O show da coalizão, do Afeganistão ao 'Siriaque'

O secretário de Estado dos EUA Kerry acertou um negócio no Afeganistão, instalou lá um governo de 'coalizão', mas não conseguiu coalisão crível para bombardear o Estado Islâmico (EI) na Síria. Então o Pentágono teve de cuidar ele mesmo do bombardeio, sob aplausos de seus 'aliados-petrodólares' do Golfo.


24/9/2014, Pepe Escobar, RT -- http://rt.com/op-edge/189952-syria-Afeganistão-us-coalition-isis/



O conto de duas coalizões

Comecemos pelo Afeganistão. O quebra-cabeças em Kabul atende pelo nome de "acordo para partilha do poder".

Você está com problemas eleitorais? Chame John Kerry. É! Esse "acordo" foi negociado por ninguém menos que o secretário de Estado dos EUA, o qual varreu o embaraçoso problema de eleição democrática fraudada para baixo de um tapete afegão.

Chegou a tal ponto, que o representante da ONU, Jan Kubish, virtualmente ordenou à comissão eleitoral afegã que não divulgasse números de votos.

E, isso, enquanto a própria ONU monitorara uma auditagem, com recontagem de aproximadamente 8 milhões de votos.

Os "altos funcionários dos EUA" de sempre espalhavam a notícia de que o resultado da eleição era "transparente." Mas, mesmo assim, nada de números.

Então, temos agora - essencialmente indicado por Washington - um ex-ministro das Finanças e funcionário do Banco Mundial Ashraf Ghani, como presidente; e o Dr. Abdullah Abdullah como "Chefe Executivo", posto criado agora.

E, isso, depois de Abdullah ter insistentemente clamado que os resultados da eleição não passavam de fraude-monstro. A "think-tank-lândia", sem se deixar abalar, declarou que se tratava de "remendo temporário".

Agora, revelação totalmente importante: o honcho top da OTAN general Philip Breedlove disse no sábado na Lituânia, que os dois "partilhadores-de-poder" juraram pela própria vida que assinarão "rapidamente" um acordo de segurança com Washington.

Esse acordo foi negociado, mais uma vez, por Kerry, com o presidente que está deixando o governo, Hamid Karzai, no final de 2013 - e aprovado pela Loya Jirga do Afeganistão. Mas Karzai recusou-se a assinar o tal acordo.

Tradução instantânea: pelo menos 10 mil soldados norte-americanos - a maioria das Forças Especiais - permanecerão no Afeganistão em modo de Liberdade Duradoura Eterna. É um Acordo sobre o Status das Tropas [orig. Status of Forces Agreement (SOFA)], com outro nome.

Significa que a ocupação continua. Não só com soldados dos EUA, mas também com a OTAN iniciando uma "missão de treinamento" em janeiro de 2015, batizada "Apoio Resoluto" [orig. Resolute Support].

Preparem-se para o revide, garantido, gigante, que virá. Não é mistério para ninguém que os Talibã continuarão a manifestar o mais resoluto apoio à tarefa de chutar o traseiro coletivo de OTAN-EUA. Mas... Excelente. Disso exatamente trata a GGaT (Guerra Global ao Terror) pensada para ser guerra sem fim.

Na dúvida, bombardeie todo mundo

Agora, quanto à coalizão para combater o Califa Ibrahim, autonomeado profeta degolador do ISIS/ISIL/EI no "Siriaque".

A embaixadora dos EUA à ONU Samantha Power está numa roda viva, com a assembleia geral da ONU essa semana em New York. Repete freneticamente que são mais de 40 países já reunidos na coalizão dos relutantemente desejantes/dispostos reunidos para dar combate ao Califa. Mas nunca dá a lista com os nomes - nem qualquer detalhe de o que farão os mais de 40.

A única coisa que ela sabe é que esse novo capítulo da GGaT durará "vários anos".

Power também descartou qualquer colaboração com o Irã "estado-bandido". Mas foi obrigada a admitir que a Rússia tem papel na luta contra o Califa. Ah-ha! Essa é estrondosa novidade. Até virtualmente ontem, para o governo Obama, a Rússia não passava de "o império do mal" remixed.

Moscou alertou, sim, que "bombardear a Síria sem a cooperação de Damasco pode ter consequências práticas destrutivas sobre a situação humanitária na Síria."

Mais uma vez, a coisa mais clara que se extraiu de Samantha Power foi que "não faremos sozinhos os ataques aéreos se o presidente decidir fazer os ataques aéreos".

E, mais uma vez, John Kerry roubou o show. Para ele, não são 40, mas "uns 50", os países que mal se contêm de tanta vontade de saírem em caça ao Califa.

Kerry, diga-se a favor dele, e diferente de Power, já está dizendo agora, pelo menos, que o Irã pode "ter alguma função", afinal de contas.

De sua parte, o vice-ministro de Relações Exteriores do Irã Abbas Araghchi deixou bem claro que qualquer estratégia que mine o governo sírio "será receita para a derrota."

E o embaixador da Rússia na ONU, Vitaly Churkin, demoliu a estratégia do presidente Barack Obama dos EUA para treinar e armar os tais rebeldes sírios "moderados" que são o mito de Washington.

Até o embaixador da China na ONU, Liu Jieyi, avaliou cautelosamente que "a comunidade internacional tem de respeitar a soberania, a independência e a integridade territorial dos países em questão."

Kabul foi mamão com açúcar. Kerry só teve de oferecer a propina certa, mas que não atrapalhasse os negócios do Califa.

Washington recusa-se a cooperar com Damasco e a coordenar ações com Teerã - sobretudo depois que o Supremo Líder Aiatolá Khamenei vetou, e o presidente Rouhani declarou "ridícula" a estratégia de Obama.

A Turquia, entrementes, que é aliada da OTAN, grita que "o regime sírio é o patrão do extremismo", palavras do ministro de Relações Exteriores da Turquia Mevlut Cavusoglu.

Kerry pelo menos não precisou subornar Haider al-Abadi, novo primeiro-ministro do Iraque. Afinal, Washington já meteu no saco a sua mudança de regime mesopotâmico, livrando-se de Nouri al-Maliki.

Al-Abadi decidiu não bombardear regiões sunitas no Iraque. De fato, a maioria dos rapazes e dos recursos do Califa estão realmente na Síria.

Chame o sujeito das batatas fritas à francesa

O Pentágono, para não ficar por fora, preparou cuidadosamente uma operação "mini-Choque e Pavor" na Síria e começou com estilo na 2ª-feira, com uma barragem de mísseis Tomahawk sobre Raqqa.

O "general" Hollande na França estava louco para mostrar serviço. Com a popularidade já se acercando perigosamente do zero, pôr-se a caçar bandidos usando seus Rafales é o único jogo na cidade em que o aceitariam.

Comparem-se Hollande e o ministro de Relações Exteriores da Alemanha Frank-Walter, que disse mais de uma vez que, fosse apoio aéreo fossem coturnos em solo, "tudo isso está fora de questão para a Alemanha".

Difícil imaginar Kerry oferecendo propinas a Steinmeier. E assim chegamos à real coalizão só de dois: Washington e Paris.

E só no Iraque, porque até o "general" Hollande já disse que bombardear a Síria, nem pensar.

Vejam: bombardear a Síria terá de ser feito mediante uma coalizão do Pentágono com o Pentágono.

E, isso, enquanto "diplomatas" árabes - como a gangue do petrodólar do CCG (Conselho de Cooperação do Golfo) - continuam insistindo que o Pentágono deve de fato bombardear não só os bandidos do Califa mas, também, os soldados de Bashar al-Assad. E isso, afinal, é o que o Pentágono manterá sempre, seja como for, "secretamente", em mente.

Todos lembram a linha vermelha de Obama, ano passado, quando ameaçou bombardear Damasco por "usar gás venenoso contra o próprio povo", até que Moscou, no último minuto, obrigou Obama a recuar.

Agora Obama pode realizar seu sonho com um simples bombardeio "liderado pela retaguarda". E a gangue do petrodólar também atacará? Claro que não. Só aplaudirão, das coxias.

E para quem ainda tenha dúvidas, sempre há a conselheira de segurança nacional de Obama, Susan Rice, a espelhar para a mídia que "será uma coalizão unificada. Será coesa. E estará sob uma autoridade única em comando."

É o Pentágono comandando o Pentágono. O que poderia sair errado? *****

 


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Timothy Bancroft-Hinchey