles se reduziam, o mercado se contraía, num fluxo oscilante de altos e baixos.
Só a civilização ocidental conseguiu romper um modo de produção cujo objetivo espontâneo era atender às necessidades básicas do ser humano, como em todos os modos de produção pré-capitalistas. A partir do século XI, na Europa Ocidental, os comerciantes começaram a crescer com a transformação de bens de uso em mercadoria. Desejando engordar seus negócios, os comerciantes estimularam a expansão da Europa por terra em direção ao Oriente Médio no longo episódio denominado Cruzadas (1096 a 1270). O objetivo era quebrar o monopólio do comércio oriental detido por comerciantes muçulmanos. A tentativa fracassou.
Contudo, os comerciantes europeus continuaram na ampliação do mercado interno. Alguns fatores contribuíram para que se passasse de um sistema de produção de produtos para um sistema de produção de mercadorias. Um deles foi o tépido aquecimento climático natural entre os séculos IX e XIV. Com a elevação das temperaturas, mais terras ficaram disponíveis ao agropastoreio, proporcionando o aumento da produção e o aumento de excedentes comerciáveis. Contudo, também a população cresceu e exerceu pressão sobre a produção de alimentos. Por sua vez, o uso mais intenso do solo levou ao seu esgotamento. O segundo foi a crise geral do feudalismo no século XIV causada por um conjunto de fatores que levou à fome, a uma grande epidemia e à morte de grande parcela da população. Assim, o sistema feudal abria campo para novas relações sociais de produção.
A economia de mercado cresceu. O desejo de tomar aos muçulmanos o monopólio das rotas comerciais do oriente impulsionou a Europa a buscar uma nova rota de expansão, agora pelo Oceano Atlântico. É o que se denomina de expansão marítima, nos séculos XV e XVI. Pouco a pouco, a civilização ocidental foi alcançando todos os continentes à procura de fontes fornecedoras de matéria prima e de produtos comercializáveis. Ao mesmo tempo, abriam-se áreas de consumo dos produtos europeus.
Dentro da Europa, houve uma reorganização do sistema produtivo. O trabalho servil não foi extinto, mas, mediado pelos senhores de terra, passou a produzir para o comércio. Cresceu também o trabalho livre individual, com o pequeno proprietário ou posseiro e sua família produzindo em grande parte para o comércio. Terras e manufaturas transformaram-se em unidades produtivas tipicamente capitalistas, usando trabalho assalariado. Elas representam o embrião das fazendas e das fábricas modernas.
Ao lado do trabalho assalariado, os Estados nacionais europeus recriaram o trabalho escravo na América, onde foram implantadas colônias. A força de trabalho do ser humano foi mercadorizada e comprada pelo salário. Com o escravo ameríndio e africano, a mercadoria era o próprio indivíduo, que tinha valor de mercado mesmo inerte. Tanto assim que um próspero negócio se desenvolveu com a captura e compra de escravos, por um lado, e a venda deles, por outro. Tratava-se de uma mercadoria em si cuja força de trabalho podia produzir outras mercadorias.
Em todos os lugares atingidos pelo comércio europeu, a natureza se tornou um estoque de recursos a serem explorados com vistas ao lucro. A economia de mercado tem tendência a transformar tudo em mercadoria. A própria filosofia ocidental do século XVII subtraiu da natureza todo resquício de sacralidade. O sociólogo Max Weber disse que o ocidente desencantou o mundo. Indo mais longe, esta filosofia concebeu o mundo como uma imensa máquina formada por máquinas menores para justificar sua exploração.
Quando os sistemas tradicionais embasados no trabalho servil, independente e escravo não conseguiram mais atender à voracidade do comércio, este promoveu, em fins do século XVIII, uma profunda transformação no processo produtivo com a Revolução Industrial. A partir dela, o trabalho assalariado tendeu a eliminar, substituir e concorrer com outras formas de trabalho. Componentes da natureza até então considerados como abundantes e acessíveis a qualquer um são cobiçados pelo mercado. No século XIX, Marx considerou a água e o ar como bens abundantes, não passíveis de serem comercializados. No entanto, a água já se transformou em mercadoria. Com a poluição da atmosfera, não falta muito para que o mercado passe a vender ar puro.
No momento atual, ecocientistas alertam para a crise ambiental planetária gerada pelo funcionamento dos sistemas econômicos capitalista e socialista. Observe-se que capitalismo e socialismo podem se opor quanto à organização da sociedade e aos regimes políticos, mas olham para a natureza da mesma forma: ela é um depósito de recursos a serem explorados e um terreno inerte para o descarte de rejeitos dos processos produtivos.
Os ecocientistas honestos vêm demonstrando como as economias capitalistas e socialistas estão perigosamente causando:
1- Aumento desmesurado da produção de gases causadores de profundas mudanças climáticas.
2- Ainda a depleção da camada de ozônio.
3- Acidificação dos oceanos.
4- Comprometimento da água doce, tanto em quantidade como em qualidade.
5- Mudança radical do uso do solo, com a destruição de ambientes aquáticos e vegetais nativos, substituídos por atividades mineradoras, agropecuárias e urbanas.
6- Aceleração dos ciclos de nitrogênio e fósforo.
7- Lançamento de gigantescas quantidades de poeira na atmosfera.
8- Empobrecimento perigoso da biodiversidade.
9- Poluição generalizada dos ambientes planetários.
Mas o mercado vê, nessas mudanças, excelentes oportunidades de negócio, agora que não é mais possível negá-las. Pela perspectiva empresarial desprovida de qualquer ética:
1- As mudanças climáticas podem ser resolvidas com a substituição de tecnologias geradoras de gás carbônico por tecnologias à base de energias "limpas". Pode-se também recorrer aos créditos de carbono e de compensações (entre outros) ou a caras tecnologias sugadoras de gases do efeito estufa nas altas camadas da atmosfera. Fala-se também em caríssimos sistemas de refração de raios solares.
2- Demonstrou-se que ciência e tecnologia foram capazes de reduzir os aerossóis corrosivos da camada de ozônio. Sendo assim, é só continuar nesta direção.
3- O mesmo pode ser aplicado à acidificação dos oceanos. Em breve, o mercado vai produzir e vender tecnologias capazes de corrigir a acidificação.
4- A água doce pode ser descontaminada e recuperada em seu volume graças a novas tecnologias que permitirão a venda de água para a agropecuária, para a indústria e para o consumo humano. Existe ainda o recurso à dessalinização da água do mar.
5- Num futuro próximo e promissor, ciência e tecnologia serão capazes de substituir os serviços prestados por ecossistemas aquáticos continentais e vegetais nativos, bem como desenvolver cidades concentradas e produzir alimentos sintéticos.
6- Quanto ao fósforo e ao nitrogênio, o mercado encontrará solução para substituí-los ou controlá-los.
7- A poeira lançada na atmosfera pode ser facilmente reduzida e eliminada com tecnologias simples. A que está em suspensão na atmosfera pode ser aspirada por grandes sumidouros.
8- Não se deve entrar em pânico com o empobrecimento da biodiversidade. Primeiro porque as espécies têm um tempo natural de vida no planeta. Conosco ou sem nós, elas estariam fadadas à extinção. Até mesmo cientistas já discutem que espécies podem ser eliminadas sem prejuízo para o funcionamento da biosfera. Por outro lado, a clonagem, a transgenética e a genômica estão aí para recriar espécies extintas, como imaginou Michael Crichton em Jurassic Park.
9- Assim como a tecnologia poluiu os sistemas terrestres, ela pode muito bem despoluí-los.
Como se observa, a visão do mercador é sempre otimista e oportunista. "Se, de fato, nós somos os responsáveis pela crise que vocês, ambientalistas e cientistas, dizem ameaçar a Terra, nós vamos encontrar solução para ela. Ganhamos dinheiro ao engendrá-la. Vamos ganhar mais dinheiro para restabelecer os equilíbrios abalados. O mundo não será mais o mesmo. Será melhor do que antes." Esta a concepção da economia de mercado, que passa ao largo de princípios éticos.
Aliás, o sistema capitalista sempre colidiu com as diversas éticas. No feudalismo, ele foi criticado pelo cristianismo, particularmente com a transformação do próprio dinheiro em mercadoria pelo usurário. Este, por exemplo, vendia 100 por 150. O tomador de empréstimo levava os 100 para pagar 150 algum tempo depois. A prática foi adotada pelo sistema financeiro e se tornou perfeitamente aceitável. Hoje, os bancos são as empresas que mais lucram.
Também os povos nativos dos diversos continentes ficaram chocados com a coisificação de minérios, plantas, animais e pessoas, como bem ilustra o diálogo do francês Jean de Léry com um velho tupinambá, no século XVI, narrado pelo próprio Léry. O humanismo laico dos séculos XVIII e XIX, na Europa, condenou a mercadorização do mundo. Até mesmo Adam Smith não aceitou sua filosofia levada às últimas conseqüências. Atualmente, a lógica do lucro a qualquer custo sofre críticas impiedosas do ecologismo, como sistema filosófico concebido na década de 1970.
Além de imoral, é muito perigoso transformar a galinha dos ovos de ouro em mercadoria. Por uma lógica racional, os ovos devem ser a mercadoria, mas não a galinha, pois sem ela não haverá mais ovos. Transformar a galinha em mercadoria para protegê-la é tirar dela o caráter de ser que merece respeito intrínseco e que não pode ser valorado nem precificado. Transformada em mercadoria, a galinha está sujeita às flutuações do mercado. Se tais oscilações levam o preço dos ovos a cair, pode ser que valha a pena matar a galinha, que não tem mais nenhum valor intrínseco. Caso os ovos voltem a alcançar bom preço, não há mais galinha para produzi-los.
Muitos ambientalistas superficiais entraram por este caminho. Eles acreditam que valorando e precificando os serviços ambientais gratuitamente fornecidos pela natureza vão conseguir salvar as florestas, os rios, os lagos, os oceanos etc. da destruição. Em vez de defender eticamente o valor intrínseco da natureza, eles a transformam em mercadoria. Pode-se ganhar mais dinheiro com uma floresta em pé do que com a madeira e com a lenha provenientes de sua derrubada ou com a atividade mineraria ou agropecuária da superfície que ela ocupa, explicam eles.
Assim sujeita às oscilações do mercado, pode acontecer de, em determinada conjuntura, a floresta derrubada valer mais do que a floresta em pé. Como ela agora é uma mercadoria, seu valor eticamente intrínseco não mais a protegerá. Este é o objetivo oculto do conceito de Economia Verde, aparentemente uma nova arma em defesa do ambiente. É este o espírito da Lei nº. 2.308, de 22 de outubro de 2010, do Estado do Acre, criando o Sistema Estadual de Incentivos a Serviços Ambientais (SISA), que alguns pretensos ambientalistas defendem como iniciativa pioneira para proteger a natureza.
Contra a tendência a transformar a natureza toda em mercadoria, deve-se levantar o princípio ético do valor intrínseco. A natureza continuará prestando serviços essenciais ao planeta e à humanidade independentemente das flutuações do mercado. Mas quem estabelecerá limites ao mercado e assegurará o princípio do valor intrínseco? Entendemos que este dever cabe ao Poder Público. Mas como, se o próprio Estado é que tem a prerrogativa de propor e estatuir leis como a do SISA? Sempre que o Estado entra em cena no capitalismo é para salvar o mercado de suas crises, não para lhe impor limites éticos.
Afinal, são dois entes em conluio para alcançar o mesmo fim; mercadorizar o que não pode e não deve jamais ser mercadorizado. Assim, parece que só resta a sociedade organizada para conter os dois agentes perversos.
Arthur Soffiati* é doutor em História Social com concentração em História Ambiental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor aposentado da Universidade Federal Fluminense, integra o Núcleo de Estudos Socioambientais da mesma universidade. Publicou dez livros, além de vários capítulos de livros, de artigos em revistas especializadas e de artigos jornalísticos semanais.
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