Brasil: Muito pouco a lamentar

O processo de impeachment da Presidente Dilma Rousseff vem ocorrendo sob forte crítica e oposição de amplos segmentos da esquerda brasileira, inclusive de grupos e partidos políticos que se desvincularam do PT no passado.

Julio Manuel Pires

Mas será que esses protestos e contestações da esquerda se justificam? Em outras palavras, examinando o desempenho do PT à frente da presidência da República nos últimos treze anos há motivos de fato substanciais para que a esquerda "cerre fileiras" em torno do Partido dos Trabalhadores? É possível enxergar a possibilidade de que a saída do poder de Dilma seja positiva para as forças de esquerda do país? São estas questões que nos propomos a responder nas linhas seguintes.

Em primeiro lugar, cabe afirmar que não há qualquer dúvida que Michel Temer e as forças políticas que se articulam em seu entorno representam os interesses conservadores das classes dominantes e que, portanto, sua política econômica e o conjunto de propostas que procurará implementar expressará de forma contundente tais conveniências, e isso se fará, sempre que necessário, em detrimento da maioria da população.

A questão que se coloca, no entanto, é se com o PT no poder isso foi diferente, se houve, de fato, avanços substanciais e permanentes para os setores mais populares ou se estamos falando apenas de conquistas efêmeras e muito mais modestas do que deveríamos esperar de um partido de fato comprometido com um programa de esquerda. É evidente que não estamos nos referindo a mudanças radicais, como a "socialização dos meios de produção", objetivo completamente fora das possibilidades atuais, estamos tratando de intentos bem menos pretensiosos. Vejamos alguns exemplos significativos.

Há consenso unânime, desde há muito tempo, que uma das causas importantes da péssima distribuição de renda que caracteriza a sociedade brasileira está atrelada à estrutura tributária extremamente regressiva. Isso ocorre, fundamentalmente, em virtude da predominância de tributos indiretos. A solução para esse problema todos sabem: aumentar a progressividade sobretudo por meio de um imposto de renda com alíquotas mais elevadas para os estratos de renda superiores e elevar a participação dos impostos incidentes sobre patrimônio, inclusive com a regulamentação do imposto sobre grandes fortunas. O que o PT fez em relação a tais mudanças durante os últimos treze anos? A resposta é imediata: absolutamente nada! E não é que as propostas do governo tenham sido derrotadas pelas elites reacionárias; não houve sequer qualquer tentativa de colocar o tema em pauta no Congresso ou mesmo em discussão.

Uma outra unanimidade atual diz respeito à necessidade de preservar o Bolsa Família. O Programa, que se tornou praticamente um cartão de visita dos governos petistas, sendo considerado uma de suas grandes realizações, não encontra qualquer resistência mesmo entre os economistas mais ortodoxos. E isso ocorre porque se trata de um programa barato, focalizado e perfeitamente afinado com o pensamento liberal. A proposta inicial de Lula quando assumiu em 2003 consistia de um programa assistencialista muito mais amplo (e caro), batizado de "Fome Zero". Face às restrições orçamentárias e à prioridade então atribuída à geração de superávits primários expressivos, a proposta defendida por economistas liberais da equipe do então Ministro da Fazenda, Antonio Palocci, foi adotada, constituindo o Bolsa Família a partir da ampliação do número de beneficiários e junção de diversos programas iniciados durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Logo, a despeito de seu impacto positivo na redução da pobreza extrema, não pode ser, de forma alguma caracterizado como uma "política de esquerda". Qualquer partido conservador que chegar ao poder vai manter e provavelmente ampliar tal programa, em vista de seus efeitos eleitorais expressivos; efeitos estes que se viram largamente ampliados por Lula como uma reação ao mensalão, procurou ele, assim agindo, solidificar e ampliar o apoio das parcelas economicamente mais carentes da nação.

Quais seriam, então, as políticas "progressistas", "de esquerda" desenvolvidas por Lula e Dilma? Certamente não foi a política monetária, responsável por manter, na grande maioria dos anos - à exceção do interregno 2012-meados de 2013 - uma das maiores taxas de juros reais do mundo, para alegria do capital financeiro e dos rentistas, assim como não foi a política de empréstimos subsidiados do BNDES em favor dos maiores grupos econômicos do país.  Também não foi a ampliação e melhoria da qualidade dos sistemas públicos de saúde e educação. A situação atual do atendimento público de saúde dispensa qualquer comentário adicional. No que se refere à educação, podemos assinalar a ampliação do acesso ao ensino superior por parte dos setores mais populares, que antes não tinham tal possibilidade. No entanto, apenas parcela extremamente restrita desta ampliação se fez por meio da criação de universidades federais; a grande maioria das novas vagas se fez por meio do PROUNI e dos FIES, programas de subsídios às universidades privadas (algumas delas com ações em bolsa de valores!) com recursos públicos, para deleite dos empresários privados do setor, cuja maioria não prima exatamente pela preocupação com a qualidade de seus cursos.

Há um elemento positivo que podemos apontar nas políticas encetadas pelo governo Lula e mantido no governo Dilma, o aumento real do salário mínimo, cujo impacto sobre a redução da pobreza e melhoria na distribuição de renda entre os assalariados é inquestionável e mais importante que o Bolsa Família. No entanto, restam aqui também duas observações que não podem deixar de ser mencionadas. Primeiro que se tratou de dar continuidade, com maior intensidade, é verdade, à política de valorização do salário mínimo iniciada no governo anterior e, em segundo lugar, lembrar que, ainda assim, estamos falando hoje de um dos menores salários mínimos da América Latina, perdendo de longe em termos de poder de compra de nossos vizinhos mais próximos (Argentina, Uruguai, Chile), cuja renda per capita não é tão mais elevada que a nossa.

Conjunturalmente, não há dúvida que houve melhoras importantes na condição de vida de vastos segmentos da população mais pobre, por conta do virtuoso quadro internacional e das possibilidades abertas para um certo "afrouxamento" do denominado "tripé econômico". A taxa de crescimento mais elevada, permitindo o aquecimento do mercado de trabalho, juntamente com uma política de valorização cambial quase contínua, permitiu ganhos salariais não desprezíveis. Junte-se a isso a ampliação do acesso ao crédito, por meio de expedientes como o crédito consignado. Tais eventos, muito provavelmente, teriam ocorrido com intensidade semelhante se tivéssemos um governo "de direita" no comando da economia brasileira. Tudo isso em nada é incompatível com políticas conservadoras, pelo contrário. Basta conhecer um pouco de história econômica brasileira para saber que políticas semelhantes caracterizaram o período do "milagre econômico", no auge da ditadura militar.

Diante das evidências em relação aos reduzidos avanços estruturais efetivos promovidos pelo PT no poder, as perguntas que podemos levantar são as seguintes:

1) Segundo frase do próprio Lula, em maio de 2009, "Se tem uma coisa que nenhum empresário brasileiro pode se queixar nos meus seis anos de mandato é que nunca se ganhou tanto dinheiro como no meu governo". O PT não teria sido complacente em demasia com os interesses dos setores dominantes, recusando-se, terminantemente, a qualquer tipo de confronto em detrimento dos interesses da maioria da população? Teria ocorrido, na verdade, uma "política de migalhas"?

2) Uma atuação mais incisiva de um partido de esquerda no poder, em prol de mudanças estruturais a favor das classes populares não poderia ter proporcionado resultados positivos mais abrangentes e duradouros de sorte a garantir um desenvolvimento econômico autossustentável e melhorias mais substantivas para os trabalhadores?

3) É possível que a saída do PT do poder abra espaço - que de outra forma não iria se constituir - para a emergência e consolidação de uma real alternativa de esquerda ao poder, que possa fazer avançar de forma muito mais consistente e permanente o padrão de vida das classes populares? Enfim, não se impõe ao Brasil a constituição de um verdadeiro partido de esquerda que tenha na mobilização popular seu eixo central sem depender de acordos espúrios com políticos e Partidos corruptos e com as forças econômicas que congregam as camadas privilegiadas da Nação e comprometidas secularmente com o coronelismo, com o patrimonialismo e com as benesses de governos timoratos? 

* Professor do Departamento de Economia da FEA-RP/USP e do Departamento de Economia e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Economia Política da PUC-SP.

 


[1]. Professor do Departamento de Economia da FEA-RP/USP e do Departamento de Economia e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Economia Política da PUC-SP.

 


Author`s name
Timothy Bancroft-Hinchey