Atenção BRICS: Serguei Lavrov está desistindo dos 'EUA-ocidente'

Ontem assisti a um interessante programa da TV russa, "O direito de saber", que mostrou uma entrevista ao vivo, de uma hora, com Sergei Lavrov, ministro de Relações Exteriores da Rússia, em conversa com cinco jornalistas russos. Nada tão importante que justifique o trabalho de traduzir, mas quero partilhar com vocês algumas coisas que já observei no passado e que reapareceram poderosamente expressas durante aquela conversa.


14/9/2014, The Saker, Vineyard of the saker - http://goo.gl/2irg4X


Como se poderia prever, os tópicos incluíram a guerra civil na Ucrânia; a situação da investigação sobre o ataque e derrubada do avião malaio MH17, sanções contra a Rússia, a expansão da OTAN, as negociações em Minsk e o engajamento da Rússia com os países BRICS.

Em todos esses tópicos o programa seguia roteiro semelhante: um dos jornalistas pedia que Lavrov comentasse o que acontecera numa ou outra circunstância e Lavrov confirmava: "é verdade, tentamos tudo que foi possível, mas sem resultado positivo. Lamentamos muito." O mais curioso foi que os jornalistas manifestavam surpresa, alguns até indignação por as coisas terem chegado ao ponto que chegaram, mas a reação de Lavrov era "é, vocês têm razão, não tem jeito mesmo. É situação completamente sem esperanças". O efeito geral era de um conselho de classe escolar, com os professores discutindo a situação de um aluno inapelavelmente idiota e incapaz de melhorar. De diferente, só, que, naquele caso, o 'aluno' era o chamado 'ocidente'.

Por exemplo, sobre o caso do voo MH17, os jornalistas mostraram surpresa ante o vazio de resultados e a total esterilidade do relatório 'oficial' recém divulgado. Observaram que toda a imprensa-empresa ocidental entrou em surto de histeria, com manchetes do tipo "Putin Terrorista" ou "Basta! Basta!", como se não soubessem que a investigação continua. A reação de Lavrov foi "é verdade. Bom... fizemos o possível no Conselho de Segurança, apresentamos nossa contribuição, queríamos um total cessar-fogo para que o local do acidente pudesse ser periciado adequadamente, oferecemos as nossas informações, conversamos com os malaios, quisemos conversar com os especialistas, mas eles só conversaram com a Junta em Kiev, passaram 15 dias lá e só conversaram com a Junta. Ainda temos detalhes a esclarecer com os peritos, mas, ao que se vê, só nós continuamos interessados em obter investigação completa e completamente transparente" (não é citação, mas é paráfrase bem confiável das palavras de Lavrov). A impressão que resta da conversa toda é algo como "sinceramente, com gente assim não há o que fazer. O que mais poderíamos tentar?"

Sobre as sanções, os jornalistas disseram que vários países estão surpresos com a velocidade com a Rússia afastou-se do 'ocidente' e começou a construir relações com Ásia, África, América Latina e com o subcontinente indiano. Mais uma vez, a resposta de Lavrov foi "é, nós mesmos também nos surpreendemos, nós mesmos, com a rapidez dos eventos. Mas não tivemos escolha."

Não é o único programa de entrevistas que passa essa mensagem. A impressão que tenho é que a Rússia desistiu dos EUA-'ocidente'. Claro: vão continuar a conversar, e a Rússia tentará, mesmo contra qualquer probabilidade, arrancar comportamento adulto responsável dos políticos ocidentais. Mas ninguém na Rússia tem qualquer esperança de conseguir.

Em outro programa desse tipo (Sunday Evening with Vladimir Soloviev) os participantes observaram que a Alemanha assumira o papel de pressionar a Finlândia, a República Eslovaca e outros países que não queriam adotar mais sanções. Outra vez, a mensagem russa foi "esqueçam os alemães. Esse pessoal não tem jeito."

Creio que há sincero e muito difundido sentimento de desgosto e de descrença, na Rússia, em relação aos países da União Europeia. Quanto aos EUA, os russos já veem os norte-americanos como lunáticos messiânicos, militantes do ódio racista e nacionalista, capazes de fazer qualquer coisa para causar dano à Rússia, do modo que encontrem à mão, por doido, absurdo, inútil ou hipócrita que seja.

Tudo isso se resume a um consenso que se vai generalizando segundo o qual, por mais que qualquer guerra contra os EUA e OTAN deva ser evitada, pouco mais haveria a ganhar dos esforços para manter a paz. Muitos políticos dizem hoje que "nossa política externa sempre foi excessivamente influenciada pelo 'ocidente'. Isso agora tem de mudar - o futuro da Rússia está noutro lugar".

A implantação de sanções contra a Rússia é perfeito exemplo disso. Enquanto apenas alguns direitistas mais ferozes e pró-EUA ainda reclamam (e, sim, é claro que essa gente sempre existe). Há também muita gente que entende que, apesar de não se encontrarem ostras 'belon' francesas à venda em Moscou, as sanções chegam como perfeita bênção, uma vez que forçam a Rússia a separar-se do 'ocidente' - separação que, para muitos russos, já deveria ter acontecido há muito tempo. No curto prazo, as sanções ocidentais 'morderão', sobretudo no mercado de alguns itens high-tech, mas no longo prazo e nos grandes números, muita gente entende que o principal erro, e erro muito mais grave, desde o início, era depender do 'ocidente' para aquele tipo de produto.

Mais uma vez, a emoção dominante é de desgosto, estranheza e cansaço. Embora um homem tão finamente educado nas artes da diplomacia, como Lavrov, jamais o declare nesses termos, a reação geral já é claramente que "vocês, europeus estão em decadência; vocês fracassaram; não precisamos de vocês para nada; goodbye". Mas dito sem qualquer ira e, de fato, quase que só com tristeza. 

Não creio que diplomatas russas venham a fazer altas declarações antiocidente na ONU ou seja onde for. O contrário do amor não é o ódio: o contrário do amor é a indiferença. 

Os funcionários do governo russo continuarão a falar de "nossos parceiros" e, até, de "nossos amigos", mas, ao mesmo tempo em que a retórica bem-soante continuará, as relações com o Ocidente irão gradualmente deixando de ser prioridade para a diplomacia russa, para o business russo e mesmo para a opinião pública russa em geral. De fato, a Rússia já está construindo um mundo multipolar e, se o Ocidente não quer ter lugar nesse mundo... problema dele. Os russos sabem que o Ocidente não pode impedir a emergência desse novo mundo, e realmente pouco se incomodam se o Ocidente recusar-se a aceitar a nova realidade ou resistir contra dançar segundo as novas regras.

Mais uma coisa: os russos estão, sim, com certeza, muito furiosos com a posição extremamente agressiva da OTAN, porque a interpretam - corretamente - como sinal de hostilidade. 

Mas, ao contrário do que vários blogueiros têm dito, os russos não temem a ameaça militar que a OTAN está fazendo. A reação dos russos contra os mais recentes movimentos da OTAN (novas bases e mais soldados na Europa Central, mais gastos, etc.) é denunciá-los como provocação. Mas todos os funcionários russos insistem em que a Rússia tem meios para responder à ameaça militar. 

Como disse um deputado russo, "cinco grupos de reação rápida [como a OTAN definiu sua 'nova estratégia'] é problema que se resolve com um único míssil". É fórmula simplista, mas basicamente correta. Putin disse exatamente a mesma coisa, quando informou, sem margem de dúvida, que, em caso de ataque convencional massivo "seja de quem for", a Rússia, sim, usará suas armas atômicas táticas. 

De fato, se a OTAN prosseguir com a estupidez que é o plano de estacionar tropas na Polônia e/ou nos países do Báltico, entendo que a Rússia se afastará do Tratado de Forças Nucleares Intermediárias (IRNF) e usará sucessores avançados do famoso RSD-10 (SS-20).  Como já escrevi antes, a decisão de duplicar o tamanho das Forças Russas Aerotransportadas e de atualizar o status do 45º Regimento Especial Aeroembarcado de elite, para dimensões de brigada, já foi tomada.  Pode-se dizer que a Rússia estava prevendo a criação da força da OTAN, de 10 mil soldados,  no momento em que duplicou as dimensões de suas próprias forças aerotransportadas, de 36 mil, para 72 mil soldados. Já tendo, portanto, tomado as providências necessárias para dar conta da ameaça militar, o Kremlin pode agora passar a cuidar dos assuntos realmente importantes.

Dentre as várias concepções distorcidas que acolhemos em nossa cabeça durante nosso 'adestramento' ocidental (não consigo chamar a coisa de "educação"), nós, no ocidente, temos uma tendência a ver nossa parte do mundo como o centro do planeta, e alguns até enchem a boca para dizer que os EUA seriam a única nação indispensável, a única realmente importante. É o que se vê até em nossos mapas sistematicamente centrados na Europa ou nos EUA e na crença já quase dogmática nos EUA de que ninguém é ou será jamais mais importante que os norte-americanos.  Tudo isso está errado.

De fato, o Império Anglo-sionista Norte-americano está em declínio, lento mas inexorável. Todo o resto do mundo lhe fará ainda algumas reverências, mas, mais ou menos rapidamente, lhe dará as costas e seguirá adiante. Se, nas instalações de adestramento a que chamamos 'escolas' houvesse professores realmente capazes de educar gerações para o mundo em que realmente viverão, todos já teriam começado a desenhar mapas centrados na China e ensinariam aos jovens trainees que já ninguém mais leva a sério os chamados "valores ocidentais".

IMAGEM: "Nosso norte é o sul", mapa de Joaquin Torres Garcia, 1943
http://goo.gl/4z5NKX


Até Obama já anunciou seu "pivô" para a Ásia! Só que, à maneira típica dos anglo-sionistas, o tal "pivô" significava, apenas, que os EUA usariam mais forças militares e mais pressões para obrigar o mundo a obedecer aos desejos do Império. De modo bem diferente do que fazem os EUA, a Rússia não anunciou "pivô" algum, mas Putin já se reuniu quatro vezes, só em 2014, com Xi Jinping; e os dois lados declararam que sua parceria estratégica é a mais forte que jamais houve na história das relações entre os dois países.

Não há dúvida de que a Rússia está realmente voltando o olhar para a China, a América Latina, África e outras partes do mundo. Seus diplomatas continuam a conversar, sorrir, falam de "parceiros" e "amigos", mas creio que estamos assistindo a um evento histórico: pela primeira vez, desde o século 13, a Rússia está-se distanciando do Ocidente e começou a apostar o próprio futuro em associação com a Ásia (e o resto do planeta).  *****

 


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Timothy Bancroft-Hinchey