Berlim, o cinema em prosa, verso e filosofia

Um paradoxo, enquanto a civilização da imagem se impõe sobre a nova geração, reduzindo mesmo o uso do vocabulário e dificultando o raciocínio abstrato, o Festival de Berlim surpreende propondo na sua principal mostra, a da competição internacional, nada menos que quatro filmes literários.


O filme chinês de Yang Chao, Seguindo a Corrente, é uma composição poética, calcada na navegação de um barco cargueiro enferrujado, uma verdadeira sucata, pelo longo rio Yangtzé, o maior da Ásia com 6300 quilômetros de comprimento. Nasce nos Montes Kunlum, no Tibete, atravessa a China até o mar da China Oriental, irrigando suas terras férteis e serpenteando entre montanhas.

É uma narrativa poética feita ao desfilar das imagens, como se fez no filme Cartas da Guerra, numa mistura de contos e lendas ligadas à viagem do filho do falecido capitão piloto do cargueiro, obrigado, segundo a tradição, a navegar pelo rio a fim de libertar a alma do pai ao chegar ao mar. 

O jovem Gao Chun, enquanto navega, procura em cada cidade de acostamento, encontrar o amor de sua vida, mas cada moça que encontra é sempre a mesma ou na sua cama ou correndo nos declives das montanhas costeiras. 

Os portos envoltos pela neblina ou poluição, como o de Shangai, se sucedem, surgem desfiladeiros entre altas montanhas, meandros, numa longa viagem cheia de histórias, como a da jovem que, depois de uma noite de amor, rouba o corpo de um capitão e desaparece no porto, obrigando o capitão, agora com corpo de mulher, a repetir a façanha para poder continuar a navegar. 

Não será surpresa se este filme poético, imagino em rimas chinesas, ganhar algum Urso, pela beleza das imagens flotantes, pelo som, pelas histórias e pelo caminho sobre o líquido do Yangtzé, todo ele uma história da China.

Outro filme literário do tipo epistolar foi o português Cartas da Guerra, de Ivo Ferreira, já comentado, e forte candidato ao Urso, que não chegou a ter o filme Tabu, há três anos. 

Editada em prosa é a história real do filme inglês Genius, de Michael Grandage, envolvendo um escritor, Thomas Wolfe e seu editor, Max Perkins, descobridor de talentos literários, como Hemingway e Fitzgerald. 

Mais literário não poderia ser, pois o filme começa com o editor Perkins preso no texto de um enorme pacote de páginas datilografadas, que o autor enviara à sua editora. Ali, naquela descoberta de um novo escritor, começa uma forte amizade entre o autor excentrico, hiperativo, incontrolável com o editor, um autêntico gentleman, contido e sério, cuja missão maior era a de orientar a vertente prolixa de Thomas Wolf, em favor de uma maior concisão. 

Thomas Wolfe se tornou um autor de sucesso, praticou a ingratidão de se revoltar contra seu descobridor, mas com ele se reconciliou poucos dias antes da morte prematura com trinta e poucos anos. 

O outro filme literário é O Futuro, da francesa Mia Hansen-Love com a atriz Isabelle Huppert, séria candidata ao premio de melhor atriz. Conta a vida academica de um casal, ela é professora de filosofia num liceu parisiense, escreve numa coleção de livros filosóficos de uma pequena editora, enquanto o marido leciona numa universidade. 

O clima na família é intelectual com cenas, no filme, de gente comprando livros, lendo no transporte público, discutindo o que leu em casa, com amigos ou na escola, ou seja, um filme bem francês. Nesse contexto filosófico literário, o marido encontra uma espanhola e rompe um casamento de 26 anos, a mãe da professora morre e a editora suprime a coleção na qual ela escreve. Só lhe resta um gato e a necessidade de se adaptar à nova vida solitária.

Livros, poesia, cartas de amor, tratados de filosofia, editor de livros à procura de autor de sucesso, esse é o 66. Festival de Cinema de Berlim, sem se esquecer de que praticamente quase todos os filmes se inspiraram em livros de sucesso, como Sós em Berlim, romance inspirado numa história real de Hans Fallada.

Rui Martins está em Berlim, convidado pelo Festival Internacional de Cinema.

 


Author`s name
Timothy Bancroft-Hinchey