"Teremos um grande partido conservador no Brasil", diz filósofo Vladimir Safatle

Entrevista concedida por telefone ao jornalista André Rosa Em 1995, no livro "O povo brasileiro", Darcy Ribeiro pretendia responder por que o Brasil ainda não havia dado certo. Hoje, 2015, você acha que finalmente deu certo?

Veja, com certeza o Brasil não conseguiu dar conta de alguns problemas estruturais que assombram a sociedade brasileira desde muito tempo. O principal deles, eu diria, é o problema da desigualdade. O país é a sétima economia do mundo, já chegou a ser a sexta durante um tempo, há alguns anos atrás, no entanto tem um nível de desigualdade que destrói completamente a possibilidade de circulação da riqueza social. Esse nível de desigualdade continua porque, em última instância, o que aconteceu nos últimos dez anos não foi exatamente um ciclo de políticas de combate à desigualdade, foi um ciclo de capitalização da classe mais pobre do Brasil, só que a classe mais rica continua tendo os seus rendimentos estratosféricos. ​Então, essa desigualdade destrói não só a coesão social do Brasil, mas ela destrói inclusive os ganhos que essa classe mais baixa, que foi capitalizada nos últimos anos, conseguiu. Basta você ver o nível de custo de vida nas grandes cidades brasileiras e o valor estratosférico como o custo de vida subiu, com um impacto sobre as pessoas de ganhos mais reduzidos.

Os partidos PT e PSDB nasceram da luta contra a ditadura. Alguns dos novos quadros desses partidos, assim como os do PV, PSOL e outros, são de outra geração e, portanto, não lutaram contra o regime militar. Você acha que isso, de algum modo, pode significar um tipo de rompimento com uma tradição?

O mais grave é que a política brasileira foi para os extremos. Você tem uma política conservadora muito forte, vinculada a uma tríade constituída principalmente pela classe de evangélicos (parlamentares evangélicos), defensores do agronegócio e até um setor mais conservador, diria até proto­fascista, da classe média. Então, há uma desarticulação muito grande no campo da esquerda, e é a primeira vez que isso acontece de fato no Brasil, que sempre foi muito polarizado; os pólos eram relativamente organizados, tanto um quanto o outro. Hoje existe um pólo de recrudescimento do pensamento conservador que está além dos partidos, pois não há um partido que esteja à altura disso. Vai aparecer, com certeza; teremos um grande partido conservador no Brasil. No caso da esquerda, não há nada. Não temos nada por uma razão que a esquerda não conseguiu entender. No campo da esquerda, não vai dar para pensar em construir um novo partido, será preciso ser capaz de inventar outras formas de organização que não tenham caráter centralista, hierárquico e hegemonista, o que geralmente os partidos de esquerda têm. Então, acho que isso está bloqueando tudo de uma forma muito visível. Quando a esquerda conseguir se livrar desses fantasmas e ser capaz de gestar uma outra forma de organização de fato mais aberta, que seja mais convidativa às pessoas, então conseguiremos reconstituir esses pólos. Se você levar em conta o que são esses partidos que vieram da esquerda no Brasil, nada disso conseguirá dar conta do que está se demandando.

30 anos após a ditadura, a direita começa a perder a vergonha de assumir-­se como tal. Esses grupos têm opiniões velhas, embora as apresente como novas. Por exemplo, atribuem à atividade pelos Direitos Humanos um "cavalo de tróia" para o comunismo internacional, coisa que já em meados da década de 70 o cientista político Norbert Lechner denunciava. A que você atribui isso?

A duas coisas. A primeira, à ausência completa de um trabalho de memória social a respeito do que foi a experiência da ditadura. O Brasil é o único país da América Latina que não colocou nenhum torturador na cadeia, é um país que não fez nenhum tipo de esturbo da sua polícia em relação às pessoas que tenham cometido atos de tortura e terrorismo de Estado ­­ todos eles continuaram em suas polícias, o que fez com que o Brasil seja hoje o único país da América Latina onde o número de casos de tortura aumentou em relação ao número de casos de tortura da ditadura militar, é o único país da América Latina em que isso aconteceu. então, você teve um bloqueio completo da memória social no Brasil que impediu um trabalho de elaboração que poderia ter criado uma certa consciência nacional a respeito do que não é aceitável mais que ocorra. Como nada disso aconteceu, as pessoas que tinham simpatia pela ditadura ganharam direito de voz, o que faz com que, por exemplo, esse ano a gente tenha visto pessoas saírem na rua pedindo a volta da ditadura; o que, diga­se de passagem, eu posso imaginar uma série de democracias estabelecidas em que isso seria simplesmente impossível do ponto de vista jurídico, ou seja, é impossível que se pense em um grupo que saia na França, Alemanha, Inglaterra pedindo ditadura militar sem que seja fichado depois, todo mundo, e seja processado, porque, afinal de contas, trata­-se de um Crime de Estado da mais alta relevância. Então, acho que tudo isso demonstra um problema muito sério, isso de um lado; de outro lado, o modelo de democratização do Brasil foi baseado em um tipo de gestão que se pode encontrar tanto nos governos do PSDB quanto nos governos do PT, que é uma gestão por cooptação de uma parte de antigos políticos da ditadura do núcleo dirigente do poder. Por exemplo, a relação orgânica entre Fernando Henrique e Antônio Carlos Magalhães, ou entre Lula e José Sarney. Ou seja, é só um exemplo; tudo isso foi constituído de maneira tal que governar o Brasil era, em última instância, fazer com que os últimos combatentes da ditadura administrassem os resquícios da própria política da ditadura, dos próprios políticos da ditadura. Então, isso foi normalizando tudo a ponto de se tirar a força da sociedade brasileira de se contrapor a esse tempo; na verdade, esse tempo nunca passou, nunca morreu, ele nunca foi superado. Ele sempre esteve presente, então a gente o vê, de uma certa maneira, de volta.

Permita-me provocar um pouco. O Brasil, apesar de todos os avanços, ainda é um país muito desigual e injusto; além disso, assistimos recentemente ao retrocesso dos direitos trabalhistas. A nossa política, em termos gerais, continua em sua tradição conservadora, no entanto tivemos em nossa presidência um intelectual de formação marxista, um operário e uma ex­guerrilheira. O que deu errado?

Olha, isso não diz muita coisa. A questão fundamental não é de onde você veio, entendeu? Esse processo de transfiguração é muito comum. Você pode pensar na Polônia de Lech Walesa, por exemplo, que é um caso de exemplar de um sujeito que veio de um combate sindical forte e que foi fazer uma política neoliberal da pior possível em seu país. O que é importante salientar é que você teve um modelo de gestão da nova república, e esse modelo deu errado. O modelo de política da nova república é marcado por um tipo de política onde a governabilidade é você criar modelos de acordo e de aliança onde, independente de quem você seja, há um núcleo conservador e fisiológico dentro do poder com o qual você deve saber lidar. Então, nunca houve ruptura no sentido forte do termo, nunca teve uma coisa como em muitos países da América Latina, onde os antigos políticos da ditadura e o que eles representavam foram excluídos do cenário político, foram colocados de lado. No Brasil isso aconteceu. Então, isso fez com que você tivesse, na nova república, o modelo seguinte: ninguém irá para os extremos, mas também você terá de ampliar o que significa estar no centro. Esse ano foi um ano muito importante porque esse modelo da nova república acabou, a nova república não existe mais. A gente está vivendo num momento de ato muito forte, então se tem uma política que vai caindo para os extremos cada vez mais. Uma das questões fundamentais da nova república era um certo acordo entre algumas demandas sindicais e algumas demandas neoliberais, o que fez com que o Brasil não fosse um país de grande transformação social, mas também não um país que implementou de maneira mais brutal o pacto neoliberal, veja que algumas das maiores empresas brasileiras são estatais, como a Petrobras e a BR Distribuidora; dos quatro maiores bancos brasileiros, dois são estatais: a Caixa e o Banco do Brasil. Tivemos um modelo mitigado que esteve em um acerto acordo, e esse acordo quebrou, não existe mais. Ele acabou de uma vez por todas. Isso fez com que, em última instância, nós tivéssemos agora um momento de vazio completo, de vazio de perspectiva. Nós não estamos conseguindo projetar alguma coisa que possa ser uma força para fazer com que daqui pra frente você possa imaginar que tipo de mudança poderá ocorrer; não existem mais atores políticos pra isso. Os atores políticos que foram gerados pela nova república, que são esses que a gente conhece, já demonstraram o que conseguem fazer, e não é muito. Não temos outros atores para colocar no lugar.

O Ocidente, no fim da década de 60, vivenciou a mais forte tentativa de construção de um socialismo libertário e mais democrático. Muitos intelectuais brasileiros, enquanto esmagados pela ditadura militar, sonhavam com as ideias que se discutiam na Itália de Berlinguer e na Tchecoslováquia de Dubcek. Você acha possível realizá­las no século XXI?

Eu até colocaria também o governo Allende nesse contexto. Teve uma experiência naquele momento que nunca foi tentada, na verdade. Foi uma experiência abortada. A ideia de lembrar o Dubcek é boa, porque se aquilo tivesse dado certo, com certeza a gente teria uma configuração muito diferente, hoje, do que a esquerda é capaz de fazer. Acho que foi o último sopro do ponto de vista institucional. Nós tentamos um modelo de socialismo que virou um monstro burocrático, completamente travado e bloqueado, com questões ligadas aos direitos humanos absolutamente centrais, e é necessário tentar alguma outra coisa. Naquele momento, alguma coisa poderia ter sido tentada, só que foi cortada da maneira mais brutal, de todas as formas: por golpe de Estado, como no caso do Chile, ou intervenções militares, como no caso da Checoslováquia. Agora, ficou um salto a ser pensado, porque essas experiências nunca desaparecem completamente; mesmo essas que fracassam ficam um pouco em latência na espectativa de que em um outro momento o que animaram elas possa ser tentado outra vez. Então, a gente vai caminhar para esse tipo de coisa. Experiências como a da Espanha e da Grécia, por mais que elas possam estar sapateando, percebe­-se que há uma instabilidade social muito grande, um desejo político muito grande que expressa algo que não é só desses países, mas de nosso tempo em geral. Estamos à espera de uma primeira experiência bem sucedida, e você pode ter certeza de que quando isso acontecer você pode ter certeza de que ocorrerá um efeito dominó, muita coisa vai ocorrer.

 


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Timothy Bancroft-Hinchey