O publicitário é antes de tudo um mentiroso

O publicitário é antes de tudo um mentiroso

 

Outro dia, falava com o professor Lucas sobre cinema, quando ele lembrou um filme, citando o título em inglês - Splendor in the Grass. Aí começou minha confusão. Falei que era um filme do Elia Kazan, em que o Kirk Douglas fazia o papel de um diretor de uma agência de publicidade que tinha uma visão crítica sobre o seu trabalho.


Não era nada disso. Com a ajuda do Google, esclareci depois a questão. Splendor in the Grass, que no Brasil se chamou Clamor do Sexo (Natalie Wood e Warren Beaty), era um filme sobre a repressão sexual nos Estados Unidos na década de 20, dirigido pelo Elia Kazan.


O filme com Kirk Douglas, ambientado numa agência de publicidade, se chamava The Arrangement, traduzido no Brasil para Movidos pelo Ódio, tinha ainda nos papéis principais Faye Dunaway e Debora Kerr e também foi dirigido pelo Elia Kazan.


Essa confusão me levou a fazer duas coisas: primeiro, deixar registrado que Elia Kazan (Sindicato de Ladrões, Baby Doll, Vidas Amargas) foi um dos maiores diretores do cinema, mas um canalha, um delator como agora está na moda, passando de membro do Partido Comunista Americano para a pessoa que entregou dezenas de atores e diretores de cinema na Comissão de Atividades Anti Americanas, do senador Mc Carthy e segundo, falar um pouco sobre publicidade e minha experiência nessa área de comunicação.


Trabalhei durante mais de 20 anos no mercado publicitário. Fui redator, diretor de criação e diretor de planejamento de algumas das maiores agências de propaganda do Estado (MPM, Standard, Símbolo, Marca e Módulo), ganhei muitos prêmios e participei de festivais internacionais de publicidade (Cannes e Veneza) e além disso, lecionei técnicas publicitárias na PUC e na Unisinos.


São essas experiências que me permitem afirmar de cadeira, que não existe profissão onde se valorize mais a aparência das coisas, que seu real valor, do que a publicidade.
Parodiando Euclides Cunha, que disse que o sertanejo é antes de tudo um forte, me atrevo a dizer que o publicitário é antes de tudo um mentiroso.


Durante todos os meus anos como publicitário, conheci pessoas extremamente talentosas, inteligentes, cultas e criativas, que tiveram sucesso merecido em suas carreiras, mas que diariamente se dedicavam a produzir um tipo de comunicação que na sua essência era mentirosa.


Eu, como eles, mesmo tendo em dose menor essas qualidades, participei desse jogo enquanto pude.
Não se trata de produzir uma mentira grosseira, de dizer que estamos oferecendo uma lebre, quando temos na mão apenas um gato, mas de ficar sempre na superfície das coisas, de criar jogos de palavras que escondem o principal, de usar imagens que funcionam como uma ilusão de ótica.


Quando Marx disse que a religião é o ópio do povo, ele desconhecia as modernas técnicas de comunicação que os americanos criaram e venderam para o mundo inteiro. Se conhecesse, trocaria a religião pela publicidade.


O professor Luiz Gonzaga Belluzo já afirmou que o capitalismo se sustenta por causa do crédito, não ao produtor, mas ao consumidor. Esse tipo de crediário é que permite que as pessoas possam continuar comprando, mesmo sem ter recursos para isso e acabem contando sua vida, não pelos anos reais, mas pelo tempo que resta para pagar o que compraram. Trinta anos pela casa, 60 meses pelo carro, 12 meses pela geladeira e assim o consumidor fica aprisionado numa roda viva de onde ele não pode mais escapar.
E quem convence que aquele carro modelo 2019 é muito melhor que o modelo 2018 e que não possui-lo, como já fez seu vizinho, deve ser motivo de grande sofrimento para você, é o publicitário.


É claro que ele não faz isso porque é um maldoso. Ele faz porque é pago para fazer. O seu patrão, o dono da agência, que trabalha para uma empresa que precisa vender o que fabrica, mesmo que seja até algo nocivo à saúde, comprou o seu talento.
Mas, para que ele venda esse talento sem grandes culpas, é preciso que receba um salário bem maior do que o mercado paga para profissões similares (quando fui convencido a trocar o jornalismo pela publicidade, o argumento definitivo que me deram foi: você vai ganhar muito mais), que ele seja olhado como um artista e não como um artesão e que fique convencido que seu trabalho traz benefícios para a humanidade, na medida em que ajuda a melhorar os produtos e cria hábitos saudáveis (tipo escovar os dentes três vezes ao dia para vender mais creme dental) para todo o mundo.


Muitos dos profissionais com quem convivi, tinham consciência de qual era o seu papel nesse jogo e cinicamente participavam dele, como eu fiz com muito menos brilho, justificando-se com o sonho de um dia deixar de ser redator, para escrever um romance (quem sabe sobre a publicidade?) ou deixar de ser diretor de arte, para se transformar num pintor.


Antes de deixar definitivamente a propaganda, convivi também com novos profissionais que, aparentemente, não tinham mais dúvidas. Faziam parte de uma geração formada após o golpe de 64, que entre outros males que trouxe para o Brasil, tratou de fazer uma verdadeira lavagem cerebral nos jovens para que eles trocassem os velhos sentimentos de solidariedade social por um individualismo extremamente competitivo.
É bem possível que essa nova geração seja bem pior do que a minha porque não precisa mais mentir. Ela realmente acredita no que faz.


Obviamente, todas essas considerações dizem respeito aos publicitários profissionais, os velhos e os novos, e não aos donos das agências de publicidade, que apesar de quase sempre se apresentaram também como tais, são apenas negociantes que seriam bem ou malsucedidos em qualquer outro tipo de atividade, desde fabricante de embutidos até o de dono de motéis.


Mino Carta disse uma vez que o jornalista era o único profissional que chamava o patrão de colega.
Carta esqueceu o publicitário.  

Marino Boeira é jornalista, formado em História  pela UFRGS

 


Author`s name
Timothy Bancroft-Hinchey