Brasil: Lei de acesso ao patrimônio genético

Governo abre consulta sobre o decreto que regulamentará lei de acesso ao patrimônio genético

Consulta ficará aberta até o dia 2/5. Acesse o link para participar e veja o guia feito pelo ISA para entender o assunto. Confira o artigo de Nurit Bensusan, coordenadora adjunta de Política e Direito Socioambiental do ISA

Nurit Bensusan

O governo federal colocou em consulta pública, até o dia 2/5, a proposta de decreto que vai regulamentar a Lei no 13.123/2015, que rege o acesso e exploração do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado (leia mais no quadro abaixo) (acesse o link da consulta). Depois disso, irá recolher as contribuições e fechar o texto final. Ainda não se sabe quando o decreto será publicado exatamente. O ISA produziu um  guia para entender o decreto e a nova lei e facilitar a participação na consulta.

Há dezenas de questões que a Lei 13.123/2015 - que trata do acesso e exploração do patrimônio genético e dos conhecimentos tradicionais e que entrou em vigor em meados de novembro do ano passado (saiba mais no quadro abaixo) - empurrou para a regulamentação. Sem o decreto regulamentador, não há sistema de cadastro de acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional. Sem o decreto, não se sabe qual será a composição do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen), órgão responsável pela coordenação do tema. Sem o decreto regulamentador, não se sabe como funcionará, e se funcionará, o Fundo Nacional de Repartição de Benefícios. Sem regulamentação, nem mesmo amostras do vírus da Zika podem ser remetidas para fora do Brasil para análise em outros laboratórios.

A lista é longa, mas o curioso é que, para quem quer acessar patrimônio genético ou conhecimento tradicional hoje, o decreto regulamentador não faz falta! Isso porque a lei criou uma situação esdrúxula: quem acessa, e o acesso é entendido apenas como pesquisa ou desenvolvimento tecnológico, não precisa fazer absolutamente nada até o momento onde resolve remeter o patrimônio genético para o exterior, requerer algum direito de propriedade intelectual, comercializar algum produto ou divulgar seus resultados. Somente nesse momento, o usuário precisa fazer o cadastro, mesmo que isso aconteça muitos anos após o acesso. No caso de acesso ao conhecimento tradicional, de acordo com a Lei, o usuário deve realizar um procedimento de consentimento prévio informado, mas só precisa apresentá-lo no momento do cadastro. E, para piorar, a Lei não garante que esse procedimento será checado por alguém para assegurar que foi feito de maneira adequada.

Um dos resultados disso é que a rastreabilidade, o controle e a fiscalização do acesso e do uso do patrimônio genético ficam comprometidos. Outra consequência é a vulnerabilidade do conhecimento tradicional, qualquer um pode acessar tais saberes e só muito mais tarde, ou mesmo nunca, agregar o procedimento de consentimento prévio informado ao cadastro. E, como na Lei não há mecanismo claro de checagem do cadastro, quem acessou conhecimento tradicional de forma inapropriada dificilmente será punido.

A minuta de decreto em consulta no momento tenta resolver, ainda que de maneira incipiente, alguns desses problemas. Por exemplo, cria um mecanismo de verificação do cadastro, a ser realizado pela Secretaria Executiva do CGen. Tal mecanismo, porém, nada condiciona e sua consequência, um atestado de acesso, pode ser emitida tacitamente se a Secretaria Executiva não conseguir verificar o cadastro no prazo de 90 dias.

Outro dispositivo da minuta de decreto é a exigência de que o cadastro de acesso ao conhecimento tradicional seja realizado em até 30 dias da obtenção do consentimento prévio informado. Antecipar o cadastro para os casos de acesso ao conhecimento tradicional é uma boa ideia, porém, esse dispositivo enfrenta pelo menos dois problemas. O primeiro é que o consentimento é pré-condição para o acesso, mas o acesso é definido pela Lei como pesquisa ou desenvolvimento tecnológico. Isso quer dizer que a coleta de informações junto aos detentores de conhecimento tradicional pode não ser caracterizada como acesso. O segundo é que o cadastro e seu eventual processo de verificação acontecem após a coleta de informações e, se o procedimento de consentimento prévio informado for mal feito, no momento da verificação será tarde demais, pois os saberes coletados já terão sido transmitidos.

É evidente que o decreto só poderá existir dentro do espaço da Lei. Esse espaço, em especial para detentores de conhecimento tradicional e para aqueles preocupados com a integridade da biodiversidade brasileira, é exíguo, mas ainda assim, a minuta poderia garantir mais direitos e assegurar mais proteção ao nosso patrimônio genético e ao conhecimento de povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares.

O que são os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais?

Os recursos genéticos da biodiversidade são encontrados em animais, vegetais ou micro-organismos, por exemplo, em óleos, resinas e tecidos, encontrados em florestas e outros ambientes naturais. Já os recursos genéticos da agrobiodiversidade estão contidos em espécies agrícolas e pastoris. Comunidades de indígenas, quilombolas, ribeirinhos e agricultores familiares, entre outros, desenvolvem e conservam, por décadas e até séculos, informações e práticas sobre o uso desses recursos. Esses são os chamados conhecimentos tradicionais.

Tanto o patrimônio genético quanto os conhecimentos tradicionais servem de base para pesquisas e produtos da indústria de remédios, sementes, gêneros alimentícios, cosméticos e produtos de higiene, entre outros. Por isso, podem valer milhões, bilhões em investimentos. O Brasil é a nação com maior biodiversidade do mundo e milhares de comunidades indígenas e tradicionais, daí ser alvo histórico de ações ilegais de biopirataria, crime que a nova lei deveria coibir e punir.

Foto: Tui Anandi - ISA

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Pravda.Ru Jornal