Projeto de vários milhões de dólares financiados pelo governo australiano na Universidade de Sydney, e conectado a especialistas em 'marketing político' [orig. spin doctors] em Washington, está usando método secreto para desacreditar eleições em inúmeros países 'inimigos'.
O Projeto Integridade Eleitoral (Electoral Integrity Project, EIP), estabelecido em 2007, é mais uma iniciativa política pesadamente enviesada a favor dos EUA, que já comprometeu a independência da mais antiga universidade da Austrália (vide Anderson, 2010).
Um dos países alvos hoje é a Venezuela socialista, que enfrenta atualmente outra campanha de desestabilização conduzida a partir de Washington. Os recentes episódios de violência começaram no início de 2014. Recentemente [mar.-2015], foram presas várias figuras da oposição, acusadas de assassinato e conspiração para golpe de Estado. O pretexto para a eclosão da violência foram os discursos e noticiário de jornais, segundo os quais o governo do presidente Nicolas Maduro, ninguém entende como ou por quê, não teria legitimidade democrática.
Radicais e populares que sejam, os governos bolivarianos venceram 12 das últimas 13 eleições na Venezuela. Além disso, 80% da população em idade para votar compareceu às urnas na eleição de 2013, vencida por Maduro (International IDEA 2015). É aumento muito significativo em relação ao número de votantes dos anos 1990s, quando o candidato e depois presidente Hugo Chávez efetivamente atropelou o velho e moribundo sistema bipartidário. E o sistema eleitoral venezuelano é seguro.
Até jornalistas políticos a serviço do jornal El Universal, antigoverno, elogiam o sistema eleitoral venezuelano, como "um dos mais tecnologicamente avançados e verificáveis sistemas de votação em todo o mundo", com proteções contra fraudes e manipulação de resultados, além de mecanismos para recontagem de votos (Martinez, 2013).
O programa Electoral Integrity Project da Universidade de Sydney, conta história muito diferente. Segundo relatório que aquele programadivulgou em 2015, a eleição presidencial de 2013 na Venezuela teria sido das piores do mundo, 110ª colocada num ranking de 127 eleições [as eleições presidenciais no Brasil, dia 26/10/2014, foram consideradas até que prestáveis: aparecem no 27º lugar do mesmo índice; mas não chega a ser informação relevante, posto que as 'eleições' na Ucrânia, que 'elegeram' Poroshenko aparecem em 58º lugar. Cf. The Year in Elections, 2014 Final, p. 8 (NTs)].
Para 'comprovar' suas conclusões, o programa exibe uma pesquisa segundo a qual o índice de aprovação do presidente Maduro seria de apenas 24%; e "85% dos venezuelanos entendem que o país caminha na direção errada" (NORRIS et al 2015: 31).
Mas o Programa EIP, de 'integridade eleitoral' ignora completamente as pesquisas de Hinterlaces Polls, que constataram que a popularidade de Maduro (durante a mais recente crise) manteve-se entre 39% e 52%. O Programa de 'integridade eleitoral' da Universidade de Sidney também não considera pesquisas que mostram a altíssima rejeição que as tentativas violentas para derrubar o presidente eleito geram entre os eleitores venezuelanos (DUTKA 2014).
O programa de 'integridade eleitoral' apresenta impressionante floresta de dados para construir seus rankings de legitimidade de eleições por todo o mundo; mas... de onde tiram todos aqueles números? É praticamente impossível chegar até os fundamentos da pesquisa, mas o método envolve complexo quadro de critérios não explicitados e "consulta a especialistas" cujos nomes são mantidos secretos. Significa que os números e rankings dependem de opinião de 'especialistas' anônimos. Pesquisas de opinião cientificamente aproveitáveis e índices reais de comparecimento de eleitores, que são indicadores reconhecidos para avaliação de governos e governantes, recebem referência apenas protocolar.
Além de tudo isso, pode haver enorme diferença entre a percepção popular[1] e o entendimento de especialistas. Dado que praticamente toda a imprensa-empresa de comunicação de massa permanece em mãos de uma mínima oligarquia, para a qual a Venezuela estaria convertida em 'ovelha negra' do continente, a imagem que a 'mídia' divulga do governo e dos governantes venezuelanos é praticamente sempre muito distorcida.
Pesquisas realizadas pelo instituto chileno LatinoBarómetro (2014: 8-9) ilustram muito bem esse ponto. A imagem da democracia venezuelana, quando avaliada de fora do país é mediana (em 2010, 41% dos entrevistados declararam-se favoráveis ao governo venezuelano; em 2013, foram 47%). Mas dentro da Venezuela, 70% dos venezuelanos aprovam a democracia na qual vivem no próprio país; só perdem para os uruguaios, em aprovação ao próprio governo, na América Latina. O próprio Latino Barómetro (2014: 9) mostra-se surpreso com esses resultados:
"Os cinco países onde os cidadãos mais apreciam a própria democracia são países governados pela esquerda: Uruguai, Venezuela, Argentina, Equador e Nicarágua (...). Claramente, a democracia da qual os cidadãos falam não é a mesma democracia da qual os especialistas falam."
Mas e a democracia não tem de ser avaliada pelos que podem (ou não podem) participar? A opinião de 'especialistas' distanciados ou 'isentos' parece bem pouco importante. A abordagem dos 'especialistas' é a abordagem da elite. Nos termos do International Covenant on Civil and Political Rights (art. 25), direito(s) democrático(s) é:
"o direito de, e a oportunidade para, participar na condução dos assuntos públicos, diretamente ou mediante representantes escolhidos livremente."
Há aí clara referência ao direito dos cidadãos dentro de um determinado corpo político. O método do Projeto 'Integridade Eleitoral', que confia desmesuradamente na opinião de 'especialistas' cujos nomes não são divulgados, parece ter sido concebido sem qualquer rigor e - ainda mais grave - parece ter sido pensado para atropelar esse princípio.
Em todos os casos, esse tipo de abordagem elitista é consistente com o 'modelo' promovido pela ONG National Endowment for Democracy (NED), organização mantida pelo governo dos EUA, criada durante o governo Reagan na segunda guerra fria do início da década dos 1980s [dia 6/8/2015, a NED foi expulsa do território russo, nos termos da Lei das ONGs indesejáveis (port. Blog do Alok) (NTs)].
A NED (quase sempre se servindo de intermediários) financia e mantém uma longa lista de organizações, em esforços para 'modelar' democracias ou 'sociedades civis', para torná-las mais subservientes aos desejos e ordens que recebam de Washington. Um dos fundadores e primeiro presidente da NED, Allen Weinstein, disse em entrevista ao Washington Post em 1991, que "Grande parte do que fazemos hoje era feito clandestinamente pela CIA, há 25 anos" (LEFEBVRE, 2013). Pura verdade. Como as 'operações 'psy' da CIA, a NED sempre apareceu implicada em golpes e planos de desestabilização em vários países latino-americanos, dentre os quais Nicarágua, Haiti e Venezuela (KURLANTZICK, 2004; LEFEBVRE, 2013; GOLINGER, 2006). O conceito de democracia disseminado pelaNED-EUA já foi exposto nos seguintes termos:
"democracia de cima para baixo, limitada (ou poliarquia), (...) na qual as elites decidem sobre candidatos e programas recomendáveis para serem expostos ao povo" (SCIPES 2014).
O pesquisador francês Olivier Guilmain (TEIL, 2011) diz que a NEDfinancia partidos de oposição em vários países e "garante ajuda especial a exilados e opositores de regimes que o Departamento de Estado dos EUA tenha decidido derrubar".
Eva Golinger, cujo livro El Codigo Chávez (esp.) expôs o envolvimento do governo Bush no fracassado golpe de 2002, documentou a atividade da NED-EUA na desestabilização e em tentativas de golpe na Venezuela. No último ano, um pouco mais, a NED consumiu vários milhões de dólares para manter e promover grupos de oposição na Venezuela,
"inclusive com dinheiro para as campanhas políticas em 2013 e para os protestos antigoverno em 2014"' (GOLINGER, 2014). Para a autora, trata-se da "mesma velha tática suja de golpe em preparação" (GOLINGER, 2015)."
Não surpreenderá ninguém, portanto, saber que há inúmeros pontos de contato entre essa NED-EUA e outros órgãos do governo dos EUA, e o Projeto Integridade Eleitoral.
A pesquisadora-chefe do Projeto, professora Pippa Norris [autora de "Engenharia eleitoral" (ing.)] - inclui com muito orgulho em seu currículo o trabalho de consultora da NED-EUA e cita os nomes de pelo menos seis parceiros seus ("sem o apoio dos quais o Projeto Integridade Eleitoral não teria sido possível") - foi diretora do sistema norte-americano de distribuição de fundos para pesquisa.
O método de trabalho e operação do Projeto Integridade Eleitoral, de só ouvir e considerar opiniões de 'especialistas' parece bem consistente com aquela "democracia de cima para baixo, limitada (...) na qual as elites decidem sobre candidatos e programas recomendáveis ou não para serem expostos ao povo".
Pior: o Projeto Integridade Eleitoral da NED-EUA e da Universidade de Sidney opera a partir das opiniões de atores anônimos. Um membro do Projeto explicou-me a coisa nos seguintes termos:
"Temos de preservar a confidencialidade de nossas fontes, como parte de nossas obrigações legais (...) Revelar o nome dos especialistas que trabalham conosco poderia gerar riscos para eles nos vários estados que não respeitam direitos humanos e calam os críticos."
Digam o que quiserem, opiniões de gente anônima não é meio confiável para avaliar a legitimidade de coisa alguma, menos ainda de um Estado independente. Esse sistema de 'trabalho' contradiz os princípios de abertura e transparência, que o Projeto Integridade Eleitoral jura promover e avaliar. Quem são esses 'especialistas' anônimos? Incluem figuras da oposição, em países cujos governos eleitos os EUA estejam atacando? Incluem insiders de Washington que fornecem assessoramento para planos de desestabilização e golpes? Quanto mais se procura, mais se descobre que o Projeto Integridade Eleitoral absolutamente não leva a sério o bem fixado princípio que recomenda evitar conflitos de interesses.
É também muito alarmante que o Projeto Integridade Eleitoral, como projeto acadêmico mantido também pelo governo da Austrália, cujo subtítulo ("Por que eleições fracassam e o que se pode fazer nesse contexto") [Why Elections fail and what we can do about it') sugere medidas e procedimentos, use repetidas vezes a mesma expressão - "eleições falhadas [que] erguem preocupantes bandeiras vermelhas" -, aplicada a vários estados, inclusive à Síria.
Sabe-se muito bem que em setembro de 2013 os EUA tiveram de abortar, no último momento, uma grande ação de intervenção militar na Síria, depois de campanha de mentiras que divulgou para todo o mundo, que o governo sírio teria usado armas químicas contra crianças (para confirmar que são mentirosas todas essas notícias fartamente divulgadas por veículos jornalísticos em todo o mundo, sempre a partir dos EUA, ver HERSH 2013 & 2014; LLOYD e Postol 2014; ISTEAMS 2013).
Será que o Projeto Integridade Eleitoral busca associar-se com intervenções militares, no caso de países que não atendam aos seus nebulosos conceitos?
O projeto pôs as eleições presidenciais da Síria, em 2014, na antepenúltima linha de seu 'ranking' (125 de 127), baseado na 'percepção de integridade eleitoral' de seus 'especialistas' anônimos (Norris et al 2015: 11). A única explicação para tal classificação é uma nota curta que observa que "as eleições foram profundamente viciadas, porque algumas áreas do país não estavam sob controle do governo, e não houve votação nas áreas onde os insurgentes eram mais fortes"; além do fato de que a "Coalizão Nacional" (grupo da oposição mais pesadamente financiado pelo ocidente) boicotou as eleições (Norris et al 2015: 27). As duas sentenças enunciam fatos verdadeiros, mas que nada explicam do que deveriam explicar.
Os 'especialistas' do Projeto Integridade Eleitoral parecem obcecados com a Síria: os mesmos argumentos que se aplicaram à Síria, não se aplicaram à Ucrânia, que aparece em colocação bem digna (78ª, de 127) (NORRIS et al 2015: 10).O grupo IDEA (2015), que monitora eleições pelo mundo e é parceiro do Projeto Integridade Eleitoral, informa que 50% dos eleitores registrados compareceram às urnas na Ucrânia; na Síria, nas eleições de 2014, compareceram 73% dos eleitores registrados.
Bem visivelmente, a política exterior dos EUA é que 'empurra' as 'pesquisas' para um lado, ou para outro: Washington arma a 'oposição' na Síria, e a 'situação' na Ucrânia. Também a NED-EUA financiou diretamente a 'oposição' síria (NED 2006; TEIL 2011; IRI 2015) e não parou de exigir apoio militar para o governo ucraniano (Sputnik 2014; ver também PARRY 2014).
Por fim, deve-se observar que as eleições de 2013 em Israel foram cuidadosamente avaliadas pelo Projeto Integridade Eleitoral e classificadas em excelente 17º lugar, de 127 (NORRIS et al 2015: 8). O fato de Israel ser Estado racista, com vários milhões de palestinos desalojados do próprio território, mantidos confinados em territórios controlados por militares e praticamente sem qualquer direito civil ou político, não impacta a "percepção de integridade eleitoral" que o Projeto avalia. Confirma rigorosamente o que o Eixo Washington-Telavive vive a ensinar ao mundo sobre Israel: que seria "a única democracia na região" (e.g. GOLDMAN 2015, etc.). Os dois pesos estão aí, escandalosamente à vista.
Com os laços íntimos que conectam o Projeto Integridade Eleitoral e o projeto político dos EUA, e as ideias elitistas que ali se cultivam sobre o que seria 'democracia', não há dúvidas de que não se cuida, aí, nem conflito de interesses, nem de método de pesquisa que preste.
16/3/2015, Prof. Tim Anderson, Global Research