Na sede social do banco de investimentos Lehman Brothers, o pessoal se esforça para salvar as aparências. As fachadas do prédio da 7ª Avenida, no coração de Manhattan, continuam iluminadas por telões gigantes que exibem imagens multicolores, e as compridas limusines pretas dos dirigentes executivos seguem estacionadas ao longo da guia, diante do olhar atento de choferes apertados dentro das suas vestimentas impecáveis.
Yves Eudes
Em Nova York (EUA)
Contudo, no espaço de alguns dias tudo mudou. Após ter a sua falência declarada judicialmente em 15 de setembro, uma parte das atividades do Lehman Brothers foi imediatamente comprada a baixo preço pelo banco britânico Barclays. A queda foi tão repentina e tão imprevista que os empregados ainda não conseguem acreditar que isso realmente aconteceu. A. B., 29 anos, é um bancário de negócios que atua a serviço do Lehman Brothers há dois anos, e assim ele espera continuar, apesar da crise que está abalando o sistema financeiro americano.
Ele fornece poucos detalhes sobre o seu passado e sua vida privada porque, da mesma forma que todos os seus colegas, ele recebeu a ordem formal de nada contar, para quem quer que seja, e muito menos para os veículos de comunicação: "Se eles descobrirem que eu desobedeci, este será o pretexto ideal para me demitirem". Mas, apesar dos riscos, ele tem muita vontade de contar o que acabar de acontecer com ele.
Alguns meses atrás, A. B. era um homem estafado, porém feliz: "Em 2007, eu ganhei US$ 100.000 a título de salário [cerca de R$ 180.000], mais um bônus de US$ 200.000, dos quais US$ 50.000 foram pagos com ações da sociedade". Ele trabalhava até noventa horas por semana, não raro retornava para casa à 1h da manhã, ficava de vez em quando no escritório por 36 horas seguidas e continuava estudando seus dossiês durante os fins de semana. "Uma vida de louco, mas aqueles eram bons tempos. Eu sentia orgulho por trabalhar a serviço de um estabelecimento tão prestigioso, uma instituição de 158 anos de idade, e que sabia cuidar da gente. Ela me parecia ser invulnerável".
Desde a falência, as ações que possui A. B. não valem mais nada: "Eu perdi US$ 50.000, definitivamente. Tratava-se de títulos bloqueados por uma duração de cinco anos, eu estava vendo o seu valor baixar dia após dia, e não tinha o direito de vendê-los". Ele se consola lembrando que muitos dos seus colegas se deram muito pior: "Os executivos superiores recebem mais da metade da sua remuneração em ações, eles amargaram perdas enormes. Os mais idosos, que contavam com esse dinheiro para garantirem para si uma aposentadoria confortável, perderam a metade dos seus haveres. Entre os jovens, alguns acabavam de contrair uma dívida para comprarem uma casa, aproveitando-se da queda dos preços no setor imobiliário. Agora, eles não sabem o que fazer para se saírem dessa enrascada, alguns deles já falam em largar tudo e num possível retorno à casa dos pais".
A. B. sabe que ninguém no país vai compadecer-se com a situação dos "golden boys", mas ele não aceita ser considerado como um privilegiado: "40% do que eu ganho parte em impostos, pago um aluguel de US$ 3.500 (cerca de R$ 6.450) por mês para um pequeno apartamento de dois dormitórios, a minha mulher ainda está estudando, e nós estamos esperando um filho. Nós não somos salafrários, nem oportunistas nem aproveitadores, temos famílias para alimentar, como todo mundo. Além do mais, para bancar meus estudos numa prestigiosa escola de administração de empresas, eu tive de contrair um empréstimo de R$ 200.000 (cerca de R$ 370.000). Eu pretendia reembolsar esta dívida em quatro anos, mas, considerando a situação, isso não será mais possível. Mesmo se eles não me demitirem, eu passarei a ganhar menos do que antes, com toda certeza".
O jovem bancário não esconde a sua amargura, pois ele tem o sentimento de que a catástrofe poderia ter sido evitada: "Com o seu plano de salvamento, o governo vai ajudar todo mundo a sobreviver, exceto o Lehman Brothers. Se as decisões tivessem sido tomadas quatro dias depois, nós poderíamos também ter beneficiado das medidas, e com isso evitaríamos ser comprados". Ele também está revoltado com os operadores de mercado sem escrúpulos que aceleraram a queda da cotação da ação da companhia lançando mão do "short selling", uma técnica complexa de especulação que força a baixa de títulos cotados. Nesse sentido, na sexta-feira, 19 de setembro, para evitar outras falências, a comissão de controle da Bolsa proibiu provisoriamente as operações de "short selling" em relação às ações de 800 sociedades financeiras.
Pensando melhor, A. B. reconhece que o problema era mais vasto: "Ao acelerar a queda das nossas ações, o mercado disseminou a informação de que os bancos de investimentos independentes haviam se tornado frágeis, incontroláveis, e que eles estavam fadados a desaparecer, ou a serem absorvidos por bancos clássicos, mais sólidos". De fato, eles haviam de deixado de ser prestadores de serviços, passando a efetuar investimentos por conta própria, o que eles fizeram financiando suas operações por meio de empréstimos de curto prazo e com taxas de juros elevadas. Daqui para frente, este modelo de alto risco já desponta como caduco.
Em 22 de setembro, o Goldman Sachs e o Morgan Stanley, os dois grandes bancos de investimentos que havia escapado do massacre por um triz, anunciaram que eles iriam modificar seu estatuto e submeter-se a controles mais rígidos - o que constituiu uma autêntica revolução cultural para a comunidade financeira americana como um todo.
Atualmente, A. B. está assombrado pelas incertezas: "Eu continuo indo trabalhar todos os dias, das 8h às 20h, mas ninguém ainda apareceu para explicar como vai ser realizada a reestruturação. Os nossos departamentos administrativos se justapõem exatamente àqueles do Barclays, e por conta disso, haverá sem dúvida uma grande onda de demissões. Muitos dos meus colegas estão tentando no desespero uma colocação de última hora em sociedades menos atingidas pela crise. Eu tenho um amigo que está trabalhando numa firma de recrutamento especializado; num único dia ele recebeu 700 currículos enviados por funcionários do Lehman Brothers".
Sem demora, os novos patrões vão se instalando nas dependências da empresa. À noite, "os Lehman" e "os Barclays" vão tomar um drinque juntos no bar da esquina, para aprenderem a se conhecer, mas de vez em quando, o ambiente torna-se pesado.
Vale acrescentar que o desenrolar da primeira grande fusão-aquisição que havia sido provocada pela crise, em março, já havia deixado recordações nem sempre muito boas. Quando o banco Bear Stearns, à beira da falência, foi comprado pelo JP Morgan, os empregados que possuíam ações da companhia receberam US$ 10 por cada uma, ao passo que essas ações valiam US$ 133 alguns meses antes. Então, as demissões começaram.
Meghan Eschmann, uma executiva que atuava no departamento de marketing do Bear Stearns havia três anos, foi incluída na primeira leva dos "degolados": "Eles nos disseram que o pessoal do JP Morgan estava aí para nos ajudar, mas, muito rapidamente nós acabamos entendendo que eles estavam ocupados a operar uma seleção entre os que seriam mantidos e os outros". Meghan recebeu indenizações razoáveis por conta da sua demissão, mas, desde então, ela segue procurando um novo emprego sem descanso, em vão: "Tão logo aparece uma oferta de emprego em algum lugar, centenas de desempregados se precipitam. Nas salas de espera das sociedades aonde vou me candidatar a uma vaga, com freqüência encontro com pessoas que eu havia encontrado na véspera em outros lugares, para uma outra entrevista envolvendo uma contratação. Isso é deprimente".
A transição é muito difícil, uma vez que, há um ano apenas, os jovens bancários de negócios eram procurados constantemente por especialistas em recursos humanos e, caso quisessem, podiam descolar facilmente uma contratação, de um dia para o outro. Agora, Meghan já estuda seriamente abandonar o mundo das finanças e procurar um emprego em outros setores: "Eu estou aberta a toda e qualquer proposta, mas os especialistas em recursos humanos não têm grande coisa para oferecer. Eles me explicam que a crise já contaminou a economia local como um todo".
Em Nova York, o setor financeiro representa 12% dos empregos assalariados, ou seja, 470 mil pessoas, e 36% do montante global da renda da população da cidade. Ora, cerca de 10 mil empregos foram suprimidos ao longo das últimas semanas, e isso é apenas o começo. Um alto responsável da formação interna na AIG, a companhia de seguros que foi salva da falência graças a uma ajuda federal de US$ 85 bilhões (cerca de R$ 155 bilhões), aceita apresentar sua análise da situação, com a condição de que o seu nome não seja revelado: "As demissões que acabam de ser efetuadas são apenas a parte emersa do iceberg, pois o pior está por vir. Até mesmo as sociedades que apresentam uma boa saúde vão se aproveitar da situação para reduzir seus quadros de funcionários".
Michael, o marido de Meghan, também trabalha no setor das finanças. Por enquanto, o seu emprego não está ameaçado, mas ele diz estar preocupado com a cidade: "Nós vivíamos nos vangloriando, com orgulho, de que em Nova York cada emprego criado no setor das finanças resultava na criação de quatro empregos em outros setores. Hoje, inversamente, a destruição de empregos no mundo dos bancos vai exercer um efeito multiplicador sobre o restante da economia local".
Ele já está temendo uma possível fuga dos talentos: "Já estou prevendo que muitos financistas experientes, sobretudo aqueles originários de outras regiões dos Estados Unidos ou de outros países, irão retornar para o seu local de origem, ou partirão para outros lugares". Ele ainda quer acreditar que Nova York continuará sendo um centro financeiro de primeiro plano, mas ele já está percebendo que a idade do ouro ficou para trás: "A globalização se desenvolve ainda mais rapidamente em nosso setor do que em outros. Nova York não é mais a capital planetária das finanças que chegou a ser, quinze anos atrás. Outras praças já se tornaram bem mais poderosas".
Michael constata que o Barclays, o novo proprietário do Lehman Brothers, tem a sua sede principal em Londres, e que o Bank of America, que passou a controlar a sociedade Merrill Lynch, está baseada na Carolina do Norte: "Eu nasci aqui, e, até uma data recente, jamais imaginaria a possibilidade de viver em outro lugar. Contudo, atualmente, se me oferecessemum cargo interessante numa outra cidade, nos Estados Unidos ou no exterior, eu consideraria a proposta seriamente. Antes da crise, Meghan e eu queríamos comprar uma casa em Long Island, mas agora, este projeto não está mais na ordem do dia". O fundo de previdência social de Michael, que é composto em grande parte por ações da Merrill Lynch, o seu antigo empregador, acaba de perder 70% do seu valor.
Até mesmo os profissionais estrangeiros que se instalaram em Nova York e se apaixonaram pela cidade foram tomados por dúvidas. C. D., um jovem francês operador de mercado, que chegou à cidade há quatro anos, sempre teve vontade de nela se instalar definitivamente. Ora, ele constata com preocupação que vários bancos estrangeiros já começaram a fechar seus escritórios nova-iorquinos e optaram por se retirar dos mercados mais especulativos.
Na semana passada, ele sentiu pela primeira vez um verdadeiro vento de pânico assoprando nas salas de mercado: "A quase-falência da companhia de seguros AIG nós permitiu compreender que a explosão completa do sistema financeiro americano, que teria conseqüências aterradoras, era uma coisa possível de acontecer, ao passo que até então tal hipótese era simplesmente impensável. Depois disso, o plano de salvamento que foi anunciado pelo governo nos pareceu abracadabrante, e a sua eficiência ainda está por ser comprovada. Neste momento, muitos já sabem, entre os meus colegas, que a sua vida profissional está por um triz. Eu andei conversando com operadores de mercado que tentam salvar o que ainda pode ser salvo nas negociações, mas, na realidade, eu sei que eles estão condenados, eles sofreram perdas excessivas, e o seu banco não se mostra mais solidário com eles".
Nem todos os profissionais das finanças de Nova York se deixam dominar pelo pessimismo. Daniel O'Neil, o presidente da Direxion, uma divisão da companhia de administração de patrimônio Rafferty Asset Management, afirma que ele não demitiu ninguém e que até o presente momento a sua firma não sofreu em demasia com a crise: "Com a aceleração da derrocada na Bolsa, os nossos produtos de 'short selling' (venda especulativa de títulos) se tornaram mais atraentes, e nós resistimos bem".
É claro, Daniel O'Neil também está lidando com muitos problemas. A proibição temporária de praticar o "short selling" com os valores financeiros o deixa perplexo: "Os políticos de Washington precisavam encontrar um bode-expiatório; então, eles chegaram à conclusão que todo o mal provinha dos operadores de mercado, que especulam para tirar vantagem das quedas de valores, mas essa teoria não se segura sozinha; ela não faz sentido - e, além do mais, é perigoso mudar as regras do jogo no meio da partida, pois ninguém entende mais nada do que está acontecendo, alguns clientes se retiram, e isso é nocivo para o mercado como um todo".
Sobretudo, ele faz questão de lembrar que o "short selling" também tem lá suas virtudes: "Esta prática corrige a cotação das ações que estavam acima do seu real valor, o que traz as sociedades cuja valorização era excessiva de volta para o seu valor real, e reduz os riscos de vermos surgirem novas bolhas especulativas. Ninguém irá brincar de praticar o 'short selling' com uma sociedade saudável e em plena expansão, pois esta tática alveja apenas aquelas que apresentam verdadeiros problemas".
Logo no próximo mês, Daniel O'Neil pretende introduzir no mercado um produto financeiro inovador, que fará com que os seus clientes possam especular simultaneamente sobre previsões de alta e de baixa, podendo emprestar os dois terços do valor das suas aplicações financeiras: desta forma, os lucros podem ser triplicados, assim como podem também ser triplicadas as perdas eventuais. A sua aposta no curto prazo é de que a Bolsa de Nova York não irá desmoronar, mas sim antes estagnar, com alguns sobressaltos bastante irregulares que permitirão aos investidores efetuarem idas e voltas especulativas. Mesmo no meio da tempestade, o jogo continua.
Tradução: Jean-Yves de Neufville
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